Carta de Viriato da Cruz a «Caros Amigos»

Cota
0011.000.078
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Viriato da Cruz
Destinatário
Lúcio Lara e Amílcar Cabral
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
3
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Carta de Viriato da Cruz
[dactilografada]

Conakry, 17.3.60
[Acrescentado à mão por L. Lara: R 24/3]
Caros amigos,

Respondo às do Abel [Amílcar Cabral] e L. [Lúcio Lara], de, respectivamente, 10 e 14. Não recebi a carta do L. anterior a esta última, e na qual ele transcrevia trechos da carta do Mc. [Marcelino dos Santos]. Importante saber porquê. [Acrescentado à mão: Já recebi essa carta. Hoje].
1 – A Conferência afro-asiática começará, aqui, na segunda semana de Abril.
2 – A UGTAN enviou também telegrama de protesto. O adiamento do julgamento foi um incontestável êxito da luta dos n/ povos, na qual se inclui o n/ trabalho exterior. Já temos a força para fazer recuar os n/ «donos». Informaram-me que na data do julgamento o ambiente de Luanda estava tenso e que houve mesmo tentativa ou intenção de o povo libertar os presos!
3 – Satisfeito por saber que o M. [Marcelino dos Santos] estava a colaborar c/ o H. [José Carlos Horta] no trabalho dos Estatutos para os estudantes.
4 – O M. [Mário de Andrade] informou-me s/ a brochura. A seu pedido, escrevi a introdução, de que vos mando cópia. A brochura será boa lenha a impedir, como convém, que o fogo do interesse acusador contra o colonialismo port. não se apague no plano internacional.
5 – Apareceu ontem aqui o José [Gilmore, ou Holden Roberto]. Disse-nos que, depois da conf. de presse do Abel, veio de Angola a Léo um agente pidista. Este foi à casa da família do José G. e perguntou à mulher por ele. Quis saber se ele estava em Londres. Em face do sucedido, a família de J.G. mudou-se para Brazza. A conf. do Abel foi mundialmente difundida pelas agências noticiosas. Nos Congos e Nigéria saiu também notícia. Em suma: o caso alarmou os cagões dos lusos.
Do actual comportamento e atitudes do J.G. para connosco ressalta nitidamente que os seus companheiros – com os quais ele conferenciou nos Congos – ordenaram-no a colaborar connosco. Veio para discutir problemas práticos connosco. Ele ainda esconde, por conta própria, muita coisa. Disse-me, por ex., ter falado nos Congos com compatriotas que me conhecem pessoalmente. Mas só me disse o nome do Miguéis e não me quis dizer os nomes dos outros. Ele sabe agora que nós podemos contorná-lo, e isto influiu na s/ atitude. – Deduzi ainda das conversas que os n/ compatriotas que estão lá em baixo (só em Léo há cerca de cem mil) desejam que nós partamos para o sul logo depois da independ. do Congo. Em suma: temos os primeiros indícios concretos de que estamos perto da ocasião de trabalharmos c/ as massas.
O J.G. sente necessidade premente (leia-se imposta) de discutir problemas práticos connosco, e c/ Abel e L. também presentes.
O J.G. tem de estar no dia 28 em Accra, à reunião do Comité Director.
6 – No dia 14, o secrt.-geral disse-nos que no dia 15 daria ordens ao s/ embaix. em Paris para tratar da vinda imediata do M. e do Abel e mulher. Não quis que o Abel tratasse disso c/ o embaix. de Londres. Peço, portanto, ao Abel que se ponha imediatamente em contacto c/ o M. para apressarem a burocracia em Paris. Os 3 já têm emprego prometido. Mas aqui compreendem bem, no entanto, que 2 deles precisam de tempo livre.
7 – Quanto à questão do L. e família, o problema não envolve insolução. O I. [Ismael Touré] (ministro que esteve em Túnis) disse-me há dias que eu poderia trabalhar na Rádio. Disse isso sem que eu tivesse feito nenhum pedido nesse sentido. Ora, penso que o L poderia trabalhar, em meu lugar, na Rádio. Eu posso trabalhar rendosamente em casa, tanto mais que recebi oferta da Alemanha para publicar o livro que estive a escrever. Preciso, portanto, de acabar o manuscrito, cuja publicação me dará dinheiro. – O regresso do L e família para a Europa é hipótese que deve ser absolutamente rejeitada. Tanto mais que há perspectiva frutuosa de irmos para o Congo depois de Junho. Contactos que tive aqui c/ o presidente, que já conhecia, e c/ abaquistas [da ABAKO] reforçaram mais essa possibilidade. – O H.M. [Hugo de Menezes] diz que vai escrever ao L para informá-lo de que aqui em casa há espaço para L e família e que estes podem vir quando quiserem.
