Carta de Lúcio Lara a Deolinda Rodrigues

Cota
0013.000.035
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel comum
Remetente
Lúcio Lara
Destinatário
Deolinda Rodrigues
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
2
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

Excerto da carta a Deolinda Rodrigues [dactilografada] Conakry, [4?] de Junho de 1960 Querida Irmã Continuo a receber os teus simpáticos «bilhetinhos» escritos no intervalo das aulas, bem como os recortes e as fotos que mandaste na última carta. A tua colaboração revela-se excelente, e pena é que a nossa actividade ainda não tenha chegado a ponto de podermos desde já dar-te tarefas mais concretas e trazer-te a um trabalho mais de acordo com as tuas possibilidades. Esperemos que em futuro próximo isso seja possível. O teu recorte sobre a questão do Ruy Ventura1 é excelente, pois mostra bem o estilo de trabalho que esse indivíduo tem feito para abusar do apoio que certas organizações dão ao nosso povo e que certos indivíduos sem grandes escrúpulos têm aproveitado para utilização pessoalista. Esse senhor Ruy Ventura ou Gilmore nunca estudou em Paris, (o que não é desonra nenhuma). Também em Accra não representou «outros territórios africanos» e quanto ao ter representado Angola, ainda estamos pª averiguar de onde é que lhe veio procuração para isso, dado que ele desde miúdo que foi educado no Congo Belga e apenas esteve em Angola por uns meses de férias, segundo ele próprio nos declarou em Túnis. Enfim, no seu trabalho tem havido muita coisa de que a nossa luta tem aproveitado e nós temos esse facto em consideração, mas a verdade é que ele anda por outro lado a fazer certas campanhas contra nós no ambiente internacional, que longe de nos prejudicarem pessoalmente, podem embaraçar certos apoios ao nosso povo, enquanto não conseguirmos esclarecer convenientemente a opinião internacional a ponto de ele se sentir desmascarado. Nós temos evitado neste caso uma atitude radical sempre com vista a não dar a ideia ao mundo de que há divisão nos nossos irmãos, o que afinal é verdade, pois dentro de Angola todas as organizações estão a colaborar na luta contra o inimigo comum, o colonialismo português. Seria triste que nós alimentássemos, como o faz o Gilmore, a ideia de que o MPLA e a UPA são incompatíveis. A verdade é que nós temos procuração da própria UPA vinda recentemente de Angola, e o povo fala sempre em nós e nunca falou em nenhum dos nomes do próprio Gilmore. Mas deixemos este caso, que, à distância te deve fazer uma certa confusão. Nós cá estamos dedicados valentemente à tarefa que temos sobre os ombros. Agora estamos em melhores condições, pois já fomos reconhecidos pelas autoridades locais. Já fomos mesmo apresentar cumprimentos ao Presidente Sékou Touré, que foi bastante simpático connosco. Cientes da urgência de uma ida aí de um de nós. A verdade é que não temos mãos a medir e não chegamos pª as encomendas. Mas impõe-se que regulemos uma série de questões interessando a nossa luta, antes de viajarmos. Entre essas questões está naturalmente o problema dos fundos. Temos em vista uma campanha de propaganda por toda a América Latina, mas precisamos primeiro de saber até que ponto podemos contar com o apoio financeiro de certas organizações da América Latina. Poderás quanto a isto tentar saber algo aí no Brasil? Vi a notícia que mandaste sobre a intervenção do Campos de Oliveira. Pensei que ele já tinha morrido, pois nunca respondeu às cartas que lhe escrevemos; se tiveres oportunidade de falar com ele diz-lhe isso. Estou tão envergonhado contigo por ainda te não ter mandado nenhum artigo dos que te prometi, que antes de começar a escrever esta estive a traduzir um que há pouco escrevi em francês. Utiliza-o como quiseres. Receio que o tom seja duro para o meio brasileiro, mas hoje é-nos difícil escrever noutros termos. Todos os artigos que tenho estão em francês e vão perdendo a actualidade, pois escrevo-os à medida que vai acontecendo qualquer coisa. [...] Reconheço que pª a opinião brasileira faz falta uma informação periódica sobre os nossos problemas. A verdade é que nós andamos assoberbados de trabalho e não podemos dar conta de tudo. Precisamos de mais gente cá fora a trabalhar connosco. Já nos lembrámos do Miguéis, mas desde que eu estive com ele que nunca mais escreveu e até me faz estar em cuidado, pois soube que houve lá agora uma série de prisões em que estavam implicados alguns estrangeiros. Se receberes aí alguns curriculum vitae de gente a pedir bolsas (da nossa terra) manda-nos por favor. No dia 3 de Agosto, de acordo com a conferência de Túnis, vai-se celebrar a Jornada de Solidariedade para com os povos das colónias portuguesas (dos países sob dominação colonial portuguesa). Temos que nos esforçar todos para que nesse dia, em todo o Mundo se faça ouvir a nossa voz de combatentes e que os portugueses sintam como já temos um apoio moral extraordinário. Depois te enviaremos material acerca desse assunto. Interessa que vás no entanto contactando as gentes aí, para marcarem desde já meetings, redigirem telegramas de protesto e irem mesmo à embaixada protestarem. Afinal a Conferência Afro-asiática da mulher está marcada para 15 de Setembro no Cairo. A conferência encarrega-se das despesas de deslocação de uma delegação assim como da instalação; o problema é que em geral exigem que as delegadas venham dos seus países respectivos. Diz-me porém se achas viável a tua deslocação para que possamos iniciar as démarches com vista à tua ida como delegada por Angola. Não terias em princípio que apresentar um rapport mas terias oportunidade de entrar em discussão nas Comissões e fazeres conhecer o problema da mulher na nossa terra e o problema do nosso povo em geral. Além disso aprenderias muito, como nós temos aprendido nestes contactos internacionais. Diz qualquer coisa a este respeito. O artigo leva data de Léopoldville para despistar. Canganza Hoji é o meu nome para o jornal. Por sinal é nome da minha família que é da região da serra de Canganza. Ao que consta no Times,2 os nossos estão a ser julgados secretamente. O Times tem lá um correspondente que é nosso conhecido. Há dias publicaram a fotografia do Simão Toco em 1/8 de página, pª mostrar que ele estava com residência fixa no farol da Baía dos Tigres, coisa que os lusos tinham desmentido há tempos. Têm publicado óptimos artigos. Logo que haja possibilidade mando-tos ou cópias deles. Entretanto mando esse do B.D. [Basil Davidson]. Vai esse apelo, para fazeres chegar traduzido aos jornais portugueses aí e às associações dispostas a apoiar-nos. Se elas enviarem telegramas convém que nos (te) dêem a cópia, pois pretendemos fazer uma brochura com isso. Ainda não me é possível enviar-te brochuras sobre o processo. Fá-lo-ei logo que possível. Junto folhas em branco da FRAIN para que tu faças a tradução portuguesa e envies às gentes aí. Diz-me: ser-nos-á possível editar aí uma brochura em Português, isto é, encontraremos aí facilidades para o efeito? Sabes que a propaganda é uma cartada que é fundamental numa luta como a nossa, e por isso devemos começar a publicar muito. Só isso faz tremer os portugueses. Quanto à oposição portuguesa, em breve publicaremos a NOSSA POSIÇÃO em relação a ela. Depois ta mandaremos. Todos te enviam saudações e te desejam êxito nos teus trabalhos. A Ruth [final ilegível na 2ª via]

Carta de Lúcio Lara (Conakry) a «Querida irmã» [Deolinda Rodrigues]. (O final da carta foi completado à mão mas não está legível).

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