Carta de Lúcio Lara a Ernesto Lara Filho

Cota
0011.000.075
Tipologia
Correspondência
Impressão
Manuscrito
Suporte
Papel comum
Remetente
Lúcio Lara
Destinatário
Ernesto Lara Filho
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
8
Acesso
Público

15/3/1960
Ernesto

    Afinal era bem o que eu previa. Contavas encontrar-me ou a algum dos nossos amigos e saíram-te os cálculos errados. Mas sinceramente não percebo o que te teria levado a pensar que eu fosse ou que estivesse em Paris! A França para os Angolanos deixou de ser acolhedora, e mesmo para as pessoas de outras colónias portuguesas como o Marcel e um outro moço a quem a polícia francesa negou o prolongamento do séjour. Sem dúvidas em concubinagem c/ a PIDE.
    Se voltares a Portugal é possível (nunca se sabe) que a Pide te reviste na fronteira. É uma hipótese que pode verificar-se. Por um lado a questão do nome e por outro o ser de praxe. Tem pois cuidado a não levar nada que te possa comprometer. cartas etc. Se tiveres papéis indiscretos, envia-tos a ti mesmo pelos correios. É mais seguro. Não esqueças isto, pode ser que nada aconteça, mas tb pode ser que sim…
    Quanto ao problema da filiação no FRAIN:
    Em 1º lugar a t/ filiação não dependeria de mim, como deves calcular, Mas isso era o menos porque eu poderia apresentar a t/ candidatura.    
    Acontece porém que tu não preenches as mais elementares condições de admissão, dado que o teu entusiasmo sincero em lutar não é suficiente. Algo mais se exige a quem quer lutar ao nosso lado pela libertação de Angola: é que a suposição de ANGOLANO seja inequívoca (aliás a FRAIN não é um movimento só de Angolanos) isto é, que de modo algum haja uma identificação c/ o povo português. Não estás, meu caro, nessas condições. Estou a falar-te francamente pois isso é preciso para que nos expliquemos, e para que a tua boa vontade não seja enganada.
    Ora justamente como eu te disse na última carta a tua posição de intelectual é mais próxima do colono português que do Angolano patriota. Tu amas Angola sem sombra de qualquer dúvida. Mas muito à maneira do colono que vive em Angola, e que a considera s/ terra. Tu não te identificas ainda com o povo angolano, aquele que sofre o trabalho forçado, o que é vítima da discriminação, [?], por exemplo. Tu estás a identificar-te c/ um certo tipo de naturais de Angola, nomeadamente c/ os filhos de colonos que querem continuar a ser os donos de Angola. Os teus artigos revelam isso, principalmente os 2 últimos que li (os dedicados aos chefes do Posto e a Benguela). Eu preferia conversar contigo, c/ as coisas na mão, e explicar-te detalhadamente as razões porque acho prematura a tua inclusão. E nota que digo PREMATURA, porque admito que um dia tu possas alinhar sem equívoco ao n/ lado. Isso pressupõe que tu evoluas politicamente e nessa evolução te aproximas de nós. Simplesmente a evolução não é coisa de um dia. Leva o seu tempo. A n/ Frente (que compreende o Movimento Popular de Libertação de Angola e o Partido Africano da Independência da Guiné) é como os partidos que a formam uma organização política. Como tal ela rodeia-se de um sem número de precauções que evitem qualquer prejuízo. Estás a ver que não será possível admitir nas s/ fileiras pessoas que publicamente batem na estafada tecla colonialista de que é necessário «obrigar o indígena de ordinário indolente» a trabalhar.
    Ora os Africanos não são indolentes, mas sim subalimentados e doentes. Essa coisa dos indolentes tem servido aos colonialistas para justificarem o trabalho forçado. Isto m/ caro não é meu, é dos livros (científicos claro). Aquela frase entre aspas é tirada de um artigo teu dedicado aos Chefes de Posto.
    Outro problema: tu és sincero, és um tipo honesto, idealista. Mas não te debruçaste um pouco a sério sobre os problemas coloniais. Isso leva-te a ter uma posição falsa no meio de tudo quanto pretendes defender. Tenho mesmo a impressão de que ainda não sabes bem para quem deves escrever: pª o colono? Pª o Africano? Naturalmente é o colono quem mais te lê, já porque a maioria dos Africanos não compra o jornal, já porque tu escreves mesmo sem ser deliberadamente a intenção dos colonos.
    Tu tentas dar um ar quando falas em naturais de Angola mas repara que muitos naturais de Angola, sobretudo os filhos de colonos (mas também, reconheçamo-lo, muitos Africanos mestiço ou negro) são dos piores inimigos do verdadeiro Angolano, o que sofre o contrato, o chicote, o que é vítima das brincadeiras de meninos malcriados, do que começa a retomar a sua dignidade e se prepara para pôr as coisas no devido lugar.
    Sabes que Angola e a Argélia têm muito de comum? A colonização, a ocupação, o roubo das terras fez-se da mesma maneira. E a resistência francesa em dar ao povo argelino aquilo que ele tem direito (a independência) não é superior (a n ser talvez em potencial militar) a que os portugueses oferecem em reconhecer ao verdadeiro povo das suas colónias o direito à auto determinação.
    (Aconselho-te antes que me esqueça, leres 2 artigos sobre Angola que vêm no LE MONDE de 10 e 11 de fever. Vai à redacção aí e compras. São pelo menos objectivos).
    Pois meu caro, o que tu precisas é de trabalhar. Tira o t/ curso de jornalismo, mas simultaneamente acompanha a política internacional. Lê o Monde. É um jornal desassociado da preocupação c/ a vida francesa, mas é bem feito. É reaccionário. Mas é bem feito. Lê também o Express. Lê os artigos do Jean Can no Express. Terás a visão do que é preciso para seres bom jornalista que prometes vir a ser. Ao mesmo tempo interessa-te pelas questões africanas. Acompanha o que se passa em África no dia a dia. Medita sobre a situação das nossas famílias e a situação do comum povo angolano. E vê que as nossas famílias (no s/ relativo bem-estar) possuem e têm possuído através dos tempos muito mais que o comum do povo. Quanto mais não seja não sofrem o insulto de terem de estar submetidos a um «Curador» para lhes tratar dos Negócios. Meu caro os problemas são aos milhares. Agarra 5, 6, estuda-os, para que possas sentir-te mais próximo do povo angolano. E lembra-te duma coisa, esse povo não precisa de papá. Nada de ideias paternalistas.
    Esse povo precisa que os seus irmãos mais aptos tentem solucionar imensos problemas que os vitimam. Nada de paternalismos, Ernesto. Isso seria o pior que poderias oferecer ao povo de Angola, que é teu irmão.
    Arrepelo-me por não podermos fazer os dois um serão em que os motivos desta carta pudessem ser bem equacionados e discutidos. Eu sou teu amigo, teu irmão. Mas ainda não te considero meu companheiro de luta.
    Vejo que estás disposto a saltar a barreira e isso alegra-me (embora me preocupe c/ o que possam sofrer os teus). Mas previno-te:
    1º que não estás maduro para o salto
    2º que a luta vai ser dura, mais ainda do que já é para nós.
    3º que podes contar comigo pª os primeiros passos (não do ponto de vista económico, porque estou teso).
    
