Carta de Lúcio Lara a Vasco Martins

Cota
0012.000.037
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel comum
Remetente
Lúcio Lara
Destinatário
Vasco Martins
Locais
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
2
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

19 de Abril de 1960

Meu caro Vasco

    Há muito sem notícias tuas. Antes de deixar Casablanca ainda recebi uma Seara e dois livritos com problemas económicos, que suponho dever agradecer-te. Que tens feito? As férias da Páscoa acabadas é altura de te preparares para os exames finais, que faço votos corram bem.
    A nossa vida continua na mesma andança de sempre. Desta vez escrevo-te de uma outra capital africana, onde participei de uma Conferência assim como mais delegados (dois) de Angola. Conferência foi muito interessante. É pena não poder descrever-te de viva voz o que se vai vendo e ouvindo por este mundo de Cristo (?) ou de Allah(?). Havia uma delegação das colónias portuguesas inteiramente constituída por gente da Guiné dita portuguesa. A Conferência entre muitas aprovou uma resolução sobre Angola que aqui junto para que faças o teu juízo. Será que a Seara publica mesmo isso?
    Ainda cá não tenho a mulher que deve vir a caminho com o filho. Por isso desta vez não te mando saudades dela. Espero de resto não aquecer aqui o lugar muito tempo. Sempre para o Sul que é o que é o caminho. Qualquer dia estou em minha casa em Nova Lisboa, aonde te convidarei a ires passar umas férias para veres de perto a obra “meritória” que os teus compatriotas fizeram.
    Daqui consigo ouvir à noite em más condições a Emissora Nacional e o Rádio Club Português. Hoje além de ouvir Igrejas Caeiro ouvi também umas notícias curiosas acerca de uma retumbante vitoria portuguesa em Haia. Ainda pensava que se tratava de um desafio de Hóquei, cujo campeonato acaba hoje, mas depois é que vi que se tratava da questão de Goa. Não percebo como é que essa gente faz tanto barulho com uma questão que a bem dizer perpetua o Stato quo de Dadrá e Nagar Aveli, uma vez que não é reconhecido a Portugal o direito de passagem no que se refere a forças armadas… Quando é que essa gente que vos governa resolverá entrar de uma vez para sempre em processos que não mistifiquem os problemas?
    Outra coisa engraçada que li há dias no Monde dizia respeito a greves em Aljustrel e às consequentes prisões. Esse regime está podre e vocês não se resolvem a deitar isso abaixo…
    Li também umas incríveis besteiras escritas por um tal Marcello Caetano num jornal para oficiais e sargentos… Ao que suponho essa personalidade é o expoente máximo da Universidade de Lisboa, de que é reitor. É incrível como ele tem o arrojo de mostrar tanta ignorância. É muito possível que em breve uma carta aberta que lhe dirigiremos o porá no seu devido lugar… Já que não pode ladrar contra o Chefe Supremo ladra às canelas dos povos africanos… A propósito de carta aberta, gostava de te mandar uma cópia da carta aberta escrita pelo Comité permanente de Solidariedade Afro- Asiático ao primeiro Ministro Português. Tem umas incorrecções, mas diz umas verdades. Foi publicada no boletim de Janeiro do Comité de Solidariedade Afro-Asiático. Se não fosse com pena de ser apanhado, mandava-te essa revista. Tem certo interesse, para que acompanha estas questões.
    Como vai a Gabriela? Já várias vezes to perguntei a nunca obtive resposta. Dá-lhe cumprimentos meus. Quando te casas? E que é feito dum célebre casal, ele jornalista, ela historiadora de quem nunca mais ouvi falar?
    Sempre que puderes manda coisas que me permitam acompanhar o que se vai passando por aí. A seara agrada. Sempre que vejas livros com interesse manda. Que é feito do General H. Delgado? Ouvi dizer que ele tinha conferenciado com o Fidel de Castro, o que teria provocado um grande mal-estar nos meios portugueses. A propósito de Castro, que é feito do Soromenho? Se o vires dá-lhe um grande abraço meu e diz-lhe que cá vou andando apesar das mil e uma dificuldades com que deparamos. E que não me esqueço de que o Waldemar faz anos a 13 de Maio.
    Bem, meu caro, por hoje chega. Do outro lado vou escrever-te a resolução sobre Angola. Adeus meu caro: um bom abraço do teu.

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RESOLUÇÃO SOBRE ANGOLA

    A SEGUNDA CONFERÊNCIA DOS POVOS AFRO-ASIÁTICOS? DEPOIS DE SE INTEIRAR DA SITUAÇÃO EM ANGOLA

    SOLIDARIZA-SE com o povo de Angola em luta pela independência;
    INDIGNA-SE face às atrocidades infligidas pelo colonialismo português ao povo de Angola;
    EXIGE a anulação dos processos de alta traição intentados contra os patriotas angolanos e para o facto chama a atenção da Comissão internacional dos direitos do Homem;
    EXIGE a libertação imediata do líder angolano ILIDIO MACHADO e de todos os prisioneiros políticos;
    EXPRIME a sua confiança à Comissão especial das Nações Unidas encarregadas de inquirir sobre os territórios abrangidos pelo art. 73 da Carta das nações Unidas e PEDE que o problema das colónias portuguesas seja inscrito na ordem do dia da próxima Assembleia Geral.
    APELA para os povos Afro-asiáticos para que incitem os seus governos respectivos a considerar medidas diplomáticas contra Portugal;
    ADOTA a instituição de uma jornada de solidariedade afro-asiática para com os povos das Colónias portuguesas.

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Como delegados de Angola estiveram presentes, LARA, CRUZ, MENEZES

    A URRS anunciou a abertura de uma Universidade pª a amizade entre os povos, onde todos os estudos são gratuitos para os indivíduos afro-asiáticos e sul americanos. As condições de admissão são interessantes, pois admitem tipos até aos 35 anos. A duração dos cursos (os mais variados) é de 4 anos à excepção dos de Medicina que duram 5 anos. A este tempo deve adicionar-se um ano para os indivíduos que não conhecem o Russo. As viagens são pagas por eles. Estás a ver a corrida que vai ser para lá. Eu pessoalmente gostaria também de aproveitar o curso, mas aproxima-se cada vez mais a hora em que teremos de pedir contas aos teus compatriotas colonialistas e todos somos poucos para o fazer.

Carta de Lúcio Lara a Vasco Martins (em Lisboa).

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