Carta de Abel a «Caros amigos»

Cota
0011.000.073
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Abel [Amílcar Cabral]
Destinatário
Lúcio Lara e Viriato da Cruz
Data
Idioma
Conservação
Mau
Imagens
2
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Carta de Amílcar Cabral
[dactilografada]

14 Março 1960
[Acrescentado à mão por L. Lara: R. 18.3]
CAROS AMIGOS:1
Deixo o Manif. cujo texto actual estou a dactilografar para poder apresentá-lo a estranhos, e vou referir-me a alguns dos milhentos problemas que têm sido postos nas vossas sempre bem-vindas cartas. Creiam que gosto disto: estamos decididos a dar o máximo, a pôr e resolver todos os problemas. Mas, desculpem o lugar comum, devagar, porque temos pressa. Meus amigos, nós não estamos a correr, estamos a marchar para a libertação dos nossos povos, depois de cinco séculos de sujeição ao pior dos colonialismos. Temos tempo para lutar e para vencer – e venceremos.
1. Bureau. Corresponde à nossa confiança no Governo da Rep. da Guiné e no seu glorioso PDG, a autorização para instalarmos o B. Por ora não teremos conseguido tudo, mas isto representa muito, e estou certo de que vamos ter (e merecemos) dos nossos irmãos da Rep. da Guiné, o melhor apoio, a mais eficaz ajuda. Quanto a mim, é questão de tempo e do desenvolvimento da nossa luta, do trabalho que formos capazes de realizar a partir desta primeira etapa. O Ma [Mário de Andrade] irá em Abril e espero que teremos ajuda para a deslocação dele. Eu conto sair daqui dentro de 15-20 dias e estarei em Con.[akry] por todo o mês de Abril. O V. [Viriato da Cruz] não deve sair daí até à m/ chegada, após a qual julgo será possível a ida do L. [Lúcio Lara] e família. Desde que alguns de nós tenham trabalho garantido, não haverá problema para a instalação de uns tantos, tanto mais que aí não negarão trabalho a quem o pode realizar, mesmo sem o diploma de técnico-não-floue. Com a m/ profissão que esteve e continua ao serviço da nossa luta, creio ter direito a um lugar decente, ao menos ao nível do que tinha e me era garantido por não-africanos, na base de uma experiência provada e que pode ser útil de verdade à evolução, indispensável, dessa terra da Guiné, que é a minha. Quanto a mim, portanto, o mais tardar em Maio estaremos todos aí, para resolvermos os nossos problemas e prepararmos novas etapas de luta (Congo, ONU, Tangan[ica] etc.)
2. Julgamento. Sei agora que foi adiado, quando estava tudo preparado para realizá-lo. Não sei para quando, mas vamos sabê-lo. Estou certo de que o adiamento resultou da nossa luta, da posição adoptada pelos nossos presos, da chuva de protestos que o G.P. [Governo Português] terá recebido. Se interpreto bem o que me dizem disfarçadamente, o I. Mach. [Ilídio Machado] fez declarações sensacionais. A entrevista de Imprensa (conferência), que não teve grande reflexo público aqui, teve-o lá fora. Segundo as Ag. Intern. [Agências Internacionais], no Puto [Portugal] ficaram alarmados e, pode ser coincidência, mas dois dias depois estava aqui o Ministro dos Estrangeiros para conversa sobre África. Claro que me acusam de «comunista» publicamente, mas as démarches que encetei continuam e eu creio que devo relatar-vos tudo na n/ reunião. Agora, com o adiamento, vamos poder fazer muito mais pelos nossos, pela causa. Não descurarei qualquer oportunidade séria que tenhamos (e temos) neste meio. Avante, pois.
3. Assuntos internos. Embora tenhamos pressa e haja assuntos urgentes, acho que só de viva voz devemos tratar deles. Isso de lavar as nossas roupas em cartas (roupa limpa ou não) pode ser pernicioso. Decerto que me compreendem e, apesar das angústias e sacrifícios, creio que a vossa paciência não se esgotou nem se esgotará. Resolveremos tudo – de viva voz.
