Carta de Lúcio Lara a Ernesto Lara Filho

Cota
0011.000.095
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel comum
Remetente
Lúcio Lara
Destinatário
Ernesto Lara Filho
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
8
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Carta a Ernesto Lara Filho [dactilografada] Casablanca 24 de Março 1960 Meu caro Ernesto Compreendo perfeitamente como te deves sentir nessa tempestade que nesta altura ainda deve assolar o teu espírito. Lamento realmente que não nos tenha sido possível encontrarmo-nos aí [Paris]. Embora não te pudesse servir de Guia, pelo pouco que conheço de Paris apesar de já lá ter estado algumas vezes, podia pelo menos servir de para-choques (passe o termo) contra as inúmeras preocupações que assaltam o teu espírito. O regime educacional português deixa mar­cas profundas e de facto não é impunemente que se passam duas deze­nas de anos fora do contacto de todas as correntes do pensamento moderno, de que a Portu­gal apenas chegam uns leves e deformados ecos. Cuidado, po­rém, que nem tudo o que sentes faltar-te se transforme em complexo de infe­rioridade. Os tipos com quem lidas aí tiveram a felicidade de poderem desen­volver-se num ambiente de livre crítica, tiveram a possibilidade de escolha facilitada por uma in­formação vasta, de todas as correntes, tiveram a "Resis­tence", pª não falar na Revolução, e apesar disso ei-los à beira de um cata­clismo que eles não têm sido capazes de resolver. O povo francês actualmente é um povo que vive dos rendimentos acumulados durante muitos anos de bom trabalho mas, talvez por essa mesma razão, perdeu-se num labirinto de ideias de que ele já não sabe mais servir-se para arrumar a sua casa. A França, porém, continua a ser ainda o País ideal para se procurar um caminho; para isso é preciso viver lá algum tempo, o que pressupõe que um indivíduo seja rico ou não se importe de passar FOME. Mas é evidente que se pode muito bem passar sem a França, no que res­peita a escolher um rumo a dar à vida. Aliás, quando digo França, quero refe­rir-me a Paris, pois só em Paris é que existe todo esse frenesim capaz de inspirar as grandes realizações. De resto tenho a certeza que tu próprio encontrarás o teu caminho, depois de digerires (com uns 'Vidagos' a ajudar) todo esse banquete. Qual­quer das hipóteses que pões (jornalismo, Direito ou regresso) são de consi­derar. Tu poderás muito em breve escolher sozinho uma destas soluções. É neces­sário que te não deixes dominar pelas primeiras impressões. Pesa tudo e tenta dis­cutir as tuas novas ideias com este e aquele parceiro. Nunca te po­nhas num ponto de vista afirmativo. Põe-te sempre na posição de que estás interessado em saber a opinião dos outros para melhor formares a tua. O Philippe Decraene é correspondente do Monde pª assuntos africanos. A leitura do seu livro deve ajudar-te um pouco, mas não te deve convencer. É um francês a escrever sobre africanos, incapaz portanto de ser realmente objec­ti­vo, uma vez que não quer abdicar da sua posição francesa. Tenta ler os discursos do Touré [Sékou T.], lê o Discours sur le Colonialisme do Césaire [Aimé C.] e tenta sem­pre ir às origens pª formares a tua opinião. Não quer dizer que deixes de ler o Decraene e outros como ele, pois essas leituras têm a vantagem de te darem uma larga informação. Para FORMAÇÃO, porém, tenta sempre ir às origens, isto é, tenta ler autores africanos. A Sarah [Maldoror] pode-te emprestar um ou outro livro da Présence Africaine que tu escolherás de acordo com o assunto que mais te interessa. Evidentemente não penses que as leituras bastam, mas já não é mau que se tenha uma ideia séria do problema. Só depois se pode tentar atacá-lo a fundo. Como jornalista, atribuo-te porém responsabilidades que deves tentar, que estou certo que tentarás, cumprir. Deves agora ter uma ideia do que é o jornalismo português. A censura fez com que o jornalismo em Portu­gal e nas coló­nias fosse de uma pobreza assustadora. Naturalmente isso