Carta de Lúcio Lara a «Caros Amigos»

Cota
0011.000.056
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel comum
Remetente
Lúcio Lara
Destinatário
Amílcar Cabral e Viriato da Cruz
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
4
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

Excerto da carta a Amílcar Cabral e Viriato da Cruz [dactilografada] Casa[blanca], 7 de Fevereiro 1960 [Emendado à mão por L. Lara: Março] Caros amigos De posse das vossas cartas. As do V. [Viriato da Cruz] têm chegado c/ uma irregularidade espantosa. [...] Receio pois que esta já não chegue a tempo da Conf. de Dakar e que os apontamentos que aqui junto sobre o Seguro Social já não venham a ser necessários, mas mais não podia fazer. Ciente das vossas actividades, que espero continuem frutíferas. Sobre o Manifesto creio que temos feito o n/ melhor e se ainda se não publicou, isso deve-se às dificuldades de toda a ordem com que temos sempre lutado. Já tenho em meu poder a tradução francesa da CARTA feita pelos amigos da Bélgica. O Mc. [Marcelino dos Santos] põe certas objecções de carácter técnico e político, que aqui junto em cópia separada. Quanto às de carácter técnico espero a vossa opinião. Quanto às de carácter político tenciono responder-lhe informando-o mais completamente das razões que nos levaram a proceder sem o consultar, que são afinal razões de carácter técnico. Da n/ gente de Lx. nada sei. É possível que também tenham quaisquer objecções a levantar, mas isso deve ser dirigido ao Abel [Amílcar Cabral] que deve ter estabelecido novas vias de contacto. Aliás a via que eu tinha pª a «direcção» não respondeu à última carta que lhe escrevi ainda da Alemanha, pelo que não sei se ainda é válida. Como ficou combinado enviei uma série de documentação pª as três principais cidades lusas. Claro que o fiz através da Alem. e da Bél. pelo que só há muito pouco tempo deve ter começado a ser recebida, não dando ainda tempo a que transpire nenhuma opinião. Enviei também a jornais portugueses e ao Cônsul em Túnis, dentro do que tínhamos combinado. Pª Ang. já foi qualquer coisa, e vou mandar pª os novos endereços recebidos. Mandarei também pª o Gov. da Guiné. O jornal da UMT [Union Marrocaine du Travail], l'Avant Garde, publicou o extracto do n/ rapport que tenho enviado directamente daqui a amigos portugueses que sei que farão chegar aos nossos amigos. O mesmo extracto está publicado em árabe e vou pedir alguns exemplares para caso de necessidade. Eles não dizem que é o extracto, mas eu escrevo sempre por cima. Hoje começou o julgamento da nossa malta (em princípio, pelo menos). Ignoro como decorre a questão da Comissão Internacional de Juristas. O M. [Mário de Andrade] diz que recebeu parte dos autos de acusação. Espero que nos envie. Óptimo que tenhas feito, Abel, uma conf. de imprensa. Sempre é algo mais de positivo que fica feito. Aqui há tempos amigos daqui sugeriram essa hipótese, mas eu não avancei muito sobre a questão pois gostava de ter a vossa opinião e sobretudo preferia fazê-lo sem estar só. Além de que a coisa aqui seria algo dispendiosa. Não é porém de pôr totalmente de lado essa hipótese. Ainda quanto ao julgamento, parece-me que nós devemos tomar face às autoridades portuguesas uma posição, en tant que FRAIN. Não discordo da carta aberta de que o V. fala, mas além disso seria nosso dever tomar uma posição clara e firme face aos ocupantes. Não creio que isso prejudicasse mais ainda os nossos camaradas, pois parece que não esconderam nada à polícia das suas actividades pessoais. Não li os tais artigos da Suzanne Luzignan no Monde, pois estava em viagem quando esses Mondes saíram. Já os pedi porém pª Paris. O Má. na sua última carta pede que se insista na sua questão de direito de asilo. Sei que isso está a ser feito. Recebi carta dos amigos da Alemanha Oriental.1 Têm-se portado optimamente e são bastante considerados por colegas e professores. Foram eleitos respectivamente Secretário e Subsecretário do seu grupo. Receberam os documentos de Túnis e estão contentes por verem as coisas a marchar. Um deles fez uma palestra no dia 28 de Fev. (convencido que o nosso projecto de resol. tinha sido aprovado) sobre os nossos problemas e ambos estão escrevendo artigos. Pedem que não os deixemos isolados. Concordam com as bases da FRAIN. Dizem que a gente do Congo que lá está não deixa de pensar que Angola também é deles. Enfim, os moços estão satisfeitos e aguardam que se forme depressa a n/ Assoc. de Estudantes, para permitir que vá pª lá mais gente nossa. A propósito, Abel, comunicaste algo sobre isto pª Lx.? Sei que os amigos da Bélg. estão novamente debruçados sobre a questão. Sobre a questão de Gh. [Ghana], não sei que pensar dessa gente. Nem sei quais foram os passos que deste de «viva voce» quando lá passaste. Recebi há dias a carta