Foi publicado no 2º volume de «Um amplo movimento…»
Caro Lúcio
Vão umas linhas a título particular para te informar as últimas decisões tomadas pelo Comité director do nosso movimento.
Depois de várias reuniões que tiveram como ponto fundamental a estruturação do movimento, o comité director resolveu remodelar e alargar o corpo dirigente. Esta decisão teve como fundamento a necessidade de afastar os mestiços da direcção uma vez que a massa continua a revelar e de forma crescente um sentimento de desconfiança, em relação aos mesmos, baseado no preconceito racial.
Nestes últimos dias produziram-se alguns acontecimentos lamentáveis num dos quais eu fui um dos visados: As delegações da CVAAR que se deslocaram à fronteira no trabalho de ajuda aos refugiados foram vaiadas e impossibilitadas de contactar os angolanos pois estes em gritos de protesto contra a presença dos mestiços forçaram-nos a retirar. No trabalho quotidiano continuam a manifestar-se os casos que são do teu conhecimento, sempre com base no preconceito racial. A nossa presença no comité director constituía um obstáculo para se realizar uma campanha larga e profunda contra esse sentimento visto que ela seria facilmente neutralizada pelos nossos adversários. Nós concordámos que uma direcção constituída na totalidade por negros teria mais possibilidades práticas para realizar esse trabalho na medida que tem muito mais possibilidades de ser aceite pelas massas. Vamos lá a ver se os nossos camaradas estão dispostos a proceder nesse sentido. De qualquer maneira a situação não permitia outra atitude da nossa parte. Foi mais um sacrifício por Angola.
Creio que não vale a pena aprofundar mais este assunto pois tu conhece-lo tão bem como eu. A nossa situação presentemente é de meros militantes dispostos a continuar no trabalho se isso for permitido. Pelo menos é nessa situação que eu tenho de me colocar. Começo a ter a sensação que sou um intruso nessas questões e eu não quero passar por situações chatas. Tenho a consciência que fiz tudo por Angola que sacrifiquei na verdade coisas reais, que a minha presença na luta foi o fruto de uma reflexão fria a que me decidi na base do reconhecimento duma injustiça gritante que se praticava no meu país e que a minha atitude não poderia ser senão a da renúncia das facilidades que desfrutava para me dedicar totalmente à causa da libertação da nossa querida Angola. Não estou arrependido e continuo inteiramente à disposição do movimento mas não a ter de passar por situações chatas e humilhantes.
Tive conhecimento que te foi enviada a lista dos novos dirigentes. Portanto dispenso-me de o fazer.
E tu meu caro como vais? O paludismo e as hemorróidas continuam? Eu creio que isso deve estar arrumado.
Tenciono escrever-te mais umas linhas quando receber a tua resposta. Recomenda-me à Ruth ao Paulinho e à herdeira. Muitos cumprimentos para os nossos camaradas incluindo o Amílcar e respectivas famílias. A Mariazinha recomenda-se.
Do teu camarada e amigo [assinatura de Eduardo dos Santos]
[Acrescentado à mão: 4/6/62]
Carta de Eduardo Santos a Lúcio Lara