Carta de Lúcio Lara a «Caros Amigos»

Cota
0011.000.067
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel comum
Remetente
Lúcio Lara
Destinatário
Caros Amigos [Amílcar Cabral e Viriato da Cruz]
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
5
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

Excerto da carta a Viriato da Cruz e Amílcar Cabral [dactilografada] Casablanca, 10 de Março de 1960 Caros Amigos Acabo de receber duas cartas de V. [Viriato da Cruz] (de 4 e 7/3) a que me apresso a responder. Faz hoje precisamente um ano que abandonei a Lusitânia, e se de um ponto de vista pessoal e familiar tenho de reconhecer que a situação se encontra cada vez mais confusa e sem perspectivas algumas, de um ponto de vista da nossa luta regozijo-me em constatar que muito se tem feito, e de positivo, apesar de uma certa improvisação contra a qual temos de lutar, e apesar das dificuldades que nunca pensamos encontrar da parte de quem tanto apregoa chavões que só servem para enganar os incautos. Perdoem-me o sentimentalismo em invocar esta data, que não é mais do que um pretexto para afirmar a m/ confiança nos resultados da n/ luta que pela primeira vez vai poder contar com um bureau, cuja falta tanto a tem prejudicado. Aceito trabalhar no projecto de programa, que dentro de uma semana o mais tardar vos enviarei [...] Logo que esta [carta] despache, vou escrever ao Secretariado da Conf. Afro-Asiat. focando os pontos citados por V., com que concordo. [...] Aqui não tenho feito démarches especiais além das que vos dei notícia. [...] Não tenho notícias nenhumas de Lx. a não ser de m/ primo e dum amigo, que dizem que os jornais portug. nada publicaram sobre a Conf. Aliás não espero ter notícias de malta nossa, pelas razões que expus na última carta. Penso que o Abel não pôs de parte os Estatutos projectados pelo Horta, e que eu lhe dei antes de nos separarmos, pois por uma carta do referido H., ele diz que após terem recebido instruções de Paris, vão atacar de novo o problema dos Estatutos. Estou em absoluto acordo com o princípio de que devemos excluir das n/ fileiras todas as tendências racistas ou tribalistas. Impõe-se mesmo que em trabalhos próximos batamos essa tecla. Há contudo que vencer cautelosamente todas as reservas dos nossos compatriotas, mesmo dos que estão nas n/ fileiras e isso poderá fazer-se acentuando que a única questão a ter em consideração na selecção rigorosa a que deve proceder-se é a posição intelectual, e a participação efectiva na luta pela libertação dos nossos povos dos candidatos africanos à integração no combate. A carta do Miguéis a que o V. se refere, dá-me pessoalmente um novo alento, pela sua decisão firme de unir os seus esforços aos n/. Creio que afinal todos nos regozijamos. Eu estou de acordo que ele ganhe as nossas fileiras, até porque não há problema nenhum de ordem orgânica, visto ele ser um elemento do M.P.L.A. Lamento que o n/ MPLA não tenha gente no Congo; mas compreendo as dificuldades encontradas e acredito, como sugere o Miguéis, que a FRAIN possa obter maior audiência se trabalharmos para isso. Gravíssimas as questões tribalistas. Prevejo dificuldades imensas... De acordo que será de integrar a malta na FRAIN, mas não definimos bem na carta como integrar indivíduos e parece-me que é o que propõe o Miguéis. A não ser que sugeríssemos que essa malta se organizasse em núcleos de resistência, de acordo com as suas origens. Não será isso porém mais difícil do que integrá-los directamente na FRAIN? De resto o problema subsiste quanto à posição dos indivíduos que pertenciam ao MAC e que não pertenciam a qualquer organização. Ignoro que instruções terá dado o Abel pª Lx. a esse respeito. É possível que lá venham a surgir as mesmas dúvidas levantadas pelo Mc. [Marcelino dos Santos], como devem ter lido na carta que vos transcrevi. Sabes a direcção do Miguéis em Ponta Negra, V.? [...] Ainda acerca de Correios, não nos esquecemos de avisar em Túnis pª reenviarem pª aí os teus pacotes. [...] Enviarei em breve pª alguém em Paris, material n/ que lhe pedirei pª fazer chegar ao pc [PCP]. Já tinha pensado nisso, mas como muitas outras coisas ainda estava no domínio da intenção. De acordo com a impressão da tradução da Resolução. Discordo apenas dos milhares. Acho que um milhar já é suficiente. Quem se encarrega disso? Idem quanto aos cartões. Vou ver se vejo aqui um modelo, que depois vos envio. Materialmente não posso fazer face a essa despesa. Quanto ao hino, acho que é de esperar não só por um compositor como por um maior apoio. Quanto ao emblema e bandeira é de começarmos de facto em minha opinião, a pensar no assunto. Quanto a outros problemas como os de cobrança, etc. acho que nada de especial podemos fazer pª já, assim desunidos como estamos. Creio que neste momento só através do Abel será possível auscultar o problema com Lx. Mas isso ainda leva o seu tempo. O processo de controle a m/ ver não pode ser feito por recibos nem talões. Ou bem selos ou qualquer publicação. Mas o controle é muito difícil. Teremos de fazer confiança em responsáveis de grupo. Porque não? É falível, mas ainda é o melhor processo. 