re­flecte-se no lei­tor, que passa a acostumar-se àquele tipo de jornal e deixe de ser exi­gente engolindo tudo o que lhe impingem. Conheço alguns jornalistas em Lisboa que estão conscientes deste estado de coisas e que tentam c/ as poucas armas que têm ao seu dispor, modificar o panorama. E isso não será pª já e depende de imensos factores, um dos quais, a queda do actual regime portu­guês. Mas é preciso que se esteja preparado, para quando o ambiente mudar e isso carece de estudo e dedicação. A tua carta é um documento que eu conservarei ciosamente. Ela põe pro­blemas de uma actualidade flagrante e a tua "abertura" é útil porque ela fará com que se pense no problema das inúmeras pessoas como tu. Faz-te impressão veres os negros abraçados às loiras parisiennes. Nada mais natural. Isso é afinal uma demonstração concreta de que colonialismo português (que se defen­de de ser RACISTA e que muitos como tu acreditam que não o seja) é tão racis­ta como o da União Sul-Africana, apenas se manifestando por outros meios. Tu lá ti­nhas o bichi­nho, tu que desde sempre te deste com africanos, que tens afri­canos na família e que tens tomado posições favoráveis ao povo africano. Lembro-me dos meus tempos de Coimbra, quando em cavaqueio c/ a malta do ACE ali na Pr. da República. Havia muito coimbrão que gostava de falar com a malta africana e que condenava categoricamente todas as manifestações de racismo. O Eduardo [dos] Santos (lembras-te?) só ou­via. Quando a discussão estava muito acesa e quando final­mente o orador esta­va con­vencido de que tinha con­vencido a assistência de que nele não havia uma par­cela de preconceito ra­cial, o Santos perguntava à amigo da onça: "Se tiv­esses uma irmã gostarias que ela casasse com um negro?". Evidentemente a resposta era em geral "que a irmã podia casar com quem muito bem lhe apete­ces­se", mas o orador ficava sempre suficientemente engasgado para que nós pudés­semos ava­liar até onde é que ia tanto idealismo... Não sei se percebes o que quero di­zer. Tu tiveste a hones­tidade de declarar que isso ainda te impres­sionava e isso é um passo muito sério. Tenho a certeza que partindo dessa po­sição tu saberás refazer-te nou­tras bases, tomando em con­sideração outros valores. Naturalmente que o am­biente colonial português, sobretudo em Angola, é muito mau para que um indivíduo como tu se consiga liber­tar dele. Eu próprio, malgré as minhas raízes afri­canas, tinha nos meus tempos de liceu um certo número de preconceitos origi­nados pelo meio ambiente em que fui criado. Mas liber­tei-me facilmente deles, já porque quando comecei a perceber o mundo notei que havia muita coisa erra­da em todos os meus alicer­ces, já porque tive a felicida­de de poder desde cedo estar em contacto com alguns dos inúmeros problemas de tipo social que preocupam todos os tipos com uma ninharia de consciência. Naturalmente não se te pode exigir que tomes posições de franco-atira­dor, num meio como o da Angola actual, em que os colonos só agora começam a compre­ender que afinal existe um povo de quatro milhões e picos de almas que não pode ser sempre tido à l'écart e que no fim de contas é o verdadeiro dono da terra, ele que a cultiva, ele que a trabalha com as suas mãos, ele que foi espoliado sem a mínima comiseração. Não, não é de aconselhar que armes em franco-atirador. O combate vai ser duro para todos. Se há Europeus que sou­beram compreender que estavam em terra alheia, a maioria, a maioria esma­gado­ra está-se absolutamente nas tintas pª o que pensa o Africano. O Zé Au­gusto uma vez em conversa comigo (estava ele a curar o seu desastre do ano passa­do) falou-me do que se estava a passar no Congo dito Belga nestes ter­mos: "Aqui­lo lá está tramado: imagina que as pretas já querem o tratamento de Madame e os pretos o de Monsieur". Eu não fiz comentários, porque há cer­tas coisas com que não vale a pena perder tempo. O Zé é um bom rapaz, mas vive numas con­dições sociais em que não se pode dar conta do que devem ser as