Carta de Ernesto Lara Filho a Lúcio Lara

Cota
0013.000.067
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Ernesto Lara Filho
Destinatário
Lúcio Lara
Locais
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
2
Acesso
Público

Ernesto Lara Filho
Pensão Jardim
Avenida Navarro 65
Coimbra

Coimbra, 25 de Junho de 1960

MEU CARO LÚCIO

    Finalmente, carta tua! Já estava a desesperar… Escrevi-te a 11 e 25 de Abril e tenho enviado jornais regularmente. Embora tu me tenhas avisado de que de futuro haveria prolongados silêncios teus, sabes como é, a falta que me fazem as tuas cartas. Por poucas que sejam, vê se consegues ao menos escrever uma vez por mês. Até porque eu, sem tu acusares a recepção de livros que vou enviando, não envio as coisas que tenho cá. Vejo que deves ter recebido os livros do Manuel Múrias e do Oliveira Boléu pelo que me dizes e quero informar-te que seguiu ontem, por via ordinária:
    a) Relatório do Banco de Angola de 1959 (saído apenas este mês. Logo que saíu, eu enviei-to.)
    b) "Aplicação de Capitais" - livrinho editado pelo Pancada & Morais. Só consegui arranjar o de 1958 que creio fazer-te geito.
    c) Jornais ABC e "Jornal do Congo".