    De resto tu tens através de mim colaborado na n/ luta, embora de fora. Isso já é algo de positivo. Poderás continuar a fazê-lo, sem te comprometeres, e nós te agradecemos. Mas se queres um dia ser dos nossos, tens que REVER COMPLETAMENTE A TUA POSIÇÃO ACTUAL.
    Meu caro, esta vai à pressa. Não quero deixar-te só e inquieto, sobretudo sabendo o que te trouxe até Paris. Vou enviar-te (não hoje, depois de receber a resposta a esta…) 2 documentos que apresentámos na Conf. de Tunis.
    O Brotas é um bom moço. Não o conheço pessoalmente, mas conheço as irmãs e o cunhado.
    O Marcelino dos Santos está na Bélgica. De facto já foi azar.
    Escrevo amanhã à Sarah. Mas não recebeste o cartão que ia dentro da carta. Comunica-me logo que mudes pª a cidade universitária. Vejo que não te perdes.
    Acrescento ainda que podes continuar a colaborar comigo na medida em que o tens feito até aqui. Isso ser-nos-á muito útil.
    Manda-me a morada do Brotas e do Artur Costa.
    Junto a cópia da carta que te escrevi pª Lisboa. Peço-te que ma devolvas.
    Quando te mandar as coisas mandarei também algumas das fotos que me emprestaste.
    Voltarei a escrever-te quando receber resposta a esta.
    Diz-me francamente o que queres que eu esclareça mais convenientemente.
    Não te chateies meu caro. Eu próprio não sou um político, sou sobretudo um sentimental. Mas há uma dezena de anos que me meti nos movimentos políticos, e ainda tenho muito que aprender.
    A m/ posição intelectual actual, isto é, a maneira como eu encaro os problemas, não tem sido uma constante. Eu evoluí a cada passo e sem dúvida continuarei a evoluir como o tipo que se preza.
    Nada mais por hoje.
    Saudades da família. Vê lá se te aguentas nesse Paris que te pode proporcionar boas crónicas (Não te refiras nessas crónicas a nomes de pessoas, sejam elas quem for, nem sobretudo nas que estão ligadas a nós.)
    À laia de piada; queres nos entrevistar pª o ABC acerca da Conferência de Tunis e da libertação de Angola? Ah! Ah!
    Um apertado abraço.

        Lúcio

Carta de Lúcio Lara (Casablanca) a Ernesto Lara Filho (Paris).

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