rela­ções humanas e do que se está processando no mundo nesse sentido. O Zé Au­gusto não é um caso único e infelizmente a maioria esmagadora dos rapazes europeus ou descendentes de europeus pensa como ele, e agirá como qualquer "afri­kander", quando se puser o problema da emancipação do povo africano de Angola. É muito para nos entusiasmarmos quando tipos como tu tomam consciên­cia do passo em falso que se preparavam para dar e tentam pôr-se na posição mais justa, mesmo que essa posição acarrete apenas um observar pacífico dos acon­tecimen­tos. Claro que esta hipótese é, apesar de inofensiva, pouco dese­já­vel, so­bretudo pouco consciente. Mas isso era o mínimo que se podia desejar dos Europeus em Angola. Qual afinal o caminho que deves seguir? A ser-te franco, meu caro, não sei indicar-to. Tu começas a ter consciência da gravida­de dos problemas que pretendemos enfrentar e que são latentes tanto em Ango­la, como em qual­quer parte onde se tenha imposto um regime colonial. Esse é afinal o pri­meiro passo, um passo indispensável. Será o épanouissement (passe o francesis­mo - um ano fora do contacto da língua portuguesa, fazem-nos es­quecer os termos) da tua consciencia­lização que te indicarão o caminho a seguires, que pode afinal ser connosco e que também pode ser contra nós (não acredito nesta hipótese, mas admito-a no campo da possibilidade). E pode vir a ser contra nós porque tu podes encon­trar outros caminhos que parecendo que conduzam ao mesmo fim, divirjam essen­cialmente e sejam antagónicos dos fins a que nos propomos. Não é para espan­tar que eu te fale neste aspecto. Dois exemplos serão suficientes para veres que isso é possível: - o primeiro é o caso de eu conhecer em Por­tugal muito aderente do partido comunista que não é comunista, e que pensa que o é, porque não existe outro partido político que satisfaça as suas necessi­dades. Se um dia Port[ugal] tiver um regime democrá­tico, tais "co­munistas" entrarão em conflito com o partido comunista, porque se darão conta que o que lhes pare­cia preencher as suas necessidades políticas exige deles muito mais do que eles pensavam; é que na clandestinidade o partido comu­nista não tem con­dições para seleccionar e preparar os seus aderentes. O segundo é o do que se passa por exemplo aqui no Marrocos: hoje o Marrocos é à face do mundo um país independente. Durante a ocupação francesa uma série de tipos uniram os seus esforços numa causa comum - a expulsão do colonialismo fran­cês. Nesses tipos havia gente de várias tendências, algumas das quais vulne­ráveis à acção dos agentes do colonialismo e do imperialismo interna­cionais. Con­quistada a independên­cia, vê-se que se trava um combate de vida ou de morte entre duas facções. De um lado estão os que ao lutarem pela independên­cia o faziam com um programa bem definido pª a melhoria das con­dições so­ciais; de outro lado os que sempre estiveram ligados aos interesses franceses e preci­samente aqueles que durante as lutas pela independên­cia o fizeram sem um conteúdo revolucionário e que hoje são mano­brados por uma série de forças que pre­tende prolon­gar a situação colonial, atrás de uma fachada de inde­pendência. Eis pois alguns dos escolhos que se te porão. Claro que a estes exem­plos não juntei os que dizem respeito aos valores que se entrechocam durante as próprias lutas pela independência. Tens exemplo disso na oposição existente entre o FLN e o MNA que leva uns e outros a tentarem eliminar-se, por se dizerem cada um o verdadeiro representante do povo argelino, posição que hoje ninguém pode contestar ao FLN. Mas ainda mais concretamente não quero deixar de te citar o que acontece por exemplo nas Rodésias, onde os colonos querem a in­dependência para serem eles a explorar directamente o povo africano e as suas riquezas. É afinal o que por várias vezes se esboçou em Angola. Evidentemen­te, omito aqui muitos aspectos detalhados dos diversos antagonismos de interes­ses que podem opor-se durante ou post uma luta de libertação