Carta de Lúcio Lara a Ernesto Lara Filho

Cota
0011.000.098
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel comum
Remetente
Lúcio Lara
Destinatário
Ernesto Lara Filho
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
2
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Carta a Ernesto Lara Filho [dactilografada] Casa[blanca], 28 de Março [1960] Meu caríssimo Ernesto Ainda não tinha fechado a máquina, depois de te escrever, quando me chega­ram dois envelopes teus, um com recortes e outro com a t/ carta. Tens razão quando te firmas na posição de repórter que tem que agarrar a notícia do momento para a transmitir aos seus leitores, sem poder ter a preo­cupação de ser profundo. De facto é um aspecto importante a ter em conta para analisar o trabalho de um repórter, e eu menosprezei um pouco esse pormenor. Nota porém que é a formação do repórter que lhe pode dar este ou aquele cunho ao transmitir uma notícia. Decerto é muito diferente a maneira de informar dum repórter do Diário de Notícias (para já não falar do D. da Manhã) e a dum repórter do Diário de Lisboa (para não falar na República). Cada jornal defende a sua capelinha e o repórter tanto como outro redactor, tem que respeitar essa capelinha. Isto para transportar o problema ao aspecto local da imprensa portuguesa. Cabe exactamente referir aqui a tua 2ª carta, a do Carnaval, da qual com razão te podes orgulhar, pois está bem feita, directa e contundente, sem perder um ar poético que lhe dá um tom agradável. Aí tens como mais facilmente podes ser apreciado pelos Angolanos, é falando directamente dos seus pro­blemas. Há uma distância grande, enorme, entre esta 2ª carta e a 1ª1, para melhor claro. Sem dúvida o Luandense gostou muito mais dessa carta, que, pelo contrário deve ter desagradado em muito maior grau aos tipos de mentalidade colonialista. Daí o facto de o jornal, muito sorrateiramente, lavar daí as suas mãos. E isso muito justamente porque tu desta vez estás muito mais próximo dos Muceques do que das cervejarias da Baixa. Parabéns, pois, e continua. Abstenho-me de comentar um ou outro "aportuguesamento" que a carta encerra, por já termos trocado impressões sobre o problema e admitir que sejam essas coisinhas que permitem que outras de mais interesse passem. Insisto porém em dizer que há certas coisas que se devem evitar escrever. Dizes que vais tentar o 7º ano. Desejo-te um bom trabalho. Quer dizer que é possível que sigas Direito? Em Coimbra toma cuidado com os falatórios. O meio é muito pequeno e tudo se sabe. Ainda lá está o Sachetti [chefe da PIDE], concerte­za... Não me agrada muito escrever-te ao cuidado seja de quem for, a não ser para te dizer que estou bom. Mas não para trocar impressões sobre isto e sobre aquilo. Aliás Pensão Jardim é muito vago. Não arranjarás tu um endereço mais seguro? Bem sabes o que é uma pensão. E o teu endereço de Lisboa? O American Lit[eracy] Ag[ency] era muito cómodo para pôr no envelope, em vez do teu nome. Diz algo acerca deste problema. Como te disse na carta anterior tu podes escrever sempre para Liège, se voltares por estes tempos mais próximos à Europa, escreve-me pª a C.P. 800 Conakry. Isto se não receberes aviso em contrário. Recebi os recortes, estes e os da carta anterior. Quanto ao do D. de Lis­boa (transcrito da Voz) não há quase nada a dizer. Apenas que a reacção à opinião pública internacional começa em Portugal. Os senhores estão aflitos, porque se começa a falar deles, o que até agora era muito raro e lhes permitia fazer a sua politicazinha à vontade. Não sei se sabes que o julgamento de 7/3 foi adiado, não sei ainda para quando. Se tu souberes manda-me logo dizer. A esse adiamento não deve ser estranho o facto de dezenas de organizações de todo o mundo terem enviado telegramas de protesto para Angola e para o Terreiro do Paço. Isso assusta-os. Não quer dizer que eles não façam o julgamento, não. Fá-lo-ão e tentarão ser mais severos ainda. Mas isso obriga-os a actuar com muito mais cautela e ao fim e ao cabo a desmascararem-se. A verdade é que não tinha saído nenhuma notícia na