4. Caso Miguéis. Muito animador e corresponde à primeira das novas etapas que temos de vencer na vizinhança de Ngola. De fixar o entusiasmo e a confiança dele, que correspondem à da n/ gente em Ngola. Acho portanto que devemos prosseguir, apertar o contacto e, não sejamos muito exigentes, sempre é possível dar-lhe indicações concretas sobre o que deve continuar e começar a fazer. O V. é muito capaz de fazer isso – e faz.
5. Finanças. Fundos que temos de obter da n/ gente, contribuição dos que tiverem trabalho remunerado – devem ser a base da manutenção do Bureau. Tenho esperança de que teremos ajuda dos Africanos. Nesta base, a obtenção de um empréstimo substancial é hipótese a estudar, e eu poderia ocupar-me de tentá-lo, se me derem o v/ agrément, antes do m/ regresso. Assunto melindroso que carece de ponderação. Só aceitável em extrema falta.
6. Lxa [Lisboa]. Ainda não tive notícias directas, seguras. Pus imensa cautela no contacto que tentei, e vou tentar outro que me parece melhor e que sabem qual é. Espero ter êxito. Sei no entanto que a vida continua em Lxa. Sabemos todos das dificuldades de ligação que se não vencem numa vezada.
7. Manifesto. Seis a sete contos a impressão. Quase inviável, mas não desisti. Tive de ordená-lo mais e de comprimir um pouco. Estou a dactilografá-lo, como disse, para tentar encontrar a melhor e mais barata publicação. Mesmo que seja em foto-impressão, em tamanho reduzido, mas legível. Vai reter-me aqui mais uns dias. Penso que deve ser do Mac, porque o é, porque o nome de Frain pode mudar, porque temos de respeitar a nossa própria história. Incluiríamos, no fim, uma nota sobre a criação da Frente, e sairia com a data de Dezembro de 1959. Seria uma satisfação para os de Lxa.
8. Goan League e outros contactos. Estão estabelecidos os laços iniciais com os goeses. Actuo agora aqui de colaboração com um dos leaders da libertação goesa e com o Com. Afr. Org. [Committee of African Organisations]. A melhor boa vontade, a melhor intenção de colaboração estreita e frutífera. Grandes perspectivas de colaboração no futuro, que vos relatarei oportunamente. A ideia do V. que havia sido sugerida por aquele leader, é muito boa. Por intermédio dele, do Com. e de outros amigos, tenho estabelecido e vou estabelecer novos contactos. Espero que destas demarches resultarão benefícios reais para a nossa luta. Necessitam de nós e nós necessitamos deles.
8. Afro-asiática. Concordo com o sugerido por V. e aceite por L. Mãos à obra, pois, e que V. indique a data certa. Se não pudermos estar todos presentes, alguns estarão e receberão de todos os documentos necessários. Temos de preparar tudo com antecedência. L. fará o regulamento, mas é preciso esclarecer o que quer dizer «estranhos» («relações dos delegados com gente estranha»). Para a Afro-asiática da Mulher, julgo que, salvo a possibilidade de conseguir uma delegada da Guiné e dinheiro para as deslocações, só poderemos estar presentes com uma Mensagem. A Al. [Alda Espírito Santo] já regressou a casa e não temos outra parceira cá fora. Se No. [Noémia de Sousa] saísse...
9. Com. Dir. CPA [Comité Director da Conferência Panafricana]. Julgo que V. está mais perto e, por isso, deve tratar com o Gilmor [Holden Roberto] e o Secretariado dos nossos problemas. Não podemos deixar a coisa arrefecer e temos o direito de ser ouvidos e atendidos.