nacional. Apenas me refiro a eles para que medites. Seria a tua ocasião de perguntar, como o fazes aliás, o que queremos nós. A tua pergunta não é aliás directa e exprime-se pelos receios que mani­festas quanto ao teu lugar numa futura sociedade angolana, e mesmo quanto à uti­lização possível dos teus esforços numa luta de libertação. Eis um problema chato para ser enunciado por carta. Tentarei esboçá-lo em linhas genéricas. E isso porque ninguém adivinha o futuro. Não posso pois dizer-te qual será o teu lugar na futura sociedade ango­lana. O que nós desejamos, sobre este assunto, é que todo aquele que, sen­tindo-se angolano, souber respeitar os seus deveres de cidadão, tem direito a considerar-se na sua pátria. O Angolano do futuro não será necessariamente negro, nem na Angola do futuro haverá, legalmente, preconceitos raciais. Esse é o princípio por nós adoptado. Não quero com isso dizer que não exis­tam organizações em que se pretenda fazer uma certa discriminação racial ou tri­bal, mas nós lutamos e lutaremos contra isso, e sobre esta questão acre­dita­mos sincera­mente que, à semelhança da política já seguida noutros países afri­canos in­dependentes, os futuros responsáveis de uma Angola livre saberão en­contrar as bases indi­cadas para o desenvolvimento harmonioso da terra e das suas gentes, independen­te­mente de quaisquer diferenças raciais ou sociais. Quanto à utilização dos teus esforços na presente luta de libertação, não tenhas a mínima dúvida de que eles serão aceites logo que haja condições para o serem. Tudo depende afinal de uma disciplina a que nós temos e devemos submeter-nos. Neste momento a tua colaboração é possível nos moldes em que a tens prestado até aqui. Não te consideramos "engajado", nem nos consideramos engajados contigo. A tua colaboração é bem-vinda. Poderás dar-lhe se tiveres possibilidades um cunho mais concreto, recebendo e difundindo "entre gente séria" a papelada que porventura receberes da nossa parte. Para tua segurança pessoal, creio ser de evitares um certo tipo de conversas com gente do tipo do Margarido, cujas inconfidências podem ser desastrosas. A que título te teria ele dito por ex. que nós íamos ser "convidados" a regressar? O que pensará ele que tu sabes de nós? A atitude de alguém que pretende lutar por uma causa como a nossa tem de ser "revolucionária". Não pode ser de modo algum idea­lista. O idealismo numa luta de libertação é uma pecha fatal. E olha que é muito difícil curarmo-nos dessa doença que é o idealismo. Nestes tempos tenho sofrido muitas desilusões exactamente porque ainda sou muito idealis­ta. É dife­rente lutarmos por um ideal e sermos idealistas. Creio que estás de acordo. O idealismo faz com que tombemos facilmente nos inúmeros escolhos que se nos deparam. O ideal é afinal aquilo que mantém viva a nossa vontade de lutar contra todos esses obstáculos. É certo que a evolução de um tipo sozinho é difícil. Nem é esse o qua­dro em que se deve procurar evoluir. Se estiveres em Lx. [Lisboa] podes procurar um convívio mais frequente com estudantes angolanos, tentar discutir com eles cuida­dosamente um certo nº de problemas, expores com franqueza (ainda que com certa reserva) a tua maneira de ver, procurando exactamente confrontar as posições recíprocas. Se falares com estudantes africanos, verás quais são os pontos em que as tuas ideias lhes não interessam e qual a razão. Poderás enfim fazer um esforço de compreensão de problemas que até aqui nunca te surgiram. É natural que a princípio também sejam reservados contigo, mas se se certificarem que és honesto nas tuas intenções poderás contar com o seu apoio e poderás também dar-lhes o teu apoio. É de notar que quando se fala em naturais de Angola (o termo é ambí­guo) há que esclarecer se é um natural Angolano ou Português. A Asso­ciação dos Natu­rais de Angola é actualmente uma organização que serve os interesses dos Portugueses em detrimento dos Angolanos. Espero que não tenhas dúvidas sobre isso. 28/3 Esta carta sofreu