cuja cópia junto, que pretende ser uma resposta a uma carta muito concreta que lhes escrevemos em Agosto. Essa carta, do Min. do Interior, não deve ser do conhecimento do Barden & Ca. Essa carta merece uma resposta, mas como quem está agora em contacto com o Gh. é o V., endosso-lhe essa tarefa. É muito chato termos que ser diplomáticos porque de contrário era de lhes dizer algo de muito duro. Eles ignoram completamente tudo quanto lhes dissemos e contentam-se 6 meses após em dizerem que «there will be no objection»... Creio que de qualquer maneira é de dar conhecimento a Barden & Ca. em futuras démarches dessa carta, aqui recebida em 4/3. [...] De acordo com o V. de que é preciso mais gente a trabalhar cá fora, mas não no estilo em que temos trabalhado até aqui. Consolidemos a nossa posição no exterior de um ou de outro modo. Preparemos as tarefas que caberão a cada elemento que venha cá para fora e então acho que vale a pena fazer sair o maior número possível. Muita gente cá fora nas nossas condições não poderá a meu ver realizar trabalho revolucionário, dado que não temos sequer dinheiro para comer e que as perspectivas de uma solidariedade activa continuam a ser muito remotas e realmente condicionadas a factores de toda a ordem. Nós não estamos entre a nossa gente onde seria possível encontrar sempre um poiso. Até agora o único problema que se resolveu quanto a uma «instalação» foi o dos dois estudantes, e esse mesmo in extremis. Isto é evidentemente o esboço da minha opinião sobre o assunto. Parece-me que em face da situação actual, o problema mais agudo e que requer solução urgente é o do contacto efectivo com os nossos povos, o qual até aqui tem deixado muito a desejar, pelo menos no que respeita a Angola. Sou por isso de opinião que, além das démarches pª a projectada instalação de um Bureau, devemos aprofundar as possibilidades de novos meios de contacto com o interior dos n/ países. Creio que o Miguéis será uma boa chave, mas não deve ser a única. Que cada um de nós tente descobrir novos endereços de gente nossa no Congo b. e fr. [belga e francês]. A questão de haver gente em Ponta Negra não é novidade. Já tínhamos falado disso várias vezes e essa gente estava em contacto com Ang. sendo de esperar que ainda esteja. É realmente por ela que devemos tentar começar um outro tipo de luta diferente do que temos tido até aqui. Angola atravessa uma crise económica gravíssima. As notícias mais recentes não escondem o desânimo e o descontentamento que lavram nos meios coloniais. Devíamos explorar esse facto. Não digo que concentremos os nossos esforços em Angola. Essa questão merece de facto ser bem estudada e de preferência numa reunião ampla. Mas não devemos perder a ocasião de atacar. Claro que a crise não acaba amanhã, devendo até agravar-se. Quando falo em atacar não me refiro evidentemente a arranjarmos à pressa um exército... Penso que o ataque deve começar por pretender mostrar à nossa gente que as prisões não representaram de modo algum um afrouxar da luta. Quando digo nossa gente refiro-me ao povo e não aos que continuam na primeira linha. É que pelas notícias que tenho o povo está desalentado e incrédulo quanto à possibilidade de nos libertarmos. A nossa acção no plano internacional será sem dúvida um incentivo, mas creio que será um contacto nosso com os nossos povos que melhor poderá incentivar a predisposição para a luta. Pª efectivarmos o nosso ataque temos que começar por fazer um balanço das nossas possibilidades. À primeira vista esse balanço parece revelar-se um «saldo» negativo, sobretudo no que se refere a um apoio (entenda-se ligação) das massas. Esta é afinal a questão crucial. Todas as dificuldades que temos sentido derivam desse facto. Não me parece, repito, que seja possível continuarmos a trabalhar sem a preocupação de estarmos efectivamente ligados aos nossos povos, ligados de maneira a estarmos a par do seu dia-a-dia. Eis a questão que necessita de reflexão aturada. É de notar que ainda não nos debruçámos em conjunto e calmamente sobre os nossos problemas de futuro. Demos seguimento às coisas mais urgentes, mas não ESTUDÁMOS a maneira de prosseguirmos a luta. Estamos à espera que tenhamos um Bureau pª o fazermos, mas temos que admitir a hipótese que não o teremos tão breve quanto desejamos. A nossa situação provisória corre o perigo de se tornar definitivamente provisória e os anos vão passando... É certo que já podemos apresentar um somatório positivo do trabalho de cada um. Mas tem sido um trabalho que não tem encarado as nossas próprias perspectivas e tem vivido da esperança de encontrarmos apoio neste ou naquele sítio. Corremos o risco de nos dispersarmos e de nos afastarmos das tarefas mais urgentes. Há problemas graves de que temos que tomar consciência. Eu já não volto a pôr a hipótese de