Carta de Eduardo Santos a Lúcio Lara

Cota
0036.000.007
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Eduardo Macedo dos Santos
Destinatário
Lúcio Lara
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
1
Observações

Foi publicado no 2º volume de «Um amplo movimento…»


Caro Lúcio

Vão umas linhas a título particular para te informar as últimas deci­sões tomadas pelo Comité director do nosso movimento.
Depois de várias reuniões que tiveram como ponto fundamental a estrutu­ração do movimento, o comité director resolveu remodelar e alargar o corpo dirigente. Esta decisão teve como fundamento a necessidade de afastar os mestiços da direcção uma vez que a massa continua a revelar e de forma cres­cente um sentimento de ­desconfiança, em relação aos mesmos, baseado no pre­conceito racial.
Nestes últimos dias produziram-se alguns acontecimentos lamentáveis num dos quais eu fui um dos visados: As delegações da CVAAR que se deslocaram à fronteira no trabalho de ajuda aos refugiados foram vaiadas e impossibilita­das de contactar os angolanos pois estes em gritos de protesto contra a pre­sença dos mestiços forçaram-nos a retirar. No trabalho quotidiano continuam a mani­festar-se os casos que são do teu conhecimento, sempre com base no pre­conceito racial. A nossa presença no comité director constituía um obstáculo para se realizar uma campanha larga e profunda contra esse sentimento visto que ela seria facilmente neutralizada pelos nossos adversári­os. Nós concor­dámos que uma direcção constituída na totalidade por negros teria mais possi­bilidades práticas para realizar esse trabalho na medida que tem muito mais ­possibili­da­des de ser aceite pelas massas. Vamos lá a ver se os nossos cama­radas estão dis­postos a proceder nesse sentido. De qualquer maneira a si­tua­ção não permitia outra atitude da nossa parte. Foi mais um sacrifício por Angola.
Creio que não vale a pena aprofundar mais este assunto pois tu conhece-lo tão bem como eu. A nossa situação presentemente é de meros militantes dis­postos a continuar no trabalho se isso for permitido. Pelo menos é nessa situação que eu tenho de me colocar. Começo a ter a sensação que sou um in­tru­so nessas questões e eu não quero passar por situações chatas. Tenho a cons­ciência que fiz tudo por Angola que sacrifiquei na verdade coisas reais, que a minha presença na luta foi o fruto de uma reflexão fria a que me decidi na base do reconhecimento duma injus­tiça gritante que se praticava no meu país e que a minha atitude não poderia ser senão a da renúncia das facilida­des que desfrutava para me dedicar to­talmente à causa da libertação da nossa querida Angola. Não estou arrepen­dido e continuo inteiramente à disposição do movimento mas não a ter de passar por situações chatas e humilhantes.
Tive conhecimento que te foi enviada a lista dos novos dirigentes. Portanto dispenso-me de o fazer.
E tu meu caro como vais? O paludismo e as hemorróidas continuam? Eu creio que isso deve estar arrumado.
Tenciono escrever-te mais umas linhas quando receber a tua resposta. Reco­menda-me à Ruth ao Paulinho e à herdeira. Muitos cumprimentos para os nos­sos camaradas incluindo o Amílcar e respectivas famílias. A Mariazi­nha recomen­da-se.

Do teu camarada e amigo [assinatura de Eduardo dos Santos]
[Acrescentado à mão: 4/6/62]

Carta de Eduardo Santos a Lúcio Lara

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