uma interrupção forçada de alguns dias. Continuo hoje a ver se ainda ta mando a tempo de me responderes antes de eu abandonar o Marrocos. Devo partir no próximo dia 4/4 para Conakry, onde é possível que me fixe por algum tempo, pelo menos até o Congo ser independente. Claro que não tem interesse espalhar isto lá pelos Portugais. Podes dizer à malta africana que me conheça, mas não interessa fazer muito espalhafato com isso. Quando os meus vierem a férias podes também dizer-lhes. Agradeço-te mesmo que lhes escrevas para lá (de Lx.) e lhes digas que vou trabalhar na Guiné, e que podem conti­nuar a escrever-me pela mesma via utilizada até aqui. Quanto a ti idem, uti­lizas a via Liège. Como já te disse uma vez, não é conveniente pores o meu nome no enve­lope. Basta pores Mouradian Z. Place etc... Quanto tempo tencio­nas demo­rar-te ainda aí? Claro que de Paris podes escrever-me directa­mente para aqui toda esta semana, ou para Conakry depois desta semana. A m/ C.P. em Conakry é provisoriamente nº 800. É evidente que de Portugal ou de territó­rios portugueses não deves utilizar essa caixa postal. Escreve nesse caso pª Liège, para onde agradeço que continues a mandar os jornais, até eu ver se consigo outra maneira de os obter. Espero que me continues sempre a escrever dando-me notí­cias de todos e de tudo o que julgues poder interes­sar-me, pondo-me também a par das tuas actividades e dos teus furos jorna­lísti­cos. Depois deste introito continuarei a tentar responder à tua carta. Manda-me essa tua carta que saiu no Carnaval e que saiu "à rasquinha". Se não quiseres mandar o recorte, manda-me uma cópia. Como creio dizer atrás a tua ajuda, honesta e desinteressada é bem-vin­da. Sem compromissos por ora. De ambas as partes. Eu não te darei a carta de condução como nos tempos da Aurora [Fazenda Aurora], pelo simples facto que eu próprio não sou um condutor. É a condição infame a que estão sujeitos os povos africanos das colónias portuguesas que faz com que tenhamos de ser nós, os seus intér­pretes cá fora. Os verdadeiros condutores estão no País, alguns malhando com os ossos na cadeia. Esses são os legítimos condutores, porque eles viveram o seu dia-a-dia com o povo e sabem portanto interpretar melhor do que eu os verdadeiros anseios. Neste momento porém cabe-me uma parte dessa responsabi­lidade. Mas isso é acidentalmente. Não vejas portanto em mim outra coisa que um elemento de base da luta pela libertação de Angola, que tendo a sorte de escapar à PIDE se esforça com outros companheiros de luta, por dar a co­nhecer ao mundo a verdade sobre o sistema colonial português. E vamos lá que muito se tem fei­to. Não há dúvida que os governantes portugueses vão ter de decu­plicar os seus es­forços para tentarem, em vão, apagar o que deles já se co­nhece quanto a mé­todos coloniais. E ei-los que se apressam a fortificar as zonas inquie­tas (Angola e Guiné), ao mesmo tempo que dizem que tudo está tranquilo. Em vez de acerta­rem o passo com o momento histórico, os colonia­listas portugueses preparam-se para abafar em sangue o legítimo desejo dos povos africanos sob seu domínio a autogo­vernarem-se. Em vez de desde já faze­rem um plano coerente de emanci­pação, eles gastam dinheiro com tropas e mate­rial de guerra, sem se lembrarem que a França, país poten­cialmente supe­rior, teve de ceder a Indochina apesar dos seus Generais e que com mais de meio milhão de ho­mens na Argélia e com a ajuda da NATO não vencerá nunca o povo argelino. Mas os governantes portugueses e os interes­ses que eles de­fendem não vêem isso. Estafam-se a apregoar uma unidade da Pátria portuguesa, que só existe no papel, repetem-se na ONU com meia dúzia de argu­mentos ridí­culos e anacró­ni­cos, apelam pª todos os seus heróis de outrora e não reco­nhecem sequer que a sua colonização em nada melhorou o nível de vida das populações e em quase nada beneficiou o futuro da terra. Também por lá em nada mais se fala do que nas obras. E são as obras pª aqui, e são as obras para ali. Mas per­gunta-se: Que obras? Ah, as casas? Ah, as pontes (pou­cas, aliás), as es­tradas (muito berazinhas, valhanosnossosenhorje­suscristo), as barragens (quantas?)