10. União dos Estudantes. Eu e Ma fizemos o Projecto de Estatutos que já passei a ciclostilo e envio-vos agora.
Vou espalhá-lo o mais possível, para base de discussão que espero não seja muito longa, pois urge criar a Associação. Claro que partimos do que já tinha sido feito. A propósito, acho que só devemos criticar na base de ouvir previamente o criticado. Porque havemos de supor que os outros cometem erros? Penso que a ideia do L. sobre a União de trabalhadores é de levar avante. Estudaremos o problema, e eu, em Dakar, colherei elementos para o caso da Guiné.
11. Carta da Frain. Tenho-a ciclostilada em português e em francês, de que vou enviar-vos exemplares. Tenho a tradução em inglês, feita pelo amigo B. Dav. [Basil Davidson], e que vou ciclostilar. Não enviarei muitos exemplares por causa do porte. Calculem que para o Apelo e para a Nota à Imprensa que distribuí para todos os Continentes, gastei mais de 600 esc. em selos. Creio que o texto da Carta não será o definitivo, pois há algumas lacunas e, além disso, o problema do nome da F. voltou a pôr-se com agudeza. Digam alguma coisa acerca disso na volta do correio. Temos de decidir de vez.
12. Respeito aos métodos democráticos. Julgo que somos todos democratas. Respeitamos a opinião dos outros e ouvimo-la, quando possível, para decidir. Vivemos na anormalidade, cada um para o seu lado, numa espécie de guerrilha de palavras contra o nosso inimigo. Sacrificamo-nos para uma reunião (Túnis, por exemplo) e os que não fizeram esse sacrifício, porque não quiseram ou porque não tentaram, clamam pelo respeito etc. Estou em crer que ainda estaríamos em Túnis à espera de opiniões dos nossos, se não tivéssemos tido a coragem de decidir para que a luta progrida. Não, meus amigos, quando estivermos todos juntos, a dar tudo, ninguém falará de respeito, etc., porque só sabemos agir nessa base. Mas não somos jacobinos, e ou confiamos em que, nesta anormalidade, cada um interpreta a vontade de todos e não prejudica a luta, ou seremos veros democratas inactivos.
13. Tradução das Resol. e relações com Pc puto [PCP]. Vou traduzir e ciclostilar as Resol. Não farei milhares, porque não há dinheiro para papel, etc (que falta de memória é essa, amigo?), mas farei o possível e indispensável. Mandarei para Puto e para as n/ terras, na medida em que for viável. Acho que toda a documentação deve ser remetida ao Pc, para publicidade. Elaborei um panfleto que vai ser publicado pelo Committee, e que tentarei mandar também, se ficar pronto antes da minha partida. Factos do col. port. e a nossa luta. Todos têm gostado e o BDav está a revê-lo.
14. Hino, bandeiras, etc. No Bureau resolveremos isso. Por meu lado, há muito que desenho bandeiras e penso na letra do hino. Mas temos tempo, e isso é problema sério que nos vai levar umas boas horas. E por hoje não posso mais, sou mau dactilógrafo e, diabo, hei de encontrar-vos.
V: brincando ou a sério, tens razão – não devemos chocar os ovos, pelo simples facto de que não são nossos; são dos nossos povos. Rima e é verdade. Mas não podemos perder tempo com diários, quando há muito que fazer, temos de fazer, e vamos relatar tudo o que fizemos. Claro que somos honestos bastante, para não armarmos ovos em bunda vazia. E os ovos são coisas palpáveis.
L.: tens sacrificado o Paul e a Ruth. Se não fores capaz de pensar nos teus, como pensarás nos outros? Lutamos, sacrificamos todos, porque somos humanos. Esta – uma base indestrutível. Acho que nesta fase, tu deves decidir em re[lação] à tua família, que será a boa decisão. E marcharemos juntos para a vit[ória].
O melhor abraço de camaradagem do vosso
Abel

Carta de Amílcar Cabral a Lúcio Lara e Viriato da Cruz

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