Carta de Viriato da Cruz a Zé Miguel, Borges, Santos, Amaro e L. Miguel

Cota
0046.000.043
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel comum
Remetente
Viriato da Cruz
Destinatário
M. Miguéis, J. Miguel, Borges, Santos, Amaro, L. Miguel
local doc
Léopoldville (Rep. Congo)
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
10
Observações

Foi publicado no 3º volume de «Um amplo movimento…»

 31 Jan. 63 Estimados camaradas ZMiguel, Borges, Santos, Amaro e L. Miguel, Antes de tudo, peço [que] me desculpem o atraso com que vos respondo. Ao chegar aqui, caí doente com algumas complicações pulmonares. 1 – Julgo que o tempo decorrido, assim como os acontecimentos que se desenrolaram aí até ao presente permitem-me que aborde nesta carta alguns problemas do nosso Movimento. Estou convencido de que os factos e a vossa própria experiência confirmam, hoje, a mudança inaceitável que previ e denunciei há poucos meses. Sobre o que se vem passando, vocês sabem melhor que eu. Mas talvez seja útil relembrar aqui algumas das causas que vêm alterando gravemente a política tradicional que fez o nosso Movimento. 2 – Como vocês sabem, a luta pela independência não deve ser monopolizada por nenhuma classe. Todos os patriotas – comerciantes, agricultores, camponeses, ricos e pobres – devem ter lugar no Movimento de libertação nacional. Por esta razão, a palavra-de-ordem união do povo inteiro1 é uma palavra-de-ordem justa. Mas uma coisa é a união e outra coisa é o resultado final da luta pela libertação nacional. O resultado final desta luta define o conteúdo da independência que um povo conquistou. Mesmo com a união do povo inteiro, a luta pela libertação nacio­nal pode vir a ter resultados finais diferentes. O segredo dessas dife­renças de resultados finais da luta está na natureza do órgão que di­rige a luta. Se a luta for dirigida por indivíduos que não estão, conscientemente ou inconscientemente, interessados na libertação das massas populares, o resultado final da luta será magro ou quase nulo para as massas que mais sofreram durante a opressão colonial. Desde que abrimos o bureau de Léo, o nosso Movimento dedicou-se, no máximo das suas possibilidades, à preparação de quadros de origem popular e ligados às massas. Essa nossa política não agradou certamente aos colonialistas, porque estes preferem sempre formar uma elite de privilegiados do que formar quadros de origem popular. Em Maio de 1962, quando se fez a remodelação temporária do C. Director, os indivíduos que foram promovidos à direcção do Movimento não tinham títulos especiais e alguns deles tinham fortes laços com as massas. O Carácter dessa remodelação não agradou ainda mais aos colonialistas, mas também não agradou a certos militantes do nosso Movimento que durante o regime colonial tiveram o privilégio de obter títulos. Esses indivíduos pensaram assim: que o Movimento forme qua­dros de base ligados às massas, isso ainda se tolera, desde que esses quadros sejam dirigidos por indivíduos que garantam uma revolução com limites, isto é, uma revolução que salvaguarde certas conveniências; mas se o Movimento passa também a ser dirigido por indivíduos ligados às massas e fiéis aos profundos interesses do Povo, isso é já um grande perigo para as classes privilegiadas. Foi a partir desse momento que um certo número de militantes (Videira, Lima, Santos & Ca.) come­çou a agir no sentido de levar o movimento para o caminho onde ele hoje se encontra. A chegada do Neto veio ajudar a política que esse grupo de indivíduos vinha planeando, pois o Neto concordou com a política desse grupo. A partir dessa altura, o Neto colocou ao serviço da política desse grupo o “­prestígio” exagerado que nós tínhamos criado em torno da sua pessoa. Um outro golpe, que veio ajudar a política desse grupo, foi o facto de o M. Andrade, ter passado, ilegalmente, todo o dinheiro do Movimento para as mãos do Neto. A partir desse momento, esse grupo começou a financiar os seus correligionários (Videira, Boal, etc.), a fazer pressões materiais sobre os militantes que não estavam de acordo com eles, a comprar gente, e a sabotar descaradamente os trabalhos do Movimento. Ao mesmo tempo que o grupo utilizava essa táctica, o Viana (ao serviço do grupo) encarregava-se de divertir a atenção dos militantes mais activos do Movimento com as baboseiras do seu “plano de acção”. Com essa táctica de diversão, o Viana e o grupo tinham em vista, principalmente, isolar-me, impedir que os militantes activos se unissem a mim. É bom talvez que neste momento, todos vocês tenham presente, na vossa memória, as tácticas que eles utilizaram, as quais se resumem afinal em: intriga, calúnia, monopólio dos meios materiais do Movimento, corrupção, sabotagem e diversão. Por estes métodos que o grupo utilizava podia-se prever já, nesse momento, a espécie de política que eles pretendiam impor ao Movimento. Mas, infelizmente, por ingenuidade, ou por boa-fé, quase todos os militantes honestos não viram a tempo o desastre que se preparava. No entanto, o grupo usou alguns métodos bem grosseiros, como sejam: o envio para a fronteira dos soldados que me conheciam, a habitação forçada da família Lima no quartel a fim de vigiar e comprar soldados, o envio do Spencer para Cotonou, a integração do Boal e do Videira no Comité Preparatório da Conferência, etc. Que a política desse grupo foi imposta ao Movimento, vocês mesmos o sabem, pois alguns de vocês puderam ver os métodos anti-de­mocráticos, fascistas, que o grupo utilizou durante a Conferência realizada em Dezembro! Mas, infelizmente, alguns responsáveis do Movimento só passaram a opor-se à política do grupo, quando não viram os seus nomes na lista que o grupo apresentou à Conferência. 3 – Qual é, no fundo, a política desse grupo? Esse grupo é formado por indivíduos que para se sentirem completamente livres bastar-lhes-á participar, na Angola independente, do poder político e gozar de grandes facilidades para obter os meios para levar uma vida privilegiada. Enquanto que para o povo poder sentir que a independência melhorou realmente a sua vida, será necessário tomar medidas profundas na Angola independente – para os indivíduos do referido grupo sentirem que a independência melhorou realmente a sua vida bastará que se tomem, amanhã em Angola, algumas medidas superficiais ou parciais. Além disso, os indivíduos do referido grupo sabem muito bem que as independências em África, de uma maneira quase geral, têm significado, na realidade, a promoção de uma elite para os postos de direcção da nação, enquanto que as massas pouco ou nada beneficiam com as independências. Pode-se dizer, em resumo, que essas independências têm apenas criado castas privilegiadas nativas, que como os antigos colonos, passam por sua vez, a explorar e a oprimir o povo. A este fenómeno que, actualmente, alguns ­estudiosos dos jovens Estados independentes vêm chamando do “colonialismo de classe” – o “colonialismo” das castas privilegiadas nativas. Os indivíduos do referido grupo sabem bem que a maneira mais fácil para eles amanhã fazerem parte de uma casta privilegiada angolana consiste em estarem, hoje, à frente de um partido político. Como eles não podiam fundar um partido que tivesse sucesso, resolveram “tomar de assalto” (como dizia o vigarista do Viana) o nosso Movimento. Não foi por acaso que alguns médicos, que deveriam servir melhor o povo com a ciência médica, resolveram abandonar os refugiados doentes no Congo para vir para o exterior fazer treinos militares. Quem acredita porventura, que cinco ou seis médicos com treinos militares irão modificar o curso da guerra em Angola? Onde está provado que um médico militar seja melhor soldado do que um cidadão sem formação universitária? 4 – A fim de levarem Angola para a “independência” que eles querem, esses indivíduos vêm defendendo, desde há muitos meses atrás, a teoria de que o neocolonialismo é inevitável em Angola, e vêm afirmando a mentira de que o nosso Movimento não praticava no passado, o neutralismo positivo, e que eles é que vão passar a praticar uma política de neutralismo. O que pretendem eles com essas teorias? Eles pretendem: 1º – Justificar todas as espécies de compromissos que eles irão fazer com os interesses neocolonialistas. (O que se pode esperar de um Santos que tinha como amigos seus em Léo, os portugueses Simões e Torres? O que se pode esperar de um Lara, que é cunhado do irmão do antigo ministro da guerra, Santos Costa? Não foi por acaso ainda que, por exemplo, em 15 de Setembro de 1962, o Agostinho Neto enviou uma carta ao general Humberto Delgado, carta essa que começava assim: “Aprendi a admirar o nome de V. Exa. ainda em Portugal...” e que terminava nestes termos: “estou inteiramente à disposição de V. Exa.”). 2º – Justificar todos os passos que eles vão dar no plano internacional, em nome do neutralismo positivo. 5 – Nenhum movimento de libertação nacional pode ser levado ao melhor fim possível, se ele for dirigido por indivíduos que pensam que o neocolonialismo é inevitável. Essa ideia diminui a combatividade do movimento, utiliza cinicamente o sacrifício de milhares de combatentes que lutam e morrem por uma independência real, abre as portas do movimento à imoralidade e à corrupção, dá lugar a uma política oportunista e sem princípios. Toda a verdadeira revolução nacionalista deve ser feita com a ideia e a convicção de que se pode conquistar uma independência real. O resultado final de uma revolução nacionalista depende do ardor e da convicção que o povo e os dirigentes puserem na luta. E um verdadeiro movimento revolucionário é aquele que diante do resultado final da luta poderá dizer sinceramente: “Conseguimos o que nos foi possível, e fizemos tudo quanto nos foi possível”. Mas esse grupo não quer uma independência conquistada dessa maneira. E a prova é que esse grupo vem dividindo o Movimento, sabotando a unidade deste, e provocando o afastamento do Movimento de patriotas provados. Ora, todos sabemos que a força principal de um movimento de libertação nacional é a união de todos os patriotas. Aqueles que desprezam ou des­troem essa união não querem, na verdade, conquistar uma independência real para o povo. 6 – Por outro lado, vocês queixam-se de que se pratica, hoje, no Movimento, uma política de perseguição, uma política policial e de pres­são moral e material. Sei, desde há muito tempo, o de que seriam capazes um certo número de actuais dirigentes e responsáveis do Movimento. Apesar de essa gente ter utilizado, no passado, uma linguagem revolucionária e de terem propalado a ideia de fraternidade e de unidade, eu sabia, no entanto, que – pela educação que receberam e pelas ambições que escondiam no fundo de sua consciência – eles eram capazes de actos egoístas e odiosos. Foi por esta razão que, enquanto fui secretário-geral, impedi habilidosamente que eles usassem as varas do Movimento. Infelizmente, confirma-se, hoje, o velho provérbio: se queres conhecer o vilão põe-lhe a vara na mão. Essa gente só tem demonstrado que aprendeu bem e não esqueceu as lições do colonialismo fascista português. Cada pessoa faz o que sabe e eles não podem fazer melhor do que aprenderam. Por outro lado à frente do Movimento, eles vêm mostrando, em pequena escala, o que farão amanhã se estiverem à frente do Estado Angolano. A razão principal por que alguns dos meus ex-colegas de direcção dizem opor-se aos meus métodos de trabalho é que eu não lhes deixei no passado, agarrar e utilizar as varas do Movimento. Nem nunca permiti nem permitiria a escandalosa política, que hoje se faz, de pôr por exemplo, um Lima à frente das questões da guerra, um Lima que em Portugal era considerado agente da PIDE e que transmite à mulher os segredos que sabe; a escandalosa política de consentir que a mulher do Lara tenha as chaves da nossa caixa postal em Conakry e abra a correspondência dirigida ao Movimento, e que a mulher do Viana tivesse as chaves do bureau de Conakry onde estão arquivos importantes do Movimento. Mas qual é afinal a diferença política entre portugueses e angolanos? 7 – Evidentemente que não devemos assistir indiferentes e inactivos a essa política desastrosa. É necessário reconquistar uma política acertada. Costuma-se dizer que quem quer faz, quem não quer espera. Tudo que é necessário ao progresso do homem e do povo conquista-se com a luta e com o trabalho. Creio que tenho alguma moral para vos falar assim, porque desde Agosto de 1962 que venho tentando, pela palavra e por escrito, esclarecer a nova situação. Tenho muita confiança na juventude angolana. A juventude é a gene­rosidade, a energia, o amor à verdade, a semente que leva em si o futuro. A Angola de amanhã será o que for hoje a sua juventude. Nenhuma políti­ca errada poderá triunfar se a juventude se mantiver vigilante, combativa e fiel aos interesses profundos do povo. O que deverá fazer a juventude? Não vos esqueçais nunca, camaradas, que todas as políticas de libertação começam por amar a verdade e dizer a verdade. Todos os partidos de libertação começam sem dinheiro, sem apoio das massas e sem armas. Mas esses partidos nascem, crescem, impõem-se e ganham a vitória, prin­cipiando por amar e por defender a verdade. A verdade é, foi e será sempre a aliada mais fiel dos oprimidos e dos explorados, do povo enfim. Toda a política contra-revolucionária ou reaccionária começa com a mentira e com a fraude. O veneno dos frutos de uma árvore já estava na semente que deu origem à árvore. Isso é uma lei da vida. O que havia, pois a esperar da política actual do Movimento, a qual começou com a intriga, a calúnia e a divisão? Dessas sementes só poderíamos esperar os frutos venenosos da humilhação e da perseguição de que sofrem hoje os patriotas sinceros do nosso Movimento. Por isso, aconselho-vos a defender corajosamente a verdade. Vocês sabem bem que é somente o povo que faz a história. As grandes obras e os grandes desastres não podem ser feitos sem a contribuição da imensa força do povo. Por isso, aconselho-vos a trabalhar no meio do povo. Esclarecei-o [sic]. Mostrai-lhe a mentira e a verdade. Impedi que ele regue com o seu suor, com o seu sangue e com o seu dinheiro as sementes que vão produzir amanhã frutos venenosos. Conduzi a imensa força do povo somente para a realização de obras que lhe sejam úteis, e contra a opressão e a exploração actuais e futuras. A política de progresso é aquela que não subordina os interesses da revolução aos interesses do presente. Se quisermos amanhã uma Angola onde floresça uma democracia política e social de que o povo seja o principal beneficiário, é indispensável que esse objectivo futuro não seja sacrificado a certos interesses do presente. A política que sacrifica os interesses do futuro aos interesses do presente é uma política oportunista. Nem todas as facilidades que o presente oferece são boas. Se o povo angolano fosse a escolher somente os caminhos das facilidades, ele nunca se teria levantado para lutar contra a escravidão colonial. Todo o progresso exige que se aproveitem as facilidades honestas e que se faça frente às dificuldades com o sacrifício necessário. Por isso, aconselho-vos a que vos mantenhais fiéis aos princípios revolucionários que fizeram o nosso Movimento. Não vos deixeis corromper, pensando apenas nos interesses do presente. Sei que alguns camaradas pensam que a luta que devemos travar contra as actuais tendências dominantes do Movimento deverá ser apenas clandestina. A meu ver, é necessário, sim, fazer uma luta clandestina; mas só a luta clandestina é insuficiente. Em primeiro lugar, quando a luta é completamente clandestina, os adversários pensam que têm mais força do que a que possuem na realidade e pensam, ainda, que aqueles que se opõem a eles têm medo da sua força. Ora, é preciso evitar que os adversários cheguem a ter esse sentimento, porque, se isto suceder, eles tornar-se-ão arrogantes e não hesitarão em tomar medidas sanguinárias contra os que se lhes opõem. É preciso impedir que os adversários se sintam em terreno completamente conquistado. É indispensável fazer sentir constantemente aos ad­versários que eles não estão seguros sobre os seus próprios pés. Por outro lado, não deveis renunciar nunca ao vosso direito de exprimir abertamente as vossas ideias e a vossa posição. Ninguém res­peita os direitos daqueles que abandonam os seus próprios direitos. Se nos calarmos por medo, estaremos a legalizar a ordem policial e odiosa que um grupo de pessoas pretende impor ao Movimento. É por todas essas razões, que penso que a luta clandestina deve ser acompanhada também, e a todo o momento, por uma luta aberta, declarada, contra as actuais tendências dominantes do Movimento. O MPLA é de todos os militantes. E podeis estar certos de que a maioria dos que hoje estão à frente do Movimento não pode justificar as suas posições actuais pelo seu trabalho dentro do Movimento, no passado. Essa maioria possui muito mais do que merece. Mesmo o Neto, que ao contrário da propaganda muito exagerada que fizemos sobre ele no passado, não foi nada um dos fundadores do Movimento; só aderiu ao MPLA quando saiu de Portugal em Junho do ano passado; e foi, aliás, um dos últimos africanos em Portugal a convencer-se de que a independência das colónias não estava dependente da ins­tauração da democracia em Portugal. É uma verdade incontestável que o Neto não tem nenhuma dívida a cobrar dentro do MPLA. Por isso, não vos acanheis dentro do MPLA. O Movimento é vosso também, e principalmente vosso. E autorizo que todos os verdadeiros militantes do MPLA ajam dentro do Movimento como se fossem, por exemplo, os herdeiros legítimos do meu trabalho. Não vos tomeis de complexos de inferioridade diante de indivíduos com títulos. A política não se aprende nas universidades, mas defendendo corajosamente os interesses do povo, defendendo a verdade, a justiça e democracia. É absolutamente necessário para vocês que [a] JMPLA tenha uma nova direcção. Vocês deverão participar da nova direcção da JMPLA. Para já deveis, a meu ver, levar o Videira a demitir-se ou a afastar-se da direcção da JMPLA. O Videira é um jovem cínico e demasiado ambicioso. Depois da remodelação do C. Director, em Maio de 1962, ele qualificou essa remodelação como uma “vendilhagem”, uma vendilhagem da direcção do Movimento aos negros. Uma das razões porque ele apoia servilmente o Neto é que ele (como aliás, uns tantos como ele) pensa que o Neto é a garantia de que o Movimento nunca será dirigido apenas por negros. Nem outra é a posição do Lara. Recebei, caros camaradas, as minhas saudações cordiais.

Duas cópias diferentes da Carta de Viriato da Cruz? a José Miguel, Borges, Santos, Amaro e Luís Miguel

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