? Sempre é alguma coisa. Mas a quem servem essas obras de que tanto se fala? A quem vai beneficiar o II plano de fomento? À população nativa? Não, que ideia. Vai beneficiar sim os capi­talistas, os industriais, os Bancos, e meia dúzia de trutas. O povo africano? Esse é a mão-de-obra, que é tão escassazi­nha, benza-nosdeus. De resto lá estão os senhores missionários para cuidar deles. E olhem que até fazem grandes sacrifícios, coi­tadinhos, sem­pre com a barba por fazer (para impor respeito, que o "preto" é uma crian­ça que acredi­ta que só os tipos que têm barba é que são homens). Mas... e esco­las? Será que os mis­sionários terão um mínimo de preparação pedagógica? Será que mesmo essas escolas das Missões são em número sufi­ciente? Claro que não, também era o que faltava. Essa coisa das escolas só serve para criar embara­ços. Essa gente depois começa a ler isto e aquilo, começam a perceber que estão a ser leva­dos, e depois quem é que os aguenta? E a As­sistência? Ah, essa é muito boa, sim senhor. Até há brigadas para com­ba­ter a doença do sono (tripanosso­míase). É que sabe, essa coisa da doença do sono é uma catástrofe. O "preto" já de si é tão preguiçoso, se depois ainda lhe dá a doença do sono o tipo fica doente, não trabalha, acaba por morrer, e lá estamos outra vez enrasca­dos com a mão-de-obra. O Governo nisso nem actua como devia ser. Sabe, é que morre muita gente, diz-se mesmo que a mortalidade cá em Angola é das maio­res de todo o Mundo. Imagine o que isso representa para quem aplica aqui o seu rico dinhei­ri­nho... Claro que não se sabe qual é o índice de mortalidade. Eu cá também sou fraco em Estatísti­cas, mas o governo também não a publica porque isso seria uma maçada. Salta­vam-nos em cima esses douto­res da Organi­zação Mun­dial de Saúde, que agora andam todos com a mania de salvar a África e isso seria muito mau pª Portugal. Essas Sociedades internacionais, até já fizeram com que agora seja proibido bater nos "pretos". Há tempos o meu cozinheiro apare­ceu-me bêbado, dei-lhe uns sopapos e o "estapor" foi-se queixar à Curadoria [dos Indígenas]. O que me valeu é que o Secretário é conhecido duns parentes de minha mulher e lá me avisou que tivesse cuidado, pois até podia ir parar à cadeia. Se já se viu. E isto para não falar nos contratados, que é cada vez mais difícil ar­ranjar e que saem por um dinheirão. Quando para cá vim, até tive escravos, es­cravos, simsenhor. Agora é isto que se está vendo. Dois contos de réis, para os ter uns mesinhos, que quando eles sabem fazer o serviço, vão-se embo­ra. Uma desgraça. É por essas e por outras que eu estou a pensar juntar os meus pata­cos e ir morrer pª a minha aldeia. Bem, deixemos este fraseado tão nosso conhecido e que não responde aos problemas que puseste na tua carta. Angola não será nunca um 2º Brasil, pelo menos do ponto de vista socio­lógico. Isso são fantasias do Gilberto Freire que está convencido (estará?) de que descobriu o luso-tropicalismo. O Brasil fez-se no século passado. A mestiçagem deu-se por necessidade. As mulheres brancas escasseavam e não se metiam em aventuras e vai daí porque não dormir com uma negra ou com uma índia? Claro [que] os filhos mulatos apareceram à centenas, até porque os colo­nos não se deitavam com as mulheres só uma vez. O que se passou depois é o que se sabe. Havia muito mulato e muita mulatchinha. E o povo foi-se mistu­ran­do, e como havia muita gente, uma grande maioria do povo brasileiro veio mesti­ço. Hoje as coisas já não se passam tanto assim. Até porque em geral o povo negro do Brasil é o mais pobre. Mas deixemos o Brasil que é apesar de tudo um caso complexo, dado que o problema colonial se desenvolveu segundo coorde­na­das muito específicas. Vamos até Angola, nem vale a pena falar em Moçambi­qu­e... Os nossos Pais quando lá chegaram só encontraram a