Carta de Viriato da Cruz a Mário de Andrade

Cota
0011.000.084
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel comum
Remetente
Viriato da Cruz
Destinatário
Mário de Andrade
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
2
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Carta de Viriato da Cruz a Mário de Andrade [dactilografada] Conak[ry], 18.3.60 Caro Mário, Os meus ardentes votos pelo restabelecimento da tua saúde. Regozijo-me imenso com o passo em frente concreto que foi a criação da UDEAN1. A União já não morrerá. Poderá vir a sofrer de doenças. Mas o facto inegável de que ela se baseia nas tremendas dificuldades dos n/ estudantes, na miséria do ensino nos n/ países, e no entusiasmo generoso da juventude – esse facto é a garantia da sua perenidade e desenvolvimento. Com espírito construtivo e ainda bem contente c/ o acontecimento, tenho a dizer o seguinte: Acho a palavra «Negra», no nome da União, a mais e contraproducente. Tenho centenas de argumentos contra a inclusão dessa palavra. Exprimo-te apenas o seguinte: Estamos na época irreversível da «Independência e unidade», do Panafricanismo, da «África para africanos», do «um homem um voto» (futura divisa mesmo da República do Ghana), da proibição constitucional do racismo em novos Estados Independentes de África, da solidariedade afro-asiática. Porquê, ainda, África de negros e África de árabes, na altura em que a bomba atómica explode na fronteira entre as «duas» Áfricas? A explosão dessa bomba não mostra porventura, concretamente, como um símbolo terrível, que hoje mais do [que] nunca é indispensável a unidade de acção em toda a África para se vencerem forças reais que ultrapassam as do «mundo árabe» e do «mundo negro» tomados isoladamente? A unidade do trabalho de todos os Africanos será igualmente indispensável para criarmos neste continente sociedades, onde o mais importante não pode ser o cuidado de manter e fomentar os factos que diferenciam o negro das outras raças, mas sim onde o homem «negro por acidente natural» goze efectivamente da liberdade, da felicidade e da paz a que aspira o homem de qualquer raça. Evidentemente que as comunidades negras – que, aliás, já não podem nem poderão, em parte nenhuma de África, preencher totalmente e exclusivamente a área de uma nação – as comunidades negras têm e terão o direito de desenvolver as suas peculiaridades históricas e culturais. Mas, hoje, mesmo em África, a luta concreta e eficaz pela liberdade só tem e só poderá ter êxito com base no facto nacional, e não nos factos racial ou tribal. Não são negros (como eu, e, creio, tu mesmo) muitos dos nossos companheiros que neste momento estão lutando e sofrendo para que amanhã possam trabalhar, neste continente, para a concretização dos desejos universais de abundância, inteligência cultivada e racional, liberdade e fraternidade entre todos os homens. A fuga oportunista para o branco foi um mal humilhante de que sofreram e sofrem os não-brancos, nas colónias. Que amanhã, na África libertada do colonialismo, Deus e os homens livrem os não-negros do mal humilhante da fuga oportunista para o negro. De resto, lembro-vos o caso de Cabo Verde: maioria mestiça, africana sim, mas não rigorosamente negra. Por mim, quero ser o que sou por natureza! Quero viver ali onde me aceitem tal qual sou por natureza! Não posso portanto condescender, um segundo sequer, com algo que possa levar ao mesmo mal ao avesso. 2 – Escrevi ao Rocha e ao Frett para saberem, junto das autoridades da Alemanha, se se pode declarar explicitamente, nos Estatutos, que o organismo director da União está instalado em Leipzig. Creio que a resposta será positiva. Mas acho conveniente avisar disso as autoridades de lá. 3 – Informo-te já que na revista do «Trud» – «Temps Nouveaux» -, deste mês, vem a notícia de que o Conselho de ministros da URSS tomou, em 24 de Fevereiro, a decisão de abrir em Moscou «une Université d'Amitié des peuples pour aider les pays d'Asie, d'Afrique et d'Amérique latine à former leurs propres cadres de spécialistes dans tous les secteurs.»2 4 – A criação da União terá uma enorme influência favorável sobre a n/ luta contra o colonialismo port. Pois me parece evidente que, a partir de agora, das duas uma: ou estabelece-se uma emulação, de ajuda aos n/ estudantes, entre Port. e outros países; ou Port. aumenta, estupidamente, entre os n/ estudantes, o ódio contra o seu colonialismo, reforçando as medidas de supressão e de controle. 5 – Estou bem de acordo com o restante dos Estatutos da União. A redacção destes encerra até um efeito, aceitável, de mobilização revolucionária contra o colonialismo. Viva a União dos Estudantes! Cumprimentos a todos os n/ amigos e amigas. P.S. A tua doença não será feitiço do Diop ou do macumbeiro do Gilberto Freire? Logo que chegues, temos de ir aqui a uns «mestres». Ah, sim, culturalmente sou também negro...

Carta de Viriato da Cruz (Conakry) a Mário de Andrade

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