11/3/60 Recebi hoje os Mondes com o artigo sobre Angola. Não está nada mau, para ser escrito no Monde. Veio também carta do Horta, que diz que se vai publicar lá «uma brochura com os documentos de Túnis relativos às colónias portuguesas, assim como o apelo com as fotos dos acusados e informações relativas ao processo de Luanda. Deverá sair no fim deste mês ou princípios do próximo».1 O Mário tb. escreveu. Está na Alemanha desde 6/3 e conta lá ficar duas semanas. [...] Veio também uma lacónica carta da Deolinda, pedindo artigos nossos que tem possibilidade de publicar lá. Já teve contacto pessoal com gente da Associação Cultural. Deixei para o fim a questão da entrevista com o Sec. Geral. Sem dúvida nenhuma podemos ter a certeza de que continuamos a marchar em frente. O que nos é concedido já é muito positivo, embora também não represente uma manifestação muito «concreta» de solidariedade. Temos que nos habituar a não esperar muito e até mesmo a não esperar nos nossos amigos africanos. Já em Túnis tínhamos a impressão que eles procuravam antes de mais atender aos seus problemas, querendo dar o ar de que nos estavam a auxiliar. Mas sem dúvida há muito de positivo, se o que ficou resolvido for levado à prática... O problema económico subsiste, uma vez que eles não nos garantem trabalho ao menos, nem mostram vontade de ajudar as deslocações. [...] Sempre confiei no “asilo político” e pensava que tal asilo dava direito a trabalho. Até aqui tenho agido sempre tendo sobretudo em conta as necessidades da n/ luta e pondo bastante de lado os problemas familiares. Em face de uma série sucessiva de échecs, creio ser altura de pensar muito a sério na m/ família que tenho sacrificado aos n/ interesses sempre no intuito de encontrar soluções necessárias ao desenvolvimento da luta. Não sei, tenho de me informar, quanto tempo os amigos daqui estarão dispostos a albergar-nos. Tenho além disso de reflectir em conjunto com a Ruth algumas hipóteses que me têm surgido ao espírito, nomeadamente um possível retorno à Europa… Tudo isso necessita de madura reflexão. Basta de decisões a contar com isto e com aquilo. Ignoro também em que medida é que essa gente nos aceitará (falo do conjunto familiar) como refugiados políticos. Será possível informar-te disso, V.? Creio aliás que tal te será difícil, dada a pouca deferência e o pouco tempo que te dedicaram (que nos dedicaram). Se tivesses porém a oportunidade de pôr o problema de novo ao IT, que em Túnis afirmou não ser de difícil solução, seria bom. Sempre serão mais uns dados com que eu posso jogar nas m/ “reflexões”. Em resumo, creio que é de auscultarmos as possibilidades de “asilo político”, por um lado; creio que por outro lado, devemos encarar a hipótese imediata de um novo e substancial empréstimo e agir em consequência. Escusado será dizer-vos que eu estou pessoalmente disposto a qualquer sacrifício. Reservo porém a m/ questão familiar para uma decisão de acordo com o v/ parecer e com novos elementos que apareçam. No penúltimo Monde veio uma notícia sobre uma conf. de presse que dois tipos do American Comittee on Africa (Frank Montero e William Scheinman) deram em N. York em 9/3, dizendo que tinham chegado de uma visita a Angola onde havia um levantamento nacionalista no norte e no sul, perto do Sudoeste Africano. Falavam de operações armadas e diziam ter estado em contacto com grupos nacionalistas angolanos. No último Monde dizia-se que toda a imprensa portuguesa e um comunicado oficial do G.P. [Governo Português] desmentiam indignados tais boatos... Não há fumo sem fogo e é possível que algo tenha havido. É apenas chato que essa gente do ACA esteja a meter tão descaradamente o nariz em Angola. Precisamos de nos pôr o mais possível a resguardo de uma eventual «direcção» americana na luta de libertação de Angola. Infelizmente creio ter motivos suficientes pª adiantar que há uma deliberada tentativa de dirigir as «operações» em Angola, da parte desses senhores. Que foram lá fazer esses senhores? Pelo telegrama do jornal dá a impressão que eles, disfarçados de turistas, foram lá procurar contactos. Creio que o n/ «amigo» G. [Holden Roberto] não será alheio a tais manobras, não creio, tenho a certeza. Espero que tenhas oportunidade, V. de lhe pôr o problema de que falei na última carta, acerca da Jornada de Solidariedade. Ainda a propósito da «penetração» americana, um dos últimos jornais traz também uma declaração convite do Abbé Youlou a capitalistas americanos para investirem no Congo... Sobre a n/ questão do Gh. continuo a manter a mais profunda reserva. Pode ser porém que ainda venha a ser uma hipótese, mas é claro que agora não nos podemos dar ao luxo de esperar seis meses... Hoje não se me oferece dizer-vos mais nada. Saudades da R. [Ruth Lara]. Cumprimentos ao HM. Abraça-vos o ass.) Lara

Carta de Lúcio Lara (Casablanca) a «Caros Amigos» [Amílcar Cabral e Viriato da Cruz]

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