mulher do tio Gou­veia, como único exemplar de fêmea branca. E que feia que ela era... E apesar dis­so, se não estou em erro, ouvi falar de ciúmes da parte do tio Gouveia em relação aos sobrinhos. Mas eles eram rapazes. E tinham que ter mulher. Lá se juntaram às mulheres negras. Uns mais tempo, outros menos, até que vieram a Portugal casar. Pois bem, essas primeiras ligações juvenis deram filhos. Como os nossos Pais houve centenas nas mesmas condições. Daí veio uma popu­lação mestiça acentuada nas primeiras décadas deste século. Será isso sufi­ciente para falar numa fácil miscigenação do português nos trópicos? Vamos ver a questão de dois ângulos: Houve de facto uma miscigenação acentuada no princípio do século. Ela explicou-se pela falta de mulheres europeias. Hoje a população mestiça está em franca decadência e muito raramente um branco se junta a uma mestiça ou a uma negra, dado que a mulher europeia abunda muito mais. Começa portanto a desfa­zer-se o equívoco que consistia numa afirmação de fácil cruzamento de raças. Por outro lado, e em segundo lugar, na maior parte dos casos os filhos desses "erros de juventude" não foram reconhecidos pelos Pais, sendo as Mães quem deles cuidou até os lançar na vida. Isto é um facto comprovadíssimo, e desfaz o equívoco da tendência do português para constituir família "tro­pi­cal", dado que o simples facto de semear uns tipos por aqui e por aqui não consti­tui razão para se chamar a esse fenómeno estabelecimento de família. Ao que parece, sobre isso não tenho dados presentemente, há noutros países de África (ao que parece Rodésias) uma maior percentagem de mestiços do que em qualquer outra colónia portuguesa. Isto tudo para te dizer que não acredito que Angola venha a ser um futuro Brasil, no que toca ao aspecto sociológico. Economicamente, o poten­cial de Angola será comparável (em proporção, claro) ao Brasil. Ainda bem que lês o Monde. É de facto um jornal muito bem feito, e que pretende (não o consegue) ser objectivo. Não te deixes portanto enganar. Há cer­tos problemas que o Monde não consegue suportar objectivamente, nomeada­mente tudo o que se relaciona com a Guiné. Não, nisso o Monde é demasiado francês (cheio daquela Grandeur Gaulliste) e não suportou nunca que a Guiné tivesse batido o pé ao De Gaulle. Pª já não falar na Argélia. Mas em suma é um jornal tecnicamente bem feito e o que melhor informa sobre o que se passa em África, sobretudo África de expressão francesa. Quanto ao artigo da Suzanne Luzig­nan, se achas que podes fazer uma coisa mais objectiva faz que talvez consi­gamos publicar. A tua carta acaba num tom pessimista que não te fica bem. "Sentes-te como despedido do trabalho... posto à margem... um indesejável". Que idiotice é essa? Creio ter-te feito compreender que de modo algum estás posto à mar­gem. Em gíria futebolística direi antes que estás "nas reser­vas". Tens que trabalhar muito a bola. Dizes que és pela "assimilação". Isso é muito confuso. Assimilação de quem a quem, de quê a quê? O colonialismo português joga precisamente com essa bola. Lá estão os "assimilados" que eles apregoam. "Assimilado" é o que fala portu­guês, o que veste à portuguesa, etc. etc. Nós somos pelo respeito da persona­lidade dos africanos, pelo res­peito das suas tradições, pelo res­peito da sua dignidade. Que haja uma inter­penetração de culturas, isso não é problema. Em todo o mundo, em todos os tempos, a cultura de cada povo edifi­cou-se à custa dos diferentes "apports" que outras culturas diferentes lhe trouxeram. É aliás esse o pro­cesso único de enriquecimento, de evolução de uma cultura. Daí a magnífica cultura do povo brasileiro... Cultura no seu sentido lato, claro. Receias lutar só. Espero que não o faças, pois como tu mesmo o dizes isso seria funesto, mais tarde ou mais cedo. Certifica-te primeiro de que é esse o teu desejo, lutar pela independência de Angola - que não é um fim em si, pois afinal o que interessa é o estabelecimento de bases sólidas que permitam ao povo aproveitar