Carta de Viriato da Cruz a «Caros Amigos»

Cota
0011.000.085
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Viriato da Cruz
Destinatário
Lúcio Lara e Amílcar Cabral
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
3
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Carta de Viriato da Cruz
[dactilografada]

Conakry, 18.3.60
[Acrescentado à mão por L. Lara: carimbo 21]
Caros Amigos,1

Escrevi-te há poucas horas e já volto a fazê-lo outra vez, por necessidade. Os problemas amontoam-se. Por outro lado, os atrasos do correio, a impossibilidade de se fazerem despesas de correio sempre que se queira e a impossibilidade de discutirmos frutuosamente por meio de cartas – tudo isso está a exigir que os responsáveis da FRAIN se reunam urgentemente. Por exemplo: Já há aqui uma colónia port., cercada por países livres, mas a FRAIN, en tant que FRAIN, não está concreta e diariamente ligada às massas interiores dessa colónia.
1 – De acordo: A FRAIN já pode tomar posição aberta contra as autoridades port.. Os documentos que publicámos e difundimos, a conf. de presse, as muitas notícias da imprensa mundial, citando todas as n/ organizações, já liquidaram definitivamente o jogo de esconde-esconde que prudentemente vínhamos a fazer. Agora, arranquemos a máscara porque já somos conhecidos. Por outro lado, no pé em que as coisas estão, impõe-se mesmo um novo problema: que comecemos a preparar e a impor os interlocutores africanos que, mais tempo menos tempo, mas fatalmente, deverão negociar c/ Port. os novos Estatutos para os n/ países. Refiro-me aos Estatutos dos n/ países como países,2 e não a Estatutos de aspectos humanos ou materiais dos n/ países. ESTAMOS NUMA NOVA ETAPA.
2 – Sintoma importante: Depois da nomeação do Silva Tavares (que se diz ser descendente de indianos e nascido em Cabo Verde) para governador de Angola, fala-se agora na próxima nomeação do Pinto Bull para governador da Guiné. Porquê só Angola e Guiné? Por muitos motivos certamente; mas acho também que para dividir a Frente PAI e MPLA. Os port. conhecem-na. Este facto, entre as muitas decisões novas que está a pedir, exige a criação ou proclamação da Frente das colónias afro-asiáticas de Port. Por amor de Deus e do diabo: rogo-vos que penseis com muito interesse nas consequências importantíssimas da proclamação (ao menos proclamação dessa Frente afro-asiática). Vejo nela mesmo a única via pela qual se poderá, talvez, impor a Port. a predominância do método pacífico na liquidação do s/ colonialismo. Solução pacífica não quer dizer sem nenhuma morte de africanos ou asiáticos. O problema do Congo foi resolvido pacificamente; mas houve e tem havido ainda mortes. Solução pacífica quer dizer sem guerrras coloniais.
3 – Os jornais em árabe também devem ser remetidos a alguns bons propagandistas por hábito (tipo Soromenho) e mesmo às autoridades portug. O essencial é que se escreva por cima dos artigos: extractos do relatório do MAC. Isso faz parte da muito importante guerra psicológica.
4 – A reunião do Comité Director3 em Accra não terá valor prático importante para nós. O Gilmor [Holden Roberto] mostrou-nos a ordem-do-dia. Muita palha e pouco grão.
5 – Marcámos a jornada de solidariedade para 3 de Agosto. Não se esqueçam de que temos de fornecer a todas as organizações africanas importantes documentos sobre os n/ países. Esses documentos ou material (em francês e inglês) tem de lhes ser fornecido com antecedência.
Podemos ter duas jornadas este ano. A outra seria, penso, marcada pela Conf. afro-asiática.
6 – Quanto à falta de quadros post-independência, justo o que diz o L. [Lúcio Lara]. Mas isso é já tarefa da União de Estudantes.
7 – As malas ou caixotes do L. já chegaram. Mas estão ainda na Alfândega.
8 – União dos Trabalhadores. De acordo. Mas é assunto que requer estudo cuidadoso. Só com reuniões colectivas podemos resolver esse problema.
9 – Recebi carta do Miguéis. Transcrevo partes dela: «Quanto ao n/ encontro: torna-se, efectivamente, indispensável e urgente. No caso de possibilidades, eu sou de opinião, te desloques tu até cá – mesmo para 4 ou 5 dias. Haveria vantagem nisso. Eu faria coincidir a tua chegada com a do membro principal – com quem tenho leves contactos – da organização de Maiombe4 referido na minha correspondência anterior. No tocante à UPA: soube da sua existência por notícia da rádio Brazzaville. Creio que tenha sede em Léo[poldville]. Não conheço qualquer membro dela. Compreende-se; é que, por cá se têm verificado casos de espionagem conduzida pela PIDE, o que já provocou certas medidas do Ministério do Interior cá da República».
Como sabeis já, pedi ao Miguéis que viesse, por umas semanas, até cá. Espero que ele venha. Ele deverá voltar depois para dar início à realização do que decidirmos aqui. Acho que só em face de possíveis sérias dificuldades que ele venha a ter depois de iniciada a sua actividade lá, é que um de nós poderá ir ajudá-lo, antes da independ. do Congo. Pois, depois do Congo ser independ. não há dúvidas de que deveremos imediatamente ir para lá. Além disso, penso que o Miguéis não deveria vir aqui para voltar apenas c/ planos. Eu preciso de lhe transmitir também conhecimentos s/ política, sindicalismo e situação da política exterior (baseado na n/ experiência pessoal na Europa e Ásia). Nós não precisamos apenas de combatentes; nós necessitamos também de quadros-militantes.
Peço ao L que mande ao Miguéis material que apresentámos à conf. de Túnis, pois ele diz não ter ainda recebido nada.
Na expectativa de que dentro de dias ponhamos fim aos dispendiosos e imperfeitos contactos por cartas, abraço-vos cordialmente.
ass.) V.