enviar alguém lá abaixo pª estabelecer uma nova rede de contactos, pois não temos dinheiro para o fazer, mas insisto que procuremos antes de mais nada e por todos os meios estabelecer essa rede. Proponho que qualquer de vocês, que conhece líderes do Congo, lhes escreva pedindo endereços de gente nossa de confiança. Eu tentarei fazer o mesmo. Exponhamos a situação a essa gente e procuremos obter o seu apoio e o de todos os compatriotas. Preparemo-nos para ir ao Congo logo que possível e estruturemos cá fora as bases seguras de penetração, ou de recepção. Comecemos a jogar em função da nossa gente, isto é do apoio que nos pode dar a nossa gente. Um ano de experiências com estrangeiros levam-me a meditar se não seria e será mais indicado procurar antes de mais nada contactar o nosso povo. É difícil explicar isto tudo por carta sobretudo porque tenho de comer muitas coisas que queria dizer. Em suma, pª não ir muito longe, proponho que comecemos a pensar em soluções pª os diferentes aspectos que poderemos ser obrigados a encarar face a esta ou àquela resolução dos amigos a que pedimos apoio. Na hipótese de ser possível ainda te encontrares em Londres na Páscoa, A., não seria de sugerir a um dos amigos de Lx. que viesse à Europa fazer umas férias? Poder-se-iam assim esclarecer determinados problemas que é possível que não estejam esclarecidos. Não sei a data da Conf. Afro-Asiát. Creio porém estar marcada pª Abril. Creio que a nossa representação estará assegurada pela presença em Conakry do V. e do HM [Hugo de Menezes]. Seria contudo de começar a ver o que é que há a fazer. A documentação pª essa Conf. era em princípio pª ser a tal brochura que o Comité Afr.-As. se propunha editar. [...] Em 28 de Março realiza-se a reunião do Comité Director da CPA [Conferência Panafricana] e ao que me parece temos de contactar o Gilmore [Holden Roberto] sobre a concretização das Resoluções tomadas quanto aos nossos problemas, nomeadamente a marcação de um dia para a comemoração da Jornada de Solidariedade, que a meu ver devia ser em fins de Abril, talvez 30/4. Realiza-se no Cairo em 30/4 a primeira Conf. Afro-As. da mulher. Não sei se alguma das nossas amigas poderá estar presente. O Comité preparatório fala apenas em convidar os delegados que assegurem as despesas de ida e volta... Será de contactar a Alda [Alda Espírito Santo]? Creio que a Deol. [Deolinda Rodrigues] não poderá de modo algum deslocar-se. Será bom em todo o caso que ao menos estejamos presentes com uma mensagem que as nossas moças poderiam redigir. Talvez até por isso fosse bom que o dia de solidariedade pª c/ os nossos povos calhasse nessa altura, pois ali era comemorado com certeza. Aguardo v/ opinião sobre este assunto. Qual a posição do HM face ao grupo daí? Sobre a criação de uma Assoc. de Estud. chegaste a dizer algo pª Lx., Abel? E se fomentássemos a criação de uma União dos Trabalhadores Africanos nos nossos países? Mesmo ilegal, creio que ela seria reconhecida internacionalmente, como o é a da Argélia. Pelo menos sê-lo-ia pela futura Sindical Panafricana. Tenho tentado aproveitar o tempo o melhor possível. Além dos contactos que estabeleci aqui na sede da Bourse com várias Federações de sindicatos, aproveitei um convite pª ir ao interior do País onde contactei 3 uniões locais, tendo com todas elas discutido não só os n/ problemas (como de costume bastante ignorados, mesmo no aspecto geográfico), mas também os problemas locais ante e post independência que são igualmente absorventes. A falta de quadros é aqui um dos mais graves handicaps. Nos fosfatos por exemplo, os quadros são ainda na quase totalidade franceses. Outra questão que deve começar a merecer a n/ atenção. Tive também oportunidade de contactar aqui um jornalista do Iraque com quem tive uma larga conversa que ele publicará num dos jornais de Bagdad. De resto tomo notas diversas e escrevo. Quanto à catástrofe de Agadir exprimi em nome da FRAIN as condolências à UMT extensivas ao povo marroquino. Não tenho cá nada de interesse que te possa enviar, V., pª a Conf. de Dakar. Dum livro que tinha pedido emprestado na Bourse sobre «Les problemes du Travail en Afrique» extraí esses apontamentos sobre «Sécurité Sociale» que te envio. Sempre é alguma coisa, embora na maior parte dos casos se não refira às col. port. e quando isso acontece, raramente se refere aos Africanos. Sempre é uma base de trabalho. Se puderes consultar aí, aconselho-te que o faças. Vou ver aliás se consigo adquiri-lo, se for a Rabat, pois aqui não há. Bem, amigos, chega por hoje. Aguardo as vossas notícias. Cumprimentos da Ruth. Um bom abraço do v/ ass.) Lara CÓPIA pª A. e V. [...]

Carta de Lúcio Lara (Casablanca) a «Caros Amigos» [Amílcar Cabral e Viriato da Cruz]. (É de Março e não de Fevereiro).

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