Carta de Lúcio Lara a Comité Director do MPLA

Cota
0087.000.046
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel Comum
Remetente
Lúcio Lara
Destinatário
Comité Director do MPLA
local doc
Rep. Federal da Alemanha
Data
Idioma
Conservação
Bom
Acesso
Público
L.Lara
Camillo Sitteweg, 69
6000, Frankfurt/Main 24
Allemagne Fédérale

Frankfurt, 28 de Outubro de 1966

Ao Comité Director do MPLA
Brazzaville

Caros Camaradas

1- Antes de mais, desculpem as inúmeras gralhas que certamente esta carta conterá, mas como máquina de escrever não consegui mais do que este modelo, que tenho a impressão que data do fim da I guerra
2- Esta continua a carta de 21 de outubro que vos enviei de Geneve e que tinha prometido continuar, mas que não pude fazê-lo de lá.
3- Estava eu a falar-vos da Matingo (que teima em se nos atravessar pelo caminho. Sobre o caso Zanotti ele mostrou-me diferentes cartas que me. Zanotti escreveu quer para a Embaixada, quer para Brazzaville (JMNR, etc.) Segundo informações que ele teria colhido junto da Polícia francesa (não sei qual delas), este casal trabalharia em contacto com a Pide, ou pelo menos era muito suspeito disso. Devo dizer que das informações colhidas ao pé de vários círculos simpatizantes do MPLA todas as atitudes do tal casal são de tipo provocatório, pois não se cansam de fazer perguntas indiscretas. Ela aproveitou-se também da estadia junto do falecido Câmara para se documentar sobre o MPLA. Vi mesmo uma carta com a rubrica dela, endereçada em nome da n/ delegação de Paris. Deve dizer-se que ela chegou a funcionar como secretaria do Câmara. Actualmente desempenha as funções de Tesoureira do malfadado Comité. Como vos disse deixei a todos os n/ amigos que me pareceram mais sérios instruções no sentido de boicotarem o Comité, se de todo não for possível correr com essa gente de lá, formando de preferência um grupo de amigos mais clandestino e sobretudo mais eficaz. É porém um problema que carece de estudo daí e de instruções concretas. Aliás não me consegui encontrar com o Morais, que mora não sei onde fora de Paris e que não tem telefone.
Ainda fiz duas tentativas mas sem resultado.
Outro problema que o Matingou levantou foi o Relatório sobre uma Conferência do Réarmement Moral que se efectuou em Caux (Suíça) e à qual ele foi com mais um outro como delegados do Congo-Brazza(!). O interessante é que no relatório que ele faz para aí sobre a dita reunião, fala em meia dúzia de linhas num encontro que teve com angolanos presentes à mesma conferência, que se dizem da UPA e do MPLA e que lhe teriam feito parte de que eles estavam interessados em resolver internacionalmente o problemas das bolsas, dado que quer os dirigentes da UPA, quer os do MPLA, só davam bolsas às raparigas que aceitavam ceder às exigências amorosas dos referidos dirigentes. Claro, isto é uma conversa de xaxa, mas o que faz espécie é que o Matingou tenha julgado oportuno meter isto num relatório sobre o Rearmamento Moral. Fiz-lhe notar isso, e respondeu-me que ele era obrigado a dar conta de tudo ao seu governo. Fiz-lhe notar que certamente os tais angolanos não pertenciam ao MPLA, pois nós temos poucos estudantes na Suíça e não frequentam o Réarmement Moral, mas ele garantiu-me que havia estudantes do MPLA. Calculando que se tratasse do Borges disse-lhe que seriam talvez tipos expulsos do MPLA, mas ele insistiu que eram do MPLA. A coisa não me parece importante salvo no aspecto em que aquele n/ ‘amigo’ continua a não perder ocasião nenhuma para nos criar complicações, sempre com o ar de quem nos está a ajudar. Investiguei o caso com o Octávio, na Suíça, e realmente trata-se do Borges, e de outros estudantes(*) que estiveram ligados à UPA, entre os quais a cunhada do Liahuca... O Octávio aliás tinha sido informado por um desses da embaixada do Congo em Paris.
De notar que ele Matingou já se encontrou com quase todos os angolanos de Paris, ligados ou não ao MPLA. Estou convencido que o tal relatório não fará qualquer impressão aí (se é que será lido), mas em todo o caso achei melhor informar para não haver surpresas...

*[Manuscrito: «(*) caloiros, esposa, etc,»]

4- Passo a dar-vos um resumo do encontro com M. Koulischer, adviser do HCNUR, com quem me encontrei, como vos informei na carta anterior. O encontro durou mais de hora e meia e pode dizer-se que se estabeleceu uma viva discussão entre duas teses opostas defendidas por ele e por mim. Numa, ele defendia a impossibilidade para o HCNUR de contactar directamente com os ‘ressortissants’ de um pais como o nosso. À luz de uma resolução, que cito no ‘ponto de vista’ mostrei-lhe que isso era possível, até porque eles já tinham recebido o Mondlane e estavam-me recebendo a mim naquele momento. Acabou por concordar, com a reserva de que para a execução de programas eles tinham de agir através dos governos que oferecem asilo. Isto é uma verdade que parece ser difícil de contornar, por enquanto. A verdade é que se não conseguimos que um governo (o de Brazza ou o de Léo) patrocinem um programa nosso em relação aos refugiados, nada será possível fazer, por enquanto. Devo dizer que eu só falei no problema da educação dos refugiados, mas o que é válido para educação é válido para o resto. Cheguei sobre este ponto à conclusão que mesmo que o Congo-Brazzaville não apresente ao HCNUR nenhum programa sobre os refugiados, nós podemos, se isso nos interessar, apresentar um que o governo daí patrocina, e que poderá assim ser considerado. E certo que a luta não permite que se dê uma grande atenção aos refugiados, mas não é menos certo que em certa medida nos temos responsabilidades nesse sentido, sobretudo quando algumas medidas a seu favor puderem ser tomadas sem prejuízo material do esforço a dedicar à luta. Que é afinal o caso presente. Como compreender que os 300 mil refugiados angolanos Congo-Léo tenham recebido no biénio 1965-1966 cerca de 65.000 dlls, quando os 15000 de Moçambique na Tanzânia tenham recebido mais de 400.000 dlls,e os 55.000 da Guiné no Senegal tenham recebido no mesmo período cerca de 370.000 dlls. Há algo aqui que não joga e isso é devido ao interesse que os países acolhedores demonstram pelo problema. Claro que os refugiados no Congo-Brazza nem são mencionados. Mesmo com a certeza de que as atribuições orçamentais pagas pelo HCNUR venham a sofrer certas ‘quebras’, até ao momento de chegarem os refugiados, a verdade é que algo chega. Devem estar informados que para os refugiados da Zâmbia (os angolanos) que estão até agora calculados em 2000, o HCR já concedeu (a pedido do Governo da Zâmbia) uma ajuda em espécie e em géneros que totaliza 115.600 dlls. Creio que estes dados são suficientes para exigirem do MPLA uma tentativa de modificar a situação actual em benefício da nossa gente. Voltarei noutro ponto desta carta a este problema, noutros aspectos.

O segundo ponto, ou melhor, a segunda tese discutida com Koulischer foi da ‘estratégia’ -chamamos-lhe assim- do HCNUR na assistência aos refugiados. Na opinião deles, e em particular do Alto Comissário, deve tentar-se a integração total do refugiado no país de asilo, e isso explica que aquele organismo, no capítulo de educação, seja partidário da integração das crianças nas escolas do país acolhedor. Pareceu-me dever defender o ponto de vista contrário, na base de que à la longue, será o país de origem quem virá a sofrer da hemorragia provocada pela guerra, luxo a que a já fraca densidade de população das nossas terras não se poderá permitir. Creio que embora o não tenha convencido completamente, lhe tenha posto um problema difícil que carecia de um estudo profundo, no que eu aproveitei para reforçar a necessidade que para esse estudo deviam ser ouvidos os movimentos de libertação.
Ele manifestou o desejo que o HCR tem de se interessar a sério pelos problemas de educação, e disse que uma das preocupações que o 9ponto de vista? Demonstrava -a da colaboração da Unesco- estava em vias de ser resolvida, pois já tinha havido contactos concretos entre o HCR e a Unesco, o que eu constatei em certa correspondência que me foi dado ler... E curioso que se trava uma espécie de disputa entre Unesco, HCR e a IV Comissão (o Rifai) para o controle dos programas de educação para os refugiados. Creio que o n/ ponto de vista dará uma nova dimensão ao problema, que estava limitado à atribuição de bolsas...
O nosso ponto de vista introduz e reforça a opinião que a Unesco também defende da necessidade de uma programação a sério da educação de base. Talvez isso seja um motivo para a Unesco tomar a sério o nosso ponto de vista.
Resumindo os resultados deste entretien chega-se à conclusão que nos caberá:
I- Interessar o Governo de Brazza em pedir ao HCR apoio para os refugiados angolanos. Para isso basta que eles apresentem um número aproximado, e um programa bem definido, como construção de escolas, etc. O governo de Senegal apresentou nesse sentido um orçamento de 140.000 dlls dos quais 40.000 se destinam (?) à construção de escolas para as crianças refugiadas... E vão receber!!!

II- Nos podíamos contribuir para o programa a apresentar pelo Congo-Brazza. Creio que o CVAAR está em excelentes condições para o fazer, sobretudo no aspecto de assistência médica e instalação e socorro aos refugiados. Mesmo o aspecto de educação poderia ser apresentado pelo CVAAR. Se o Governo de Brazza não pode fazer nada por enquanto, podia o CVAAR fazê-lo e submeter o plano ao HCR através do governo de Brazza.
III- Interessava que a delegação do Congo-Brazza à Unesco acompanhasse de perto os problemas relacionados connosco. A delegação argelina vai intervir a nosso favor e a pedido da Embaixada do Congo em Paris vou-lhes enviar o ponto de vista. Creio aliás que uma cópia deste ponto de vista poderia ser dada a MAE aí, com pedido de que dessem instruções a Paris.
A Conferência Geral da Unesco começou em 25 e acabará no fim de Novembro. Há pois tempo.
IV- O Comité Executivo do HCNUR começa a 31 do corrente e durará cerca de uma semana. Não seria ocasião para o Congo-Brazza mandar um observador a Genève? Eles podem perfeitamente fazê-lo. Seria bom ver isso com o Ministério dos Ass. Estrang. ou com o Bureau Politique.

5- Deixemos este assunto dos refugiados para passar a um outro ponto. O Paulo falou-me da necessidade de contactar um amigo potencial do Movimento Em Lausanne, o editor Nils Anderson, que é um homem que sempre se dedicou a trabalhos em favor dos movimentos de libertação. Ao que soube, quando o Spencer cá passou teve um contacto com ele e ter-se-ia decidido que o Movimento diria como lhe parecia que podia aproveitar o desejo que este amigo tinha de ajudar. Como até agora não houvesse instruções o Paulo achou ser necessário dizer algo ao amigo, afim de lhe não dar a impressão de desinteresse. Fui a Lausanne com o Paulo, no Domingo 23/X e encontrei o referido camarada. Depois de uma ligeira introdução em que lhe disse que nós não tínhamos uma ideia precisa do que era possível fazer na Suíça sugeri que, para começar e apalpar o ‘mercado’ talvez fosse possível fazer imprimir o postal que se tentaria passar, não só ali como noutros países. A venda do postal ai permitiria conhecer os simpatizantes da nossa causa. Ele achou a ideia boa e ofereceu-se para fazer imprimir o postal. Para aproveitar o ‘ferro quente’ encomendei ao Rui de Matos um ou dois desenhos para se escolher.
Outra coisa que ele se propõe fazer é a edição de uma brochura em off-set, com cerca de 50 páginas, que será comemorativa do X aniversário do MPLA.
Promete fazer uma campanha para angariar anti-palúdicos, antifilária e antibióticos. Achei que não valia a pena por ora pedir outros medicamentos. Depois se verá.
Outras hipóteses, como a edição de um disco, pareceram-lhe pouco realizáveis, por enquanto. Ficaram porem aqueles três pontos concretos. Devo dizer que Nils Andersson me pareceu uma pessoa séria e interessada em coisas concretas, razão pela porque lhe pus esses problemas pequeninos, mas concretos. Aguardemos o resultado. Tenho um plano para a tal brochura, que depois de devidamente corrigido vos apresentei.
Nils Anderson sugeriu também que se tentasse transformar o CVAAR em Croix Rouge, como o Paulo teria sugerido para aí em tempos. Tendo-lhe eu apresentado os problemas de ordem jurídica que parecia existirem, ele ficou de falar com alguém que conhece na Croix Rouge internacional para obter todas as informações sobre a questão. Isto parece pôr o problema do CVAAR na ordem do dia. De qualquer modo parece ser de retomar certas amizades que o CVAAR tinha e que deixaram de aparecer. Mesmo que a nossa situação em Léo não se modifique resta Brazza e Lusaka. Para mais se não formos nós a agarrar isso o Savimbi e o Holden o farão. Claro que o problema faz parte de um todo, que são os diferentes problemas da nossa luta nas e frentes. Creio que de dia se faz sentir a necessidade de estudar os problemas a essa escala.

6- Passo agora a falar-vos do Paulo. Antes demais devo dizer que foi como seu hóspede que eu estive em Geneve. Como sabem o PA trabalha no Palais des Nations no HCNUR. O seu patrão é pois o Príncipe Aga Khan. O seu trabalho permite-lhe ter certas relações e sobretudo obter certas informações que me parecem de um alto interesse à medida que a nossa luta se desenvolver. Parece-me pois que ele podia ser encarregado de contribuir com dossiers para o nosso departamento de exteriores, dos dossiers sobretudo sobre as organizações internacionais como ONU, UNESCO, OMS, OIT, HCNUR, UNICEF, etc, sobretudo no que respeita aos nossos países, mas também noutros assuntos directa ou indirectamente ligados connosco. Ele podia por outro lado fornecer a nossa documentação a certas entidades suíças que nos pudessem ser úteis, e mesmo a outras ligadas à imprensa que é em geral reaccionário. O recorte que vos mandei há dias é de um jornal reaccionário (isto é do jornal mais reaccionário, pois todos são reaccionários). Sem ter um mandato público (que lhe está vedado pelo seu emprego, ele pode agir discretamente. Devo dizer que me foi dado aprofundar todo o problema do HCR graças a ele.

7- Não percebi a vossa ideia sobre o pedido do bilhete para o Rui de Matos. A minha sugestão é que esse pedido vá oficialmente daí, mesmo que seja através de uma credencial ao Rui para o apresentar aos amigos. Explicando melhor, uma credencial seria passada em nome do Rui, permitindo-lhe dirigir-se ao pcf para pedir ajuda numa viagem. Eu não contactei nenhum responsável do pcf por não estar habilitado para o fazer. Contactei o Gastaud como amigo, e como delegado da FSM à Unesco. Ele é que me disse ser necessário um contacto oficial entre nós e o pcf, para se estabelecerem oficialmente os domínios de uma cooperação futura e sugeriu que isso se fizesse em Janeiro, por alturas do congresso. Eles têm má impressão dos nossos militantes em Paris, que acham demasiado pro-chineses... e gostariam de aclarar certos pontos. Eu expliquei ao Gastaud a nossa posição, mas não oficialmente.
Por outro lado, e para experiência, escrevi agora ao Rui para também se dirigir ao HCR a pedir o pagamento da viagem, sem dizer o que vai para o MPLA, claro. É uma experiência. Isso não impede que dai lhe enviem uma autorização para se dirigir aos amigos nesse sentido. Essa autorização iria em francês.

8- O Castro Lopo que chegou agora arranjou emprego. Ele parece ser bom camarada, mas está envenenado pelo irmão Rui em quem confia. Faz uma série de perguntas que revelam uma certa desconfiança aliás natural, para quem acaba de sair. Na minha opinião não é oportuno fazê-lo seguir para ai. Isto é uma opinião pessoal, que aliás nem sequer me foi pedida. Ele trabalha como impressor, numa editora católica, ao que parece.

9- Sugiro que logo que as condições o permitam se proceda a um cuidadoso inquérito sobre as actividades da Congo Protestant Relief Agency, da Croix Rouge Congolesa, da Caritas-Congo e em relação aos refugiados em Léo. São essas organizações que recebem a massa do HCR para os angolanos. Elas apresentam relatórios de realizações de tipo agrícola escolar, e médico nas seguintes localidades: Moerbeck, Mao, Loango N’zambi, Lufu, Songololo, Sona - Pangu, Kibentele (o velho greafeld), N’TADI (Kimpangu), Kinsako - Kimpese, Thysville, etc, etc, etc...

Nos documentos enviados pelo Paulo, devem encontrar em relatório que é um ANNEX III -Assistance to refugees from Angola in the Democratic Republic of Congo 1963/1965. Vale a pena ler esse documento com a maior atenção e proceder a um inquérito surdo, sobre a sua veracidade. Uma pessoa a quem se podiam (sem dizer a que se destina) perguntar isso é ao Rev. Filipe Martins que está numa dessas escolas em Thysville. Ele podia dizer em que consiste o auxílio aos refugiados. A nossa gente empalhada pelos postos mencionados também podia dar informações. Cheira-me a grande blague.

Cheguei ao fim da minha coragem de continuar com essa máquina, que além do mais corta o papel... Também já disse o que mais importante me parecia.

Junto mais uma cópia do Point d’vue para o caso em que queiram entregar às autoridades daí, como sugeri.
Seguem cópias de outras cartas que eu escrevi sobre o mesmo assunto, ainda em Geneve.

Insisto para que me mandem as informações d Presidência, pois só as recebi até ao n.3.

Continuo a aguardar a solução do meu retour, esperando também que logo que haja possibilidades o Movimento me permita reembolsar o bilhete da minha vinda.

Desejo-vos um bom trabalho, bem como grandes sucessos, aos nossos guerrilheiros.
Junto duas cartas do camarada António Alberto Neto, que vieram aqui ter às minhas mãos, e que submete decisão.

As melhores saudações revolucionárias.
Lúcio Lara


«Texto que se segue todo à manuscrito»

P.S. Em Lausanne tive oportunidade de encontrar a C/ Maria de Jesus, que em trâmites de divórcio, trabalha numa «boutique de artesanato». Envia cumprimentos.
Mostrou-me mais um folheto dos *[Ilegível], sobre a «ofensiva neo-colonialista em Angola». (!)

«Bilhete de viajem, frente e verso anexado à carta»

Carta de Lúcio Lara a Comité Director do MPLA

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