Carta de Tomás Medeiros a Lúcio Lara

Cota
0103.000.063
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel Comum
Remetente
Tomás Medeiros
Destinatário
Lúcio Lara
Data
Idioma
Conservação
Razoável
Imagens
2
Acesso
Público
Dolisie, 10 de Maio de 1965 Lúcio, caro amigo Um abraço de parabéns a ti e a Ruth pelo feliz acontecimento - o nascimento do Bruno. Resolvi, finalmente, escrever-te hoje e por-te ao corrente da minha insatisfação e dos meios que pretendo por em prática para me libertar dela. Após 8 meses de colaboração voluntária, chego a conclusão que a minha presença em nada é necessária aos trabalhos cá na fronteira. Compreende-se: em 8 meses apenas 7 idas a fronteira em serviço. Todas elas, aproveitando boleias deste ou daquele responsável: tu e o Chipe [Chipenda] principalmente. No entanto eu sei, tu presenciaste, há bastante trabalho médico. Isto para o Mov serviria de instrumento de propaganda e a mim de prática sempre necessária, tratando-se, principalmente, dum médico que veio para o barulho logo após a formatura e sem ter passado pela responsabilidade de aguentar o encargo dum serviço no Hospital. Apresentei propostas, fiz sugestões, conversei, mandei relatórios, tudo em vão. Estou na engorda; aborreço-me, perco a prática, embruteço-me. O importante é que pedi sempre uns míseros 1.000 francos para viagens ao longo da fronteira e hemos de concordar, se houvesse um pouco de interesse e considerando ainda mais o papel que o médico pode e deve executar juntos das massas, a coisa ter-se-ia conseguido. Concluindo: 8 meses perdidos inutilmente. Num partido político, é muito importante o princípio: UNIDADE-CRÍTICA-UNIDADE. Dito doutra maneira, é preciso partir-se da ideia de que a unidade é necessária para o bom andamento das coisas. Assim para consegui-la e para que ela seja necessariamente orgânica, há que aceitar-se a crítica e a auto-critica. As personalidades diluem-se e cria-se uma equipa (ou partido) forte e homogéneo. A política, a organização e a ideologia tornam-se de vanguarda. Aceito esse princípio por julgá-lo certo. Aplico-o na minha vida diária. O Neto fez nascer em mim essa confiança e então critiquei-o. Bem? Mal? Havia que suscitar a discussão (em família), esclarecer, corrigir e abrir perspectivas. Nada disso se fez. Então um gesto profundamente sincero, precipitado talvez, mas sincero, e utilizado por este e aquele conforme os seus interesses mais obscuros, em resumo, serve para me queimar. Cria-se um problema: “o problema Medeiros”. Cai a confiança e eu sinto-a. Resta apenas o sentimento da utilidade. Há necessidade dum médico e eu sou médico. Isto é profundamente desanimador. Eu hoje tenho medo de tomar iniciativas. Fica em mim o receio: fica bem? Fica mal? Reconheço em mim: perdi o entusiasmo, comecei por me desinteressar. Sinceramente não gosto trabalhar assim. Eu gosto dar o meu melhor, mostrar os meus erros para serem corrigidos e as minhas qualidades para serem aproveitadas. Constituir um caso, não. Eu sei que os egoísmos nacionais ainda contam muito. Discutir, tentar repor as coisas no seu devido lugar, seria o essencial mas, não seria criar um novo caso, eu que tenho presente a minha condição de “estrangeiro” que, se para mim não tem importância, pode servir de argumento para muitos espíritos e aprofundar ainda mais o fosso que me separa dos velhos antigos e porque não dizê-lo, dos velhos mestres? Vocês - tu, Mário e Neto -, exercerem imensa influência na trajectoria da minha evolução cultural. O imobilismo, a desconfiança pesam profundamente em mim. Resolvi adiar por momentos a minha colaboração na luta. Ficarei aqui até Agosto, altura em que pretendo seguir para a União Soviética, afim de concluir a minha especialização em Cardiologia. Após a licenciatura obtive uma bolsa de aspirantura no ramo de Cardiologia. Perdi-a vindo prestar a minha colaboração voluntária. Os planos falharam, eu tenho que pensar no destino a dar a minha vida. Voltar a aspirantura, seria o ideal se conseguisse uma nova bolsa, ir prestar colaboração numa outra revolução onde eu pudesse ser mais solicitado ou, em última análise, empregar-me. Abri-te o meu pensar, a única maneira de te significar a minha amizade e admiração. Falo-ei igualmente ao Neto e da mesma maneira, como amigos e não como responsáveis. Vocês indicar-me-ão o processo de fazê-lo oficialmente sem vir a constituir novo problema. Um abraço do sempre, *[rubricado]

Carta de Tomás Medeiros (Dolisie) a Lúcio Lara.

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