Foi publicado no 2º volume de «Um amplo movimento…»
Ponta Negra, 10/11/62 Caro Matias Miguéis Foi um extraordinário prazer o conhecer-te pessoalmente. Esperei que voltasses ao navio para podermos conversar um pouco mais e assim pôr-te ao corrente de certos elementos e reflexões. Como assim não sucedeu vejo-me obrigado a escrever-te pelo que procurarei ser o mais explícito possível. Eis os elementos: 1 – Além do material de guerra – explosivos e munições – seguem nas malas algum fardamento (calças, camisas e botas), impressos do EPLA e do CVAAR. Os camaradas são também portadores de duas máquinas fotográficas e dum gira-discos (com discos) e de um magnetofone, tudo para o EPLA. O magnetofone encontra-se regulado para 125 v. e a fita está gravada com músicas angolanas. 2 – Os mapas – alguns repetidos – são relativamente úteis, especialmente o 027 e 028. Um dos camaradas é portador dum rolo de papel vegetal, bom para cópia de mapas. 3 – Um camarada que dá pelo nome de CHACHADO pareceu-me um elemento perturbador. O Pimentel e o Luís poderão dar informações sobre o seu comportamento. 4 – Vêm algumas armas (esp. Mauser) com os próximos camaradas. É material que foi dirigido aos argelinos por outros amigos. 5 – É necessário perguntar ao Azevedo se ainda está de pé a oferta de recepção de armas feita por um nosso amigo de Léopoldville. Se afirmativo, enviem um telegrama ao Africano – que está de posse da direcção e do processo de envio – nos seguintes termos: – CONFIRMO COMBINADO (número de embrulhos a remeter) Assinado CARREIRA Caso contrário e se houver alguém que esteja disposto a receber...: A. O telegrama começará com a chamada “número quatro”. B. Logo a seguir vem o texto (que será o endereço). Cada primeira letra de cada palavra constitui uma letra de cada palavra do texto. Cada palavra do texto verdadeiro vem separada da próxima por um stop. O endereço começa por um número depois de um stop. Se a direcção verdadeira não tiver número, o texto do telegrama respeitante ao endereço começa por um zero. (a embalagem será de mobiliário rudimentar tipicamente árabe) Exemplo – NÚMERO QUATRO MANDEM ARTIGOS TELEVISÃO ISENTOS ALFANDEGA SUDÃO STOP 720 LEVEM ENVELOPES ORDENADOS – Decifrado: Matias B.P. 720 Léopoldville 6 – Se por acaso encarregarem o Hugo da minha saída em TAKORADI, ele terá que pagar a minha passagem até esse porto. 7 – Tenho contactos com os argelinos e não argelinos que trabalharam no problema da “procura de armamentos” para o ALN. Quanto às reflexões: (O conjunto pode servir de “CARTA ABERTA” à direcção política do MPLA) 1 – Pela pequena exposição que me fez o camarada Matias Miguéis, verifiquei – como um consciente militante de base – que se mantém a crise no seio da Direcção Política do Movimento, crise essa que se repercute no trabalho de formação do EPLA e no bom andamento das “RELAÇÕES EXTERIORES”. As razões são evidentes: – em primeiro lugar a confusão de “concepções” que os dirigentes fazem do MPLA. Reina um espírito de partido (especialmente na prática) e cada um – liberais ou marxistas – procura construir o MPLA à escala da sua formação ideológica. Os choques são inevitáveis! Ora o MPLA foi concebido como um MOVIMENTO e é como tal que ele deve trabalhar sob pena de fragmentação lamentável. Há um programa mínimo que na sua alínea a) apela para a criação duma frente que agrupe uma larga união de partidos políticos, organizações populares, forças armadas, personalidades eminentes, organizações religiosas, minorias, camadas sociais, angolanos sem distinção de tendências políticas, de condições de fortuna, de sexo, idade. Ora o MPLA é já um “front” quer A ou B queiram ou não. Liberais e marxistas, pró-ocidentais ou pró-socialistas, temos de viver e trabalhar juntos com base naquele mínimo que todos aceitámos e que se materializa em três documentos: o estatuto, o programa e o regulamento geral interno. Movimento é qualquer coisa que marcha, e marchar é caminhar por etapas, é adaptar-se ao terreno a conquistar, ultrapassando os escolhos interiores ou exteriores que aparecerem. 