    Tua família deve estar a chegar a Lisboa pelo que eu sei de meus pais. Eu não posso ir esperá-los, pois de momento tenho exame a 30 do corrente. Vou fazer Literatura, 6º e 7º ano. Claro que estou preparado, mas ontem surgiu-me uma hemorragia, digo, diarréias constantes, fui radiografado e parece que tenho uma rectite devidamente acompanhada de perdas de memória, infecção do cólon etc etc - diz o Dr. Abílio Duque que são restos de Angola… Tenho os intestinos completamente desgraçados. Uma tremenda massada. Isso e os exames, não me deixam concatenar idéias. De modo que lê como puderes. Lê com atenção os ABCÊS pois estão a atacar com muita coragem diversos problemas de Angola e parece-me que o Governo está a tremer, pois já nomeou uma Comissão de Censura para estudar a Informação nas Províncias Ultramarinas… Entretanto sucedem coisas estranhas como um bulldozer cortar os fios de abastecimento eléctrico às indústrias ABC o que fez o jornal paralizar um dia etc etc… Claro tenho feito coisas e entrevistei há dois dias o Embaixador Negrão de Lima e a coisa deu brado. Mandar-te-ei um jornal logo que deixe de necessitar dos dois únicos que possuo. Ah! No Brasil, o "GLOBO" transcreveu com relevo uma crónica minha intitulada "Meu Azulejo para Brasília"… Dos meus tenho tido notícias nada boas. A vélha Adelina vai ser operada - um tumor no útero - e nesta idade causa-me muitas preocupações. Como sabes têm lá em casa no Légi, o Pedrinho e o João. A mãe Adelinha apenas aguarda a presença do Persons que regressou há dias da América, para ser operada com um mínimo de cautelas. Dei os teus parabéns à Aldita e ela diz que te vai escrever a agradecer, dentro de uma carta minha. Transcrevi ao Pai Lara os teus parabéns e êle ainda na última carta perguntava: O Lúcio? Que sabes dêle? Onde está? Mandei-lhe dizer o que interessava sucintamente e dei-lhe os teus parabéns, ressalvando o que me dizias de ser a primeira vez depois de longos anos que lhe não tinhas escrito no dia do seu aniversário. Ele não póde levar a mal o facto, como dizes na tua carta.
    Estarei com a tua Mãe e Zita e fá-las-hei entender o facto. Não é difícil, elas têm evoluído e estão mais ou menos conformadas com o caso. O facto de teres tomado um rumo diferente, nunca póde influir no grande amor que te dedicam. Tudo lhes direi para teu socego e tranquilidade. E, hoje, mais do que nunca, eu te compreendo perfeitamente. E desejo que te realizes, que leves a cabo a tarefa em que te meteste.
    Meus estudos? Vão bem. Farei Literatura daqui a cinco dias e depois o resto do sétimo ano, para o ano. Se a saúde me ajudar que é já bem pouca. Em Coimbra sempre o mesmo ramerrão. O Arrobas ainda é vivo e a pequenita, filha dele, está uma senhorita e já namora. O Tonecas agradece os teus cumprimentos e diz que te escreveu. Aliás, diz que a Laura é que te escreveu. A tia Henriqueta bem. Estive há dias na Figuira da Foz com teus primos e Lena muito triste por eu não querer dar a tua direção pois queria mandar um brinquedo, ao menos, ao teu filho. Como vai êsse tipo? Está crescido? Já se barbeia? Como sabes terei uma certa dificuldade em arranjar o anuário estatístico, mas dentro de 15 dias, mandam-me isso, de certeza, que já pedí. Segue dentro desta carta, três recortes que suponho interessam-te. Tirei do Jornal do Congo e são amostras tremendas da tal nossa presença em África.
    Recebi a declaração que enviáste. Já era conhecida nos bastidores, mas os jornais - nem um pio sobre o assunto. Continuam a ignorar o assunto e o UIGE partiu êste mês com um destacamento - atrazando as passagens de quem tinha urgência de embarcar. Parece-me que vão guarnecer a fronteira de Cabinda e Congo, com medo da "penetração belga". Dá saudades há Ruth e um grande beijo ao "júnior" do time. A propósito: Veio cá o Portugal, depois de uma série de sabujices da Federação, e apanhou 6-0 e 3-0 do Belenenses. No 3-0 as operações decorreram equilibradas e quem veio com o time foi o Pila, o Miáu e o Horácio Lara - irmão mais novo. O Presidente do Portugal de Benguela - imagina tu! - e que também veio cá à Taça de Portugal, foi o Eurico, marido da Jóca. Está suspenso agora por ter batido num árbito…
    Perguntas-me se tenho meditado na minha ida a Paris. Muito, Lúcio, muito. E tanto que me ponho agora mais do que nunca do vosso lado. Mais do que nunca. E uma pena, que meu auxílio não possa ser mais efectivo e consciente, mais productivo, do que tem sido até aqui. E contem comigo. Quanto a uma acção, a uma obra, uma tarefa comum, isso é convosco. Eu continuarei a enviar papéis… e jornais.  Depois, numa Angola livre e independente, onde haverá um pouco de tolerância e compreensão, nos encontraremos e falaremos demoradamente. Paris disse-me isto: "Que África é dos Africanos". Penas é que aqui em Portugal, ninguém tenho a mínima consciência do que se está a passar no Mundo e nomeadamente na África. E lamento, lamento muito que o Governo queira resolver as coisas a tiro. É a pior maneira. Mas Deus é grande. Depois escreverei mais demoradamente. Por hoje é só. E dispõe de mim. Se vires o Viriato dá-lhe um abraço e diz que dentro de dias publicarei um estudo completo sobre êle em a "vértice". Sobre êle, não. Sobre a sua poesia. Por hoje mais nada.
    Apertado abraço a ti e Ruth e Paulinho.
    Do primo muito e muito amigo
    Ernesto Lara Filho


Caríssimos
Saúde para os três. Eu e a minha "tribo" cá vamos andando menos mal, cheios de saudades uns dos outros. Fui a África na Páscoa. Estive c/ o Orlando e c/ a família. Tudo bem, e mandam-vos abraços. Defenderei tese em Outubro, e lá para Junho do ano que vem conto ter acabado a Tropical e ter ido para Angola. Não é sem tempo, e já não posso mais. Obrigada pelos vossos parabéns. Desejo-vos muita sorte em tudo, e felicidades. Não vos esquecemos.
Abraços da Aldinha

Carta de Ernesto Lara Filho (Coimbra) a Lúcio Lara

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