Carta de Viriato da Cruz a «Caros Amigos»

Cota
0011.000.037
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Viriato da Cruz
Destinatário
Lúcio Lara e Amílcar Cabral
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
3
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

Carta de Viriato da Cruz
[dactilografada]

Conakry, 28/2/960
Caros Amigos,1

1 – Remeti ontem a Accra, sob registo postal, as notas que me haviam pedido lá antes do meu embarque. [À margem: Voltamos ao princípio...] Esclareci, concisa e claramente, mas com as conveniências necessárias, os seguintes pontos escolhidos por mim: Natureza da F [FRAIN]; Objectivo da F; Composição política da F; Composição étnica da F; Direcção da F; Sedes da F; Formas de luta; Alianças e forças de apoio da F; e Acção no exterior.
2 – Os amigos daqui ainda não se dignaram convocar-me para uma conversa larga e aprofundada, conforme me haviam prometido. [À margem: Estamos na mesma...] Talvez que a causa desse atraso esteja no facto de que os «sobas» estão, desde há dias, em reunião longe daqui. Parece que voltarão amanhã. Em todo o caso, o problema da necessidade da vinda imediata para aqui do Abel [Amílcar Cabral], L. [Lúcio Lara], Mário [M. de Andrade] e Marcelo [Marcelino dos Santos] já foi exposto, a viva voz e por escrito, pelo H.M. [Hugo de Menezes], quando estive ausente da capital. Foi exposto ao «cimo».
3 – Continuo banzo diante da retenção, de mais de três meses, do Manifesto2 nas pastas de trabalho de meia dúzia de pessoas (incluindo eu, evidentemente). Julgo ser imperiosa a publicação urgente dele. Ou fora ou dentro. Tenho a impressão de que o rascunho do manifesto já está a ter o aspecto de «livro de família», para registo privado de acontecimentos.
4 – O aspecto político que seguramente a África terá dentro, não digo de um ano, mas de poucos meses (independência do Mali, da Nigéria, do Togo, do Congo, etc.), bem assim como a abertura lenta, mas progressiva, que o problema das colónias portuguesas está a ter no plano internacional – tudo isso está a exigir um pouco mais do que se tem feito e até mesmo talvez mais do que se pensa fazer no imediato.
Precisamos ainda de mais gente a trabalhar. [À margem: em quê? aonde?] Precisamos igualmente de usar os nossos nomes verdadeiros durante o combate. O prestígio dos nomes pode talvez ajudar a acelerar a mobilização das gentes. Caso Abel.
5 – Penso que devemos tomar a decisão de concentrar principalmente sobre uma das colónias o fogo da nossa acção. Creio que o sistema colonial port. não cairá todo ao mesmo tempo, mas por partes. Se assim for, talvez seja conveniente que concentremos, no presente, o fogo da nossa luta sobre Angola (porque aqui a crise está mais madura) e sobre a Guiné [À margem: De acordo, é o que temos feito] (porque, nesta colónia, uma série de condições objectivas, mas ainda não exploradas, podem permitir a instalação nela, em breve espaço de tempo, de uma crise política). Mas o caso da Guiné (port.) não está, neste momento, no mesmo plano em que está o caso de Angola. Por isto, o interesse da nossa luta pelos problemas actuais de Angola tem de ser um pouco maior e vivo do que o interesse que devemos pôr nos problemas actuais da Guiné. [À margem: Análise que depende de factores que não conhecemos] Julgo que há uma vantagem para todos os africanos sob dominação lusa que a crise de Angola se aprofunde rapidamente e continuamente até ao seu éclatement. Não devemos deixar perder a ocasião favorável que o problema de Angola nos oferece neste momento.
6 – Logo que haja condições favoráveis, acho que o Abel deve vir para aqui. O tal grupo daqui está muito atrasado. Está-se a fazer nele uma política não só pouco madura no aspecto doutrinário e de métodos de luta, mas ainda sanzaleira, mesquinha. [À margem: Mas afinal o que faremos du Bureau?] Há, neste momento, divisões internas inquietantes. No entanto, o grupo daqui tem já condições de trabalho (oferecidas) como os interesses de Angola estão longe de possuir no plano externo. À Guiné (Port.) está a faltar uma direcção esclarecida, enérgica e prestigiada que utilize bem as grandes vantagens que lhe são já oferecidas, efectivamente, neste momento.
7 – Acredito absolutamente que os responsáveis daqui acabarão (não sei quando) por admitir que todos os nossos correligionários venham para aqui. Mas estou também convencido de que a burocracia e as fraquezas de um país com fracos recursos como este não darão uma satisfação rápida e imediata aos nossos pedidos. Estou a ser apenas realista. [À margem: Que fazer então? Será de armarmos em saltimbancos ou organizar melhor o problema?] É certo, por outro lado, que, até aqui, todos os que têm feito militância fazem-na por iniciativa própria e com a consciência de que cada um está disposto a suportar quase sozinho as más consequências dessa militância. Tudo me leva a crer que esta espécie de «pioneirismo arriscado e por conta própria» ainda se prolongará por mais alguns meses. Ora, dentro dessa tradição [À margem: tradição], acho que, se o Abel ou qualquer outro estiverem muito ansiosos por vir aqui, eles poderão cometer a audácia de aparecer aqui sem qualquer oferta garantida dos responsáveis do país. Será uma espécie de política por «facto consumado». Mas esta política, se pode ser um processo eficaz de fazer andar as coisas à força, [À margem: Fará andar?] aviso já que ela não reserva comodidades para ninguém. Esta é a situação real que acho conveniente não esconder mas sim revelá-la.