8 – De acordo c/ o L: impõe-se reunião de todos, incluindo Abel. Vou mais longe: precisamos de estar sempre juntos. Um indivíduo só é incapaz de resolver satisfatoriamente os problemas agudos que se vão amontoando dia a dia em progressão geométrica. Que nos reunamos pois o mais breve possível.
9 – O problema negro-branco não se põe aqui nos meios responsáveis do país. A Constituição proíbe mesmo, textualmente, o racismo. Tenho a impressão até de que, na cidade, o número (grande) de brancos é muito maior ao de mestiços. Brancos trabalham mesmo em organismos oficiais. Certo: encontram-se grãos de racismo à la nègre numa pequena parcela móvel do zé-povo. Este racismo, porém, não é ofensivo: manifesta-se por certa desconfiança. Não foi em vão que o colonialismo europeu (acidentalmente branco) dominou aqui longo tempo! De modo geral, as relações humanas aqui são incomparavelmente melhores do que, por ex., em Angola.
10 – Novo posto emissor que cobrirá toda a África entrará aqui em funcionamento no fim deste mês. Óptimo para nós.
11 – Insisto na necessidade de todos nós, mas com o Abel à frente, trabalharmos no caso da Guiné port. As condições exteriores estão maduras. Sei que, interiormente, várias organizações trabalham. Mas penso ser já tempo de se dar início a uma acção ininterrupta que aglutine essas organizações, que as ponha a marchar, unidas, para novas etapas, que aproveite, inteligentemente e no máximo, as condições exteriores, e que insira, com clareza, a luta do povo irmão da Guiné na luta geral contra o inimigo comum: o colon. luso. A Guiné tem todas as possibilidades de elevar a luta anticolonial no império luso a um nível novo. Chateia-me o estado do grupo daqui. Por intermédio do H.M. pretendi influir na orientação do grupo. O m/ plano visava, para já, fazer algumas conferências s/: o colonialismo em geral e a natureza do colonialismo luso; organização política e trabalho conspirativo; trabalho de propaganda e agitação; o papel dos trabalhadores na revol. anticolonial; posição teórica e trabalho prático necessário à classe trabalhadora; sindicalismo. Essas conferências não teriam ar académico, mas prático e revolucionário; e nelas o auditório colaboraria intimamente por meio de discussões colectivas. Estender-se-iam por um período de seis-sete dias. Mas, como disse, o H.M. afastou-se do grupo, e o tal plano ficou no papel. Mais tentativas fiz, junto de guineenses e caboverdianos, mas nada deu ainda frutos.
12 – Óptimo sobre o acordo do Goan League para a conf. de organizações políticas e sindicais de todas as colónias africanas e asiáticas de Port. Ela impõe-se o mais urgentemente possível. Penso que o Abel pode já fazer avançar a coisa, apresentando ao Goan um projecto do tema da conferência. Sugiro: «A) Estudo, estabelecimento e organização dos meios práticos da luta unida dos povos de todas as colónias africanas e asiáticas de Portugal, com o fim de: (1) Impor a Port. a liquidação pacífica do s/ colonialismo; (2) Impor, por todos os meios, a descolonização imediata dos referidos países sob dominação portuguesa.
B) Criação de organismos encarregados do funcionamento permanente e eficaz da Frente dos povos afro-asiáticos contra o colonialismo português.»
Podemos propor já os seguintes lugares, a escolher um, para a conf.: Indonésia, China, União indiana ou Cairo.
Encetar já negociações junto de representantes destes países, com o fim de: um deles nos convidar, correndo às suas expensas os gastos do séjour (três dias) e de viagem dos delegados à conferência.