2 – a segunda razão é o total esquecimento a que foi votado o “REGULAMENTO GERAL INTERNO”. (Se já não serve, que se faça outro, mas que se precise uma clara divisão de trabalho dentro duma responsabilidade colegial). O esquecimento do RGI ou dum qualquer RGI tem ocasionado uma confusão na determinação de “responsabilidades”, de “tarefas”, etc. Todos os dirigentes parece trabalharem em todos os sectores, ao mesmo tempo e com o mesmo grau de responsabilidade! 3 – a terceira razão e que eu reputo como primordial, é a “falta de uma estratégia” visível e duma táctica estruturada (com alternativas bem determinadas) para a consecução dos objectivos do MPLA ou seja dos objectivos dum Movimento Popular de Libertação. Parte da “infraestrutura” já foi criada pela “Direcção Política” actual e com mérito. A marcha está emperrada não só por pessoalismos, lutas ideológicas e tarefas mal distribuídas como por uma falta de concepção geral da marcha do Movimento. Assim, e como militante de base, ponho à reflexão dos dirigentes do MPLA o seguinte “programa de lavagem”: 1 – A feitura imediata dum relatório circunstanciado das actividades do Comité Director (remodelado ou não) a apresentar aos quadros do MPLA (e resumido, a todos os militantes). 2 – Uma vez o relatório feito e estudado pelos quadros, eleição dum novo Comité Director segundo estrutura e candidaturas apresentadas pelo cessante. 3 – Nomeação imediata duma “comissão especial” encarregada de conceber a “estratégia” geral do Movimento e as tácticas da “marcha” ou do combate. Esse trabalho de “concepção” seria realizado tendo em conta as novas bases políticas, económicas e sociais da “política portuguesa” e os novos dados sociais, económicos e políticos da actualidade angolana. Assim, não esqueceria: – a nova concepção de “espaço económico português” com a dependência económica progressiva de Angola a Portugal (a “viragem económica de 1961”). – a formação rápida por Portugal de novas elites angolanas que fariam esquecer os intransigentes mas silenciados dirigentes do exterior – o “silenciamento” pelas forças militares e administrativas, das populações rurais... facilitado com a aplicação dum novo e extremamente avançado “Código do Trabalho Rural”. – a concessão da governação duma Angola independente, interdependente, a uma minoria arrivista, retirada dos meios pequeno-burgueses nativos (da administração e outros) – as limitações dos elementos geográfico, demográfico e financeiro com que pode contar a organização nacionalista exterior. – a penúria de quadros Estes e outros dados levariam tal “comissão” a estudar como que duas espécies de “marchas”: uma em direcção às populações rurais – que parece já se ter iniciado – e outra em direcção às cidades e centros urbanos (que se encontra no esquecimento e que hoje é de importância fundamental). Quanto à primeira das marchas muito se poderia dizer embora, no fundo, não fossem mais do que pequenas precisões aos trabalhos já iniciados. Quanto à “segunda”, e com os elementos que colhi na minha viagem pela Europa junto a angolanos e amigos, suponho também poder dizer alguma coisa. (o trabalho do MPLA é pura e simplesmente desconhecido nos centros urbanos a quem Portugal activamente se prepara para entregar a governação de Angola). Infelizmente faltou-me tempo para continuar. Prometo, no entanto, elaborar durante a viagem, um “memorandum” sobre os problemas citados. Ao Matias, mais uma vez, um abraço de sincera fraternidade e camaradagem. Um abraço, por teu intermédio, a todos os camaradas do MPLA [assinatura de Henrique Carreira]
Carta de Iko Carreira (Ponta Negra) a Matias Miguéis