8 – Tive novos contactos com responsáveis do Congo [Léopoldville], e com o presidente do partido que havia conhecido em Berlim. Como sempre, vou insistindo com eles na necessidade de nos darem uma ajuda concreta e à la place, logo que eles sejam senhores do seu país. As respostas têm sido positivas. Aguardemos portanto os factos.
9 – O Gilmor [Holden Roberto] ainda não apareceu aqui. Nem sei se aparece antes da conferência afro-asiática. [À margem: Quando]
10 – Se puderem, enviem-me (falo ao L.) umas 50 folhas (a quantidade é suficiente) do papel timbrado em Túnis.
11 – Já escrevi mais duas cartas ao Miguéis, a última das quais em resposta à carta dele que o L. me reenviou. Amigos congoleses informaram-me da existência de angolanos que se esforçam por trabalhar positivamente na Ponta Negra. Insistirei amanhã com o Miguéis para me informar ao certo o que há nessa cidade.
12 – No dia 8 de Março próximo realiza-se em quase todo o mundo a já tradicional jornada internacional das mulheres. [À margem: ?] Acho que cada um de nós poderá tentar, junto das organizações das mulheres dos países em que nos encontramos, que elas (as organizações) enviem telegramas ao Tribunal de Luanda. Neste aspecto, já me informaram de que aqui ainda não há uma organização das mulheres.
Pensei há muito em publicar uma carta aberta ao Tribunal de Luanda. Mas ainda não escrevi nada, porque tenho receio de que essa minha atitude venha a ser considerada como pessoalista.
13 – Sou de parecer que devemos (nomeadamente o Mário e o Abel) pedir à Associação de Juristas que tome, para nosso governo, e até o dia 2 ou 3 de Março, uma decisão clara afirmando se ela enviará de certeza ou se ela não enviará o tal observador jurídico. [À margem: ?]
14 – Que faz o Abel em Londres? Como marcham as coisas na Lusitânia? O L. tem mantido ainda os seus contactos com os n/ amigos de Lxa.? Qual foi a reacção dos nossos amigos de Lxa em face do material que apresentámos em Túnis? Que sugerem eles? Que dizem eles de um modo geral? [À margem: As coisas ainda lá não chegaram] – Exceptuando o esforço que venho fazendo junto do Miguéis para abrir uma porta lá em baixo, estou mais do que nunca isolado das nossas realidades presentes. Agradeço, portanto, que me dêem as informações que julgarem necessárias e convenientes.
15 – De tudo quanto tenho visto e ouvido na África negra que já conheço, posso fazer o seguinte resumo:
a) A nossa luta é justa; tanto quanto foi e é a luta dos restantes povos do continente.
b) A vitória da nossa luta não pode deixar de exigir que, pelo menos por enquanto, contemos quase totalmente com os nossos próprios esforços, com os nossos próprios sacrifícios e com o nosso próprio interesse. [À margem: Como e onde os aplicar] Mas – dentro do método do «pioneirismo arriscado e por conta própria» – é urgente e indispensável que mais amigos façam militância e se sacrifiquem pelos nossos interesses. Refiro-me à militância que faz da actividade revolucionária quase uma profissão. Não a militância nas horas vagas; mas a militância nas horas que normalmente são dedicadas pelos homens ao trabalho para ganhar para o ménage e para a família. Duro. Inumano talvez, – mas não vejo outra maneira de sairmos da presente etapa.
c) A nossa luta tem cada vez mais condições interiores (nos n/ países) e exteriores para obter êxito. Já não sou eu apenas que digo isso: os próprios colonialistas port. estão cada vez mais convencidos do aprofundamento das desvantagens das suas posições.
d) A solidariedade africana está ainda muito longe de responder concretamente às necessidades da luta anti-colonial no continente. Essa solidariedade, se tem produzido alguns frutos, tem sido através de uma espécie de choque psicológico sobre as forças colonialistas e imperialistas. Com franqueza: da Europa teme-se e respeita-se muito mais a solidariedade africana do que ela nos impressiona aqui. O facto realmente mais digno de respeito e de atenção na evolução do continente é a rapidez inesperada como o colonialismo está a recuar no continente. O resto é fraco: o colonialismo deixou, na verdade, nos africanos, sérios estigmas de divisões, de egoísmo, de desconfianças, e – o que é mais importante! – uma concepção empírica e petulante da maneira de fazer progredir os novos Estados e as grandes massas populares. Essa concepção, que se diz «especificamente africana» à maneira de présence africaine, está pouco interