Carta de Lúcio Lara a Ernesto Lara Filho

Cota
0011.000.081
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel comum
Remetente
Lúcio Lara
Destinatário
Ernesto Lara Filho
Data
Mar 1960 (estimada)
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
2
Acesso
Público

[Manuscrito por Lúcio Lara: «Devolve
Aqui com as perguntas da praxe.»]

Tentemos agora responder aos problemas postos nas tuas duas últimas cartas: Para isso quero falar-te primeiro da carta aberta ao Geral.
    A carta está vigorosa. Não posso dizer se te acho parecido com o Nasser, pois há muito ano (desde os tempos de Coimbra) não leio o Cruzeiro. Mas o estilo está bom, se bem que ainda com certas falhas. Está mais sensacional que profundo, e eu tenho a impressão que ele ganharia mais se o dirigissem neste último estilo. Apenas dois exemplos: "Comparativamente terá os mesmos problemas. Políticos, económicos. Económicos e políticos" Isto é muito vasto. No conjunto a coisa passa, porque ao fim ao cabo tu atiras com umas certas verdades à cara do senhor e até vais ao ponto de lhe pedir que sinta a suavidade das estrelas de Angola. Mas sendo um artigo para o grande público, e sendo precisamente tua intenção fazeres jornalismo honesto e independente, há que utilizar o jornalismo como um meio de educação do público, coisa que em geral aí não se faz… Assim, a meu ver o artigo ganharia mais se concretizasses ou mesmo aflorasses alguns desses problemas económicos e políticos. Claro que uma referência aprofundada não poderia ser feita, mas a arte do jornalista em Portugal deve exactamente ser a de procurar dizer coisas de maneira que o grande público entenda e a censura deixe passar. O outro exemplo, é quando dizes que "Há o problema do ensino. Ora se tu condimentasses o teu artigo (carta) com uns leves números, por exemplo 99% de analfabetos ou ainda inexistência de liceus para a população africana que é filtrada para poder frequentá-los, ou ainda "existência do Estatuto Indígena atentatório da dignidade da população e que acarreta a existência do "Código do trabalho indígena" tão anacrónicos quanto desumanos, tenho a impressão que a carta ganharia em profundidade. Bem sei que não se pode dizer tudo, mas é preciso também procurar dizer alguma coisa mais do que as autoridades desejam. e para isso é preciso que faças investigação por conta própria, que te preocupes com as estatísticas, com os relatórios do Banco e com este e aquele relatório qie te possam dar um índice de como as coisas se estão a passar neste e naquele domínio. O jornalista, tanto quanto o político ou o técnico, precisa de saber manobrar as estatísticas, as taxas de desconto e as taxas de mortalidade, e sobretudo precisa de se preocupar com a política, pois sem isso ele não poderá "agarrar" o que se está a passar à sua volta, não poderá perceber o que vai o Marcello Matias fazer a Espanha ou à Inglaterra e porque é que o Marcello "não Matias", isto é, Caetano está a "rectar" (assenta o neo-logismo) a Universidade de Lisboa, em vez de "ministrar" uma "pasta" qualquer… Um jornalista que não se preocupa com a política não poderá nunca escrever um artigo sobre a ascendência rápida do Congo "chamado belga" à independência, e se o fizer terá de forçosamente falsear o problema para esconder ao leitor a sua ignorância. É o que sempre se passou em Portugal no que respeita aos problemas coloniais. Aos poucos pessoas que aí escrevem sobre o assunto, aldrabam sempre. Umas aldrabam por ignorância, outras aldrabam porque não podem dizer a verdade, com risco de fazer com que a opinião pública portuguesa começasse seriamente a querer saber a verdade sobre a "missão civilizadora dos portugueses"… Tal é o caso por ex. do Adriano Moreira, que é um tipo inteligente, esperto e sabedor, mas que mau grado seu tem a sua obra completamente aldrabada, para salvar aquilo a que em geral aí chamam a "honra da Pátria". Quantos Vexames não terão sofrido os delegados portugueses à ONU pelo facto de terem de sustentar uma posição falta, de que eles próprios não estão convencidos. E olha que a delegação portuguesa à ONU é constituída por gente muito esperta, que afinal se vê obrigada a fazer eternamente figura ridícula, por terem de defender teses velhinhas de há um século, com argumentos de João ratão. Mas afinal estou a derivar… Voltemos à tua carta-aberta. Como te disse a princípio, ela está boa para ser lida pelo habitual leitor dos jornais de Angola, isto é, o colono. Porque são os problemas do colono os únicos que tu afloras: lá estão as divisas, e o chavão CRISE que ele sente como ninguém. Mas repara que não escreveste para seres lido por Angolanos. Com efeito um Angolano estranhará que tu fales "em coordenadas básicas da Nação em África" e que digas "que afinal de contas somos todos portugueses" e fales da "rebita que cantará o "sinhor governatores Girau". E estranhará, porque um Angolano não é um Português, porque um Angolano não entende o "Portugal em África", porque hoje em Angola já não há rebitas espontâneas em que se cante o Governatore Girau e afinal se alguma vez se fez essa rebita deve ter sido a troco duma boa quimbombada… Eis meu caro Ernesto as razões porque não pode ter seguimento o problema que em tempos me puseste e ao qual preferia responder-te de viva voz. Tu és Angolano, mas à portuguesa, e é contra isso que lutamos. Nós lutamos contra o colonialismo português que queremos que saia o mais rapidamente possível da n/ terra. Não pretendemos expulsar os portugueses, mas expulsar o colonialismo português. Os portugueses que quiserem ficar terão de se conformar com a lei que os Angolanos fizerem. O problema não é novo. Aqui mesmo no Marrocos o Governo marroquino faz a lei e os colonos que cá ficaram cumprem-na. É certo que eles ainda têm muita força, mas à medida que o povo se conscencializa o colono perde terreno e a grande propriedade passa para as mãos do Governo Nacional. Isso é o que nós pretendemos em Angola. Primeiro Independência Política, depois Independência Económica. No nosso movimento «o Movimento Popular de Libertação de Angola» de que o MAC era uma expressão particular, militam Angolanos que nada têm de portugueses, a não ser por vezes a língua e alguns hábitos necessariamente adquiridos no contacto imposto a toda a escala. O ex-MAC, que hoje se chama Frente Revolucionária Africana pª a Independência Nacional (FRAIN) é uma frente constituída por aquele movimento, há muito existente em Angola, e o Partido Africano da Independência (PAI) da Guiné dita portuguesa. A tua posição pessoal face aos problemas do colonialismo português ainda não situa num plano em que se possa admitir a tua inclusão. É possível que tu venhas a ter outra posição que mais te aproxime da nossa luta. Hoje isso ainda não se verificou. creio que me terei feito perceber, mas reconheço ser difícil explicar isto numa carta sempre sujeita a ser lida por "curiosos". É pena que não possamos trocar impressões de viva voz. Infelizmente quando tu fores a Paris, já não há possibilidade de nos encontrarmos. Mas talvez um dia o destino nos proporcione mais umas horas de tagarelice, mesmo num país onde não haja bilhares para uma desforra que galhardamente te concedo.
    Ainda sobre a carta-aberta: Quando perguntaste "Dará acesso aos naturais de Angola" pensei que o fizesses para tentar saber se ele dava acesso aos naturais no que respeita à criação de escolas, à abolição de todas as medidas discriminatórias, mas pelo menos a resposta dele mostra que a coisa não foi entendida assim… O Carácter e o mérito está certo. Mas a população africana na sua maioria esmagadora nem sequer tem possibilidade de se apresentar à escolha, simplesmente porque a escolha começa no banco da escola, pª não dizer nas entranhas da mãe… Quanto ao "bigode de Mona Lisa" concordemos em que está bem metido… Resumindo a carta tem aspectos óptimos pelo que ela tem de irreverência há muito arredada do jornalismo português. Quanto a mim (abstraindo do aspecto político, com que, como te expus, não concordo) ela necessitava de ser um pouco mais profunda para ser um excelente trabalho.

Carta de Lúcio Lara (Casablanca) a Ernesto Lara Filho (Paris).

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