Metrópole, falando tão desenvolvidamente dos julgamentos. E dos réus. Agora são obrigados a fazê-lo e a informarem de facto a opinião pública portuguesa. Já Salazar no seu discurso de Maio passado ten­tava atribuir a um complot internacional a origem de determinados aconteci­mentos nas colónias portuguesas. Isso é uma conhecida manha daquela gente, pois afirmando que a origem dos movimentos de emancipação vem de fora e não do interior eles pretendem fazer crer que no interior não há tipos capazes de pensarem em emancipações, que justificaria ainda mais a sua presença. Nota como eles acentuam que os Angolanos estão há muito fora de Angola, o que como tu sabes não é verdade, pois aqueles precisamente que eles citam, à excepção de dois ou três, deixaram Angola há muito pouco tempo, no máximo há dois anos, e já lá lutavam pela libertação. Vê também como eles acentuam a presença de estran­geiros. Todos eles eram marítimos que se limitavam a ser portadores de cartas que se esquivavam à censura apertadíssima imposta pelas autoridades colo­niais. Mas os tipos tendem a todo o custo fazer crer que eles estariam impli­cados em questões de direcção. Isto é muito para meditar, meu caro. Na tua carta há uma passagem que eu não quero deixar de comentar por a considerar de certa importância. Tu negas o direito à independência imediata. Isto é um ponto fundamental de desacordo. Tu dás a entender que o problema deve resolver-se mais ou menos do seguinte modo: primeiro o Branco deve educar o Negro, para que este saia do seu "estado quase bárbaro" para poder conviver pacificamente com o Branco, quando tiver independência política. Mas ó Ernesto, quando pensas tu que o Branco quererá dar educação ao Negro para que ele obtenha a sua independência? Isso é ainda ingenuidade da tua parte. E uma ingenui­dade perigosa, na medida em que ela pode formar opiniões. Debruça-te um pouco sobre a história de África. Nunca o europeu se preocupou em educar honesta­mente o africano; a educação que porventura se deu foi sempre função da ne­cessidade de uma mão-de-obra especializada, e de se pretender por outro lado dar a aparência de missão civilizadora que justificasse a presença europeia em África. É certo que há uns tempos para cá apareceu a UNESCO com as suas missões culturais e campanhas de educação de adultos, etc. Isso corresponde a uma época histórica nova, o após guerra, de que não interessa prolongar-me aqui muito. Mas no meio do quadro miserável que é a África, ressalta a miséria mais insólita das colónias portuguesas. Tu podes dizer que a França, a Inglaterra... etc. Mas não, não foi o colonialismo francês que educou os Africanos. Foram as instituições liberais da França e da Inglaterra que permitiram que alguns Africanos aproveitassem os benefícios da educação e se preparassem melhor para gerir os destinos das suas terras. Com Portugal a coisa é diferente. Nós suportamos um regime colonial e fascista o que é de facto grave. É certo que uma vez adquirida a independência se porão os problemas de quadros, mas a verdade é que SÓ A INDEPENDÊNCIA PERMITIRÁ AOS NOSSOS POVOS GUINDAREM-SE A UMA SITUAÇÃO SOCIAL MAIS PRÓSPERA. ENQUANTO VIVERMOS SOB REGIME COLONIAL, ESTE, POR DEFINIÇÃO TUDO FARÁ PARA MANTER A POPULAÇÃO NUM ESTADO DE ATRASO SOCIAL. É essa a razão por que somos pela INDEPENDÊNCIA IMEDIATA. Este imediata entende-se por uma independência dentro dos mais curtos prazos. A menos que o Governo português pretenda um dia, arrastado pela força dos acontecimentos, negociar o processo dessa independência. Não te disse tudo. Fica para outra vez. Mas peço-te que peses as nossas razões. Que vejas que é um erro pensar que é preciso educar primeiro o povo... Isso não será possível sob a pata colonialista. E nada mais por hoje. Um bom abraço. Ainda podes escrever pª aqui até ao dia 1 de março [quereria dizer Abril], pois eu parto em princípio, a 4. Saudades à Aldita [Alda Lara] de todos nós. Um bom abraço do teu Lara CUIDADO COM A FRONTEIRA PORTUGUESA.

Carta de Lúcio Lara (Casablanca) a Ernesto Lara Filho

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