Em caso de fracasso dessas démarches, pedir a ajuda do Conselho afro-asiático. Data da conferência: primeira semana de Maio próximo. A data deve ser sempre proposta, porque o ritmo de trabalho de preparação de qualquer coisa depende sempre do tempo que se tem em frente.
13 – Acho que podemos e devemos abrir mais uma frente para atacar Portugal na ONU. Levantar, junto da Comissão dos Direitos do Homem, o problema das centenas de milhares de angolanos, moçambicanos, guineenses e goeses que vivem fora dos seus países por causa das condições desumanas que Portugal criou nos respectivos países. Este ataque podia começar c/ uma moção feita pela projectada conferência dos povos afro-asiáticos sob dominação portuguesa.
Lembremo-nos que, apesar de a questão dos árabes da Palestina se apresentar não exactamente como a nossa, a ONU, por intermédio da Comissão dos Direitos do Homem, condenou, neste ponto, Israel.
Seja como for, o que nos interessa não é o resultado dos votos da ONU, mas sim a necessidade de atacarmos Port., atormentá-lo constantemente, arrancá-lo da escuridão em que ele se vem escondendo proveitosamente para si. Os relatórios de Galvão, do governador do Bié, e os depoimentos de uma parte dos que emigraram compelidos pelas condições desumanas (que o são!) poderão servir de apoio da nossa acusação.
14 – O FRAIN poderá mudar de nome – com pretexto plausível – na altura da nossa conf. afro-asiática. O Secretariado ou Conselho Permanente que saísse dessa conf. poderá, muito logicamente, substituir a FRAIN. Em vez desta, passaria a existir uma Frente afro-asiática.
15 – O Manifesto (coitado!) poderá ser apresentado e assinado pelo PAI e pelo MPLA, em vez do MAC, que já morreu oficialmente e com estardalhaço, ou em vez da FRAIN. A ser publicado em nome do MAC, teria de sair com data anterior à Conf. de Túnis. É admissível que o PAI e o MPLA possam fazer a crítica do colon. luso em todas as colónias africanas e possam exortar os povos de Cabo Verde, S. Tomé e Moçambique à luta. Sou pela primeira solução.
16 – Bem, caros amigos, muito há que discutir tête-à-tête e profundamente. Espero, portanto, que o mais brevemente, dentro de poucos dias, estejamos todos aqui, em volta desta mesa.
17 – Ao L.: Pensamos que a nota publicada no «Avant-garde» de 28 de Fev. merece uma mise au point. Sugiro a seguinte: Felicitar sinceramente ao jornal pela simpatia activa que ele manifesta pelos problemas dos povos africanos sob dominação lusa; dizer, no entanto, que o centro da actividade actual da FRAIN não é uma preparação para a luta armada, mas sim a utilização de todos os meios pacíficos para a liquidação da dominação colonial port.; dizer que não nos consta que haja políticos angolanos na Guiné. – Compreendeis, amigos, acho que mesmo quando estivermos a dar tiros deveremos dizer sempre sempre sempre que desejamos uma solução pacífica, e que a busca desta solução ocupa o centro do n/ interesse.
(No entanto, aqui entre parêntesis, a nota do jornal não é de todo nociva: no mínimo, permite-nos essa mise au point). Se estiverem de acordo, o L. deverá redigir essa carta ao jornal. Mas acho que o L. deverá assinar com um outro nome, em vez do seu.
18 – Finalmente, aconselho o Abel a ter muito cuidado com a sua segurança física. (Recordar démarche pidista em Léo). Melhor solução vir rapidamente para aqui.
19 – Retiro a hipótese de pedir demissão do Comité Director.
Saúde para todos
ass.) V.

[Acrescentado à mão, na margem da 1ª página: P.S. – Espero que dês a tua opinião ao Abel sobre o nome sob o qual deve sair o Manifesto. MAC? FRAIN? Ou só PAI e MPLA? Aceitarei o que vocês finalmente decidirem. E na margem da 3ª página: P.S. – Ao L.: Aconselho-te a estudar, desde aí, atentamente e em função dos n/ problemas, o 2º tomo das obras «choisies» de Mao-Tse-Tung. Esse segundo tomo trata (como um verdadeiro tratado) dos problemas da guerra revolucionária.]

Carta de Viriato da Cruz (Conakry) a Lúcio Lara e Amílcar Cabral

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