P.S. Proponho por iniciativa do H.M. [Hugo de Menezes] que a jornada de solidariedade, que poderá ser aceite pela Con. afro-asiática de Conakry, seja para a data da libertação de Dadrá (Agosto também). Mas nessa altura só as organizações asiáticas estariam obrigadas a efectuar essa jornada. Para as organizações de África a jornada seria facultativa (para evitar sobrecarregá-las). Há que acentuar o facto, que tem passado despercebido, mas que é importante, tanto para os n/ povos como para a opinião mundial, que o império port. já não está intacto. O caso de Dadrá e Nagar-Aveli é um exemplo edificante que merece o máximo de realce. O Abel [Amílcar Cabral] que exponha já aos amigos do Goan League essa nossa disposição. Eu sou contra o puritanismo político. A FRAIN (melhor ainda, o PAI e o MPLA) precisam de capitalizar prestígio e nome. A luta pela independência nacional está a ser feita na base partidária. A independência é um meio, uma base, um ponto de partida. E para mim, não é nada indiferente que, depois da indep. dos n/ países, tomem as rédeas do poder organizações c/ princípios opostos ao que nós consideramos mais de acordo c/ os interesses populares, e das classes trabalhadoras e camponesas em particular. Com franqueza: eu gostaria de ver o PAI e o MPLA tomarem papel principal na reconstrução das n/ pátrias. De resto, a UPA está a fazer um jogo individualista. Só fala de si mesma. Nunca fala da existência de outras organizações. (Cf., por exemplo, artigo «Angola bastion of colonialism», publicado há dias no «Ghana Times», no qual se tem o desplante de afirmar que todos os presos políticos em Angola são membros da UPA!). Não sejamos, pois, de um idealismo de catecismo, ingénuo. Não devemos certamente queimar os outros sem razão; mas precisamos de cuidar vigorosamente dos n/ interesses: do n/ prestígio e da expansão dos nomes do PAI e do MPLA. Não falemos só de FRAIN. Sejamos realistas e políticos!
EM TEMPO: pensei mais longamente e concluo, não com convicção total, que deve ser mais conveniente e conciliante imprimir o Manifesto com o nome do MAC e com data anterior a Janeiro. A impressão de um documento não significa que é a primeira vez que ele surge, tanto no interior da organização respeitante, como no exterior desta. Muitas vezes, até, imprime-se um documento muito tempo depois de ele ter servido à organização respeitante e apenas com o fim de trazê-lo ao conhecimento do público em geral. Exactamente como os livros «branco» ou «azul»: documentos de um Estado, os quais circularam secretamente apenas pelas chancelarias, documentos que fizeram época e que hoje se trazem ao conhecimento do público.
Então, se tudo pode ser exteriormente explicado assim, proponho o seguinte: Para dar um ar mais natural à coisa, talvez seja conveniente mesmo escrever sobre a capa, num dos cantos desta, «Colecção de documentos do MAC». Como se a publicação impressa do Manifesto fosse ditada pelo simples interesse de difundir, pelo público em geral, documentos internos do MAC (organização declarada e sabidamente clandestina).
Com o que digo atrás, tento apenas encontrar justificação plausível e remendo que pegue para a úlcera renitente (não digo incurável).
Permitam-me a vaidade: Vejo que, exprimindo embora sem compostura, tive razão. Há coisas que efectivamente se podem guardar; mas documentos políticos, quanto mais tempo os retermos na mão, mais eles nos queimam, porque, com o passar e o mudar dos acontecimentos até vai faltando base que os sustente.
A propósito: Pergunte-se já aos amigos de Lxa e ao Mc [Marcelino dos Santos] que sugiram dois ou três nomes para se dar ao futuro substituto do condenado FRAIN.
Estou totalmente convicto de que o acontecimento que melhor poderá justificar a morte do FRAIN será a projectada conf. das colónias afro-asiáticas do Puto. Fora disso, a mudança de nome poderá ter o ar de brincadeira de garotos.
Ainda a propósito: Na introdução à brochura, que enviei ao M. [Mário de Andrade], escrevi o seguinte: «Outro importante acontecimento, êxito do MAC, foi a constituição da FRAIN, formada pelo PAI e pelo MPLA, e em cujo seio o MAC se dissolveu. A FRAIN está aberta a todas as organizações das colónias port. que lutem activamente pela liquidação do colonialismo de Port.» – Transcrevo esta passagem para evitar que na nota que acompanhar o texto do Manifesto não haja algo que entre em contradição com o que escrevi; ou vice-versa: para que vocês tenham tempo de propor ao M. a redacção que acharem mais conveniente àquela passagem da introdução.
Desculpem-me: não vos enviarei hoje o texto da referida introdução, porque esta carta pesaria muito. Questão de «massa».

Carta de Viriato da Cruz (Conakry) a Lúcio Lara e Amílcar Cabral

A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.