Cópia da carta de Deolinda Rodrigues, da base de Kinkuzu

Cota
0091.000.033
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel Comum
Remetente
Deolinda Rodrigues, Engrácia dos Santos, Irene Cohen, Lucrécia Paím, Teresa Afonso
Destinatário
Comité Director do MPLA
Data
1967
Idioma
Conservação
Mau
Imagens
4
Acesso
Público
[Manuscrito por Lúcio Lara , numa folha anexa à carta: “Carta das Cinco Heroínas (de Kinkuzo) Março 1967]

Camaradas responsáveis,

Impedem-nos fortemente de dar-vos sinal de vida e de saber o que está acontecendo fora de Kinkuzu; oxalá esta carta e a declaração vos alcancem.
De vez em quando apitam-nos os programas de Angola Combatente e encoraja-nos imenso a campanha que levais a cabo em nosso favor. O Couraf está fazendo um trabalhão! Parabéns a todos.
Convém-vos saber que:
1- os nossos camaradas que tentaram evadir-se, foram recapturados e barbaramente espancados, principalmente o Benedito.
2- actualmente estão presos aqui 21 militantes nossos, além das 5 moças. Adriano foi levado em 17/11/66 sob pretexto de ir tratar-se em Kinshasa. Zé Pascoal também foi levando “para ir mostrar onde estão as armas do MPLA”. Ambos nunca mais foram vistos e cremos que foram mortos.
3- já deveis saber que as crises alimentares são diárias, podemos dizer: comida de má qualidade e sempre em quantidade insuficiente. Há tratamento médico só para propaganda. Quase todo o mundo tem ankilostomas e por cima disso, tem de ficar descalços. Benedito sofre dores dos dentes e o Gackson está com insuficiência cardíaca. Ao Benedito, Sangue do Povo, Zé Pascoal e Gackson foram recebidos os óculos.
4- até 30/3/67 nos nossos camaradas podiam cumprimentar-nos quando iam para o trabalho que lhes dão de vez em quando, e nessa altura, podiam comer e receber qualquer coisa que tivéssemos para eles, além de no caminho poderem eles mesmos comprar umas comiditas. Tudo isso agora é proibido e o que arranjamos só pode ser enviado a cadeia e já não é-lhes entregue por nós pessoalmente, impossibilitadas de visita-los.
5- todos os camaradas precisam de roupa e alguns, a maioria de panos para se cobrirem. Acima de tudo é-lhes muito necessário dinheiro para comprarem comida e cigarros.
6- parece que as prisões em Songololo foram efectuadas porque no ataque de 24/1 o Talakanga, desorientado, foi parar às mãos deles. Sob prisão violenta, ele bocou tudo e mais alguma coisa. Em Kamuna, mostraram-nos o Talakanga só para declararmos se o conhecíamos. Além dele deve haver outros camaradas presos em Kamuna. O Talakanga é utilizado para desarmar os que caem nas mãos deles como foi o nosso caso.
7- Nekongo é professor da 4ª classe aqui. Seus contactos são limitados e, como todos e tudo aqui, espiados. Está bastante magro; precisa de cobertor e melhor alimentação, além de um tratamento que lhe não deixam ir fazer a Kinshasa. É o irmão mais velho de todos os militantes do MPLA aqui.
Quanto às moças:
a) levadas de Kamuna para Kinshasa em 2/3/67 pelas 19 horas e de Kinshasa para Kinkuzu em 4/3/67 pelas 21 horas no camião de ANC, um dodge n°12448, guiado alternadamente pelos militares congoleses Roger e N’seke.
b) a nossa saúde ainda não está restabelecida, embora já não estejamos como quando viemos de Angola. Entretanto a cara, a barriga e os pés ainda inflamam de vez em quando! Temos ankilostomas e ascaris, segundo exame de fezes feito cá mesmo. Estamos sem as regras desde Fevereiro e como resposta ao nosso pedido de uma consulta ginecológica, recebemos promessas vagas e irónicas. Ainda temos dificuldade em dirigir os alimentos, embora não tanto como quando chegámos.
c) falam-nos em “libertação breve” mas aqui não cremos em ninguém nem sabemos o que para esta gente “em breve” pode significar. Servem-se de várias desculpas para justificar a nossa detenção; ora é Angola Combatente que ocultou o chamado “grae”; “ora não convém soltá-las já para o Agostinho Neto não pensar que temos medo dele”) Gourgel.
Isto teria sido ouvido pelo Julião que foi denunciá-lo em Kinshasa. Também dizem que temos de estar sob prisão seria assim para não recebermos rapazes em casa. Ora, é verdade que vinha muita gente a casa onde estamos, sim, mas porquê? Simplesmente porque tinham fome (a companheira mais fiel de cada pessoa aqui em Kinkuzu) e vinham como pa, até porque as visitas só eram feitas à hora da refeição. Além disto o Gourgel buscou muita coisa contra o Mov. e nos tenta apresentar vários pretextos. Mas nós já conhecemos o ambiente terrível de intriga que aqui reina e, aliás nunca tivemos ilusões quanto ao “bom tratamento” que nos deram inicialmente as promessas de Libertação “em breve”.
Todas continuamos com a moral alto e estamos prontas a morrer em vez de capitular. Só a saúde é que não nos deixa agir mais: estamos anémicas. Temos muitas saudades de todos vós. Agora nós avaliamos muito melhor e amamos mais profundamente o nosso MPLA com um embrião de organização tão perfeito. Gourgel e Peterson são os dois maiores anti-MPLA que já encontramos aqui.
Diz-se que durante o interrogatório o Gackson portou-se a altura de um Nguyen Van Troi. Moral formidável, apesar de tanta pancada!
Temos estado felizes com os comunicados da frente leste. Bem, neste pedaço de papel vai toda a nossa camaradagem e encorajamento para o avanço da luta contra os tugas, sob a bandeira do MPLA, A VITÓRIA É CERTA!