os bens que a terra lhe oferece, mediante um tra­balho cons­ciencioso. E para que todo o povo possa fazê-lo, só liberto de todas as es­cravaturas, só num regime verdadeiramente democrático que se baseie real­mente na vontade do povo. Depois de estares verdadeiramente certo de que as tuas aspirações coincidem, na sua generalidade e em certos pontos funda­men­tais, com as nossas, prepara-te para a luta. Em mim terás sempre o primo, o amigo de todos os tempos, mesmo daqueles em que não contactamos, quando te meteste pelo Mato de Moçambique. Infelizmente o nosso contacto só pode ser feito por correspondência e por isso limitado. Saberás porém pôr sempre cau­telosamente os teus problemas. Tem muito cuidado com o que escre­ves nas cartas. É bem possível que elas venham a ser controladas. Nunca fales em nomes que possas comprometer. Não te comprometas a ti mesmo. Se tratares de uma questão mais melindrosa, o que só deves fazer em última análise e por meias palavras, não assines nem ponhas remetente. Evita conversas de café sobre coisas sérias. Habitua-te a ser cuidadoso com o que dizes, a quem dizes e de quem dizes. Não sei se já te aconselhei que em Lis­boa procurasses o Veiga Pereira. Ele não está metido nas nossas coisas, mas é um jornalista consciencioso (embora desordenado), é um tipo politicamente bem formado, cujo contacto te será muito útil. Podes pô-lo a par das dificuldades que temos dis­cutido e das tuas ilusões e desilusões. Do que pensas, das tuas deficiências, do que gostarias de fazer. Não te entusiasmes. Pensa no que dizes e pesa bem as palavras. Diz ao Veiga tudo o que falámos (espero que não leves estas cartas, o que te seria bastante prejudicial e se as enviares pelo correio destrói todos os nomes que ela contenha (são poucos aliás) com uma tesoura; não as leves contigo). Estou certo de que ele poderá ser para ti um bom compa­nhei­ro se ficares em Lisboa. Através dele é possível que venhas a conhe­cer gente interessante. Procura conhecer o Castro Soromenho. Lê os seus livros, nomea­damente Viragem e Terra Morta. Verás um Europeu que compre­ende e se esforça sempre por compreender o povo africano. Procura falar com ele. É um homem simpático e é um óptimo camarada. E dá-lhe um grande abraço meu. E à mulher tam­bém. E diz-lhe que não me esquecerei que o Valdemar, o catraio dele de quem sou uma espécie de padrinho, pois testemunhei o registo dele, faz anos a treze de Maio e que lamento não poder enviar-lhe nada. E vai-me es­crevendo. Manda os teus artigos e fala-me dos teus problemas, na medida do possível, claro. Podes contar comigo para tudo o que me for possível. Não é muito, cla­ro. Até que ponto? É difícil responder, dado que isso é função do que tu necessitares de mim. Que valho eu? Há um ano que luto para encon­trar possibi­lidade de vir pª África. Julgas que isso é fácil? Julgas que pelo simples facto de um tipo se mostrar interessado em combater pela Inde­pendên­cia e pela Unidade africana se lhe abrem todas as portas? A realidade é bem diferente, meu caro e não calculas os momentos de desalento que por vezes me assaltam. Ainda por cima com mulher e filho... que valha a verdade ainda têm sido o meu me­lhor apoio. Estás pois a ver que no mundo em que eu vivo, na situação em que eu vivo de foragido político e combatente por uma causa, de pouco te posso valer. Mas esse pouco podes dispor dele. E por hoje, basta. Se tiver tempo ainda te escreverei antes de partir, mas é possível que não tenha. Escreve-me a dizer se ficas, se regressas e quais os teus planos. O Mário [M. de Andrade] já regressou? Junto aqui uma folha à parte com umas coisas que agradeço que me envies, se puderes. Claro que agradeço que peças à tia Queca a massa. [Acrescentado à mão na margem: A Ruth manda-te um grande abraço. Dá sauda­des nossas à Aldita e aos teus. Sempre recebeste a carta pª a m/ mãe? Devol­ve-me depois aquela cópia.]

Carta de Lúcio Lara (Casablanca) a Ernesto Lara Filho

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