Carta de Gentil Viana a Lúcio Lara

Cota
0092.000.010
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel Comum
Remetente
Gentil Viana
Destinatário
Lúcio Lara
Locais
local doc
Pequim
Data
Idioma
Conservação
Razoável
Imagens
2
Acesso
Público
B.P. 300 - 2544
Pequim, Rep. Pop. Da China

Para Lúcio Lara
B.P.388 - Bville, Rep. Do Congo

Aos 12 de Abril de 1967

Caro Lúcio,

Saúde!

Há poucos dias, recebi a tua carta de 23/3, como resposta às que te escrevi, relativamente ao problema da minha reintegração no MPLA.
Quanto ao que perguntas a respeito dos meus filhos, informo-te que eles vão bem, obrigado.
Daqui, tanto eles como eu, todos desejamos que o mesmo se passe em tua casa, que esteja toda a família de excelente saúde e receba um forte abraço nosso de saudade.
Sobre o lado informativo da tua carta, muito te agradeço as notícias que me dás da luta, pois assim sempre fico a saber algo que é importante, e confirmado por fonte fidedigna (tu, membro do C.D.)...
Com respeito ao lado político da tua carta, camarada, é que gostaria (sinceramente) de trocar contigo algumas ideias, razão por que te peço um curto momento de atenção. Trata-se disto:

Segundo a minha maneira de ver, e creio que segundo o teu pensar também, as divergências políticas entre os defensores duma mesmo causa só podem ser resolvidas com êxito através da via discussão; discussão ampla e franca, em que as duas partes se movem levadas apenas pelo desejo de estabelecer uma sólida unidade de pensamento e acção, em benefício do objectivo revolucionário comum. Além disso, como é evidente, importa ainda que dum e doutro lado se ponha um certo cuidado em, de acordo com a situação concreta da luta, seriar segundo a ordem mais conveniente os pontos a discutir, e escolher a forma e o momento mais oportuno para que a discussão resulte. Crítica de ideias e comportamentos alheios, auto-crítica, eis numa palavra o fundo do método de solução das divergências entre filhos dum mesmo povo. Tu sabes tanto ou melhor do que eu que é assim.
Entre mim e vocês (Direcção do Movimento) havia divergências; eu sempre pensei e agi na firme convicção de que se tratava de divergências entre militantes duma mesmo revolução, solucionáveis portanto através de meios revolucionários, mas não violentos. Assim foi que, ao fim destes três anos de afastamento, eu decidi-me a propor-vos a respectiva solução, tomando no entanto o prévio cuidado de aconselhar-me, junto dos meus velhos camaradas, sobre a ordem dos assuntos a resolver e a forma e o momento em que melhor se poderia fazer tudo isso. Essa a razão da carta que escrevi a título pessoal ao Agostinho, carta cuja cópia enviei a outros camaradas, como por exemplo a ti, no dia 15 desse mesmo mês de 1966. Essa minha atitude preliminar era porventura justa? Claro que era! Só através dos vossos olhos e ouvidos eu poderia completar, na altura (e hoje acontece o mesmo...), os meus conhecimentos sobre a situação. Infelizmente, tu não interpretaste assim a minha atitude (o mesmo se passando aliás com o Agostinho!) e fechaste-te num prolongado e frio silêncio. Eu fui obrigado então a actuar apenas a partir do que na altura sabia, e apresentei, para começar, o pedido de reintegração cujos termos e data bem conheces.
Os meses foram-se sobrepondo, e agora (quase meio ano depois da primeira carta que te escrevi sobre o assunto!), eis que vejo, com certa satisfação, chegar-me um envelope com a tua assinatura, o qual, presumia eu, ia ser a quebra de todo o vosso silêncio. Qual não foi, porém, a minha surpresa (surpresa política, claro) quando, ao inteirar-me do respectivo conteúdo, vi que, embora se tivesse rompido o silêncio físico (na medida em que escreveste umas linhas), o silêncio moral (ausência de resposta política) mantinha-se e numa forma quase golpeante: nada dizias sobre o que pensavas da utilidade da minha reintegração, nem sobre o quando e o como ela poderia, a teu ver pessoal, realizar-se na prática! ...Tens de concordar que essa é uma maneira estranha de manter relações entre progressistas, entre compatriotas, entre dirigentes e dirigidos. Em certos aspectos, quase se poderia comparar tudo isto ao vai e vem característico das relações entre os que procuram e os que dão trabalho, numa sociedade capitalista. E não penses, camarada, que te estou dizendo isto em tom de ataque; pelo contrário, o que pretendo é justamente trazer as coisas para o terreno em que elas se devem e podem desenrolar utilmente, em favor da causa das massas populares.
Actualmente, a situação de todo o elemento progressista africano é extraordinariamente precária no nosso continente; basta que pensemos na história da Argélia ou do Ghana para que sintamos toda a gravidade do assunto. E nós, os angolanos, não podemos ser uma excepção no meio de toda essa dificuldade. A guerra nacional de independência que hoje em dia travamos contra a opressão estrangeira, há-de seguir-se, inevitavelmente, uma luta popular pela libertação total das massas operárias e camponesas, uma luta pelo estabelecimento da nossa sociedade socialista, etapa normal do nosso desenvolvimento, do desenvolvimento de todas as outras nações no mundo. Tu, como o Agostinho, sabes tanto ou melhor do que eu tudo isso. Sendo assim, se os progressistas angolanos vão ter de viver ombro com ombro no futuro, por que razão deverão eles mutuamente cercar-se e fazer-se violências no momento presente?
E se estas razões que acabo de apresentar não servem, quero dizer, se o silêncio físico e político constitui, no caso concreto, um método de “fazer-me baixar a cabeça”, então tenho a declarar que se está correndo em vão, pois em nenhum caso a minha cabeça se curva, uma vez que não está nisso o interesse da Pátria. O grande coral angolano que um dia vai acabar por formar-se e apavorar todos os inimigos da nação, é justamente constituído por milhões de vozes que têm uma natureza idêntica à da minha. A minha voz não é senão um número mais nesse conjunto, razão por que, ao contrário de ser abafada, ela merece ser recebida e colocada no lugar em que melhor possa vir a soar. São os dirigentes do coral quem tem o dever de proceder a essa harmonização de todo o conjunto.
Escrevendo-te assim, eu corro o risco de ser mal interpretado por ti, como pelo Agostinho (a quem peço, por teu intermédio, que leia com igual atenção esta carta); mas, como me seria possível falar-te de outra maneira, se eu continuo a pensar que, tarde ou cedo estaremos de novo lado a lado em defesa do povo?
Diz-me, por favor, na volta do correio, se é verdade ou mentira aquilo que nesta te disse.
E uma vez que o Agostinho vai igualmente ler esta carta, aproveito, e pergunto a ele: Mano, por que não dizes tu nem um ai?

Forte abraço para vocês, um voto de vitória incondicional pela Pátria e pelo Continente!

*[Assinado: Gentil Ferreira Viana]

Carta de Gentil Viana a Lúcio Lara, sobre o seu pedido de regresso ao MPLA.

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