O que se segue -exato no conteúdo e não na forma- foi feito a pedido do “grae”

Declaração

Sendo militante de MOVIMENTO POPULAR DE ANGOLA (MPLA) com treino político militar, o nosso dever é ajudar as nossas mulheres no interior do país quanto à saúde, instrução e produção. Assim, fomos integradas num destacamento enviado ao interior em Janeiro afim de reforçar a luta do nosso povo contra os colonialistas portugueses.
Em 24 de Janeiro fomos atacados por indivíduos que não identificamos e que fugiram precipitadamente da resposta do nosso fogo intenso.
Devido ao nosso estado de saúde, chuvas constantes, etc…, fomos destacadas para regressar ao Congo junto alguns camaradas.
Em 2 de março, quando nos dirigíamos para Songololo, fomos presas na estrada Matadi-Kinshasa. Conduzidas a Kamuna, fomos despojadas entre outras coisas, de 4 relógios de pulso e de um rádio portátil. Os nossos camaradas foram maltratados à nossa vista. Deram-nos de comer e descansámos. Nessa mesma noite partimos para Kinshasa com o Chefe de Estado-Maior.
Kinshasa, 4 de Março de 1967
(assinado pelas 5 moças).

———————————————————————————————————————————
Para vossa informação, a guisa de complemento:
1) fomos presas na RDC e não em Angola
2) o resto do destacamento prosseguiu na missão
3) os relógios, transistor, etc..., foram roubados pelo “comandante” de Kamuna, Edouard Panzou. Em Kinshasa prometeram-nos a sua devolução, mas não recebemos nada até hoje.
4) ignoramos o paradeiro da maioria dos camaradas que vinham connosco, doentes também. O Oliveira está internado no Luvu, com hérnia, segundo nos dizem.
5) Além desta declaração, na sede do “grae” submeteram-nos a um interrogatório individual cerrado sobre o Movimento, o destacamento, os Cunhados, etc., etc., cujas respostas foram anotadas. Insistiram muito em saber se, uma vez solta, cada uma de nós aceitaria trabalhar para o “grae”. A nossa resposta foi sempre negativa e bem decidida.
Trazem sempre à baila a “morte do Matias Miguéis” para tentarem confundir-nos.
Ora “já que dizem que foram presas em Angola então vamos levá-las de volta ao interior e deixá-las no lugar onde as encontramos para elas se debrouillarem” (Peterson); etc, etc. Parece que a sentença do Holden foi libertação imediata por sermos “pobres mulheres” mas (Gourgel “ministério de guerra” e Peterson “sureté” querem primeiro ridicularizar-nos ao máximo. Diz-se que como presas políticas o nosso caso está entregue a sureté de Peterson; ora quem conhece este pode imaginar como a nossa vida corre perigo. Recentemente o Gourgel veio dizer-nos que “em breve” ele viria buscar-nos para regressarmos a Brazzaville, “segundo resoluções do sr. Presidente”. Mas como já nos enganaram muito, não acreditamos em mais nada e ninguém aqui.
d) nunca fomos surradas nem engaioladas, apesar de não lhes faltar vontade para tal para desígnios piores a nosso respeito (engravidarem-nos). Em relação aos outros, estamos melhor. Só esta fome eterna e que é a mesma…
e) Mme Lhau e a UGEC sabem da nossa prisão aqui? Outras notícias:
- a famosa Kinkuzu tem, neste momento, cerca de 200 soldados; - Manuel Julião, ex- militante do MPLA é o segundo homem aqui; adjunto do chefe de estado maior - sexta-feira é o domingo da base; não se trabalha.


MUITO IMPORTANTE:
Saibais usar estas informações de modo a não agravar a nossa situação já precária aqui, principalmente a dos rapazes. Contudo continuai fazendo o máximo para a libertação de todos nós.

Nenhuma encomenda enviada oficialmente chega às nossas mãos. Tudo tem de vir clandestinamente. O velho Lengue sabe quem pode dar um jeito, embora não saibamos até onde o portador é fixe. Há que arriscar; a fome é negríssima!
Até a próxima. Saudações. VM Deolinda



Está cá um moço amulatado, desertor do exército tuga em Muconge. Quase impossível contactarmos com ele. - De noite esta base é bastante patrulhada por cerca de 70 e tal upistas, principalmente a cadeia. - eis uma notícia que dou com bastantes reservas: segundo upistas vindos do interior, os tugas teriam bombardeado posições nossas em Nambua. Quando o nosso grupo ia com os feridos para o Congo, não pôde atravessar o Mbridge que tem grandes enchentes nesta época, ao voltar caiu numa emboscada do António Fernandes. Dizem que um grupão bem armado que agora está preso no quartel do tal António Fernando e que virá para esta base.
-Segundo dizem também, 2 militantes nossos presos teriam recentemente mostrado “o depósito de armas MPLA na área de Songololo”. Tudo isto até aqui foi escrito antes de 11/3/67.

———————————————————————————————————————
Depois de muitos pedidos deram-nos sais de frutos, alcopar, flil. Ultimamente temos ataques quase diários de paludismo e não há aqui comprimidos para combatê-los. De Kamuna devolveram-nos um relógio e o meu rádio, mas este foi de novo confiscado por ordem do Gourgel.
A partir de 12/3/67 o, Gourgel pôs-nos em residência guardada dia e noite por dois soldados armados e não podemos dar nenhum passo além da cozinha e retrete. Ele diz que vamos ficar aqui presas até a independência, como o Benedito e os nossos outros camaradas. Ninguém pode falar connosco e prometeram por-nos em prisões separadas. Refere-se frequentemente a prisão que ele sofreu em Kimongo e, claro, quer desforrar-se em nós. Diz que o Holden é bonzinho e preocupa-se muito connosco, mas ele, Gourgel, é diferente e não admite falta de respeito e abuso.
Para justificarem estas medidas severas contra nós, alegam que a Engrácia teria dito “para trabalhar convosco, prefiro colaborar com a oposição portuguesa porque a vossa não é organização não é nada”.

Cópia dactilografada de uma carta de Deolinda Rodrigues e suas 4 companheiras, no Kinkuzu, ao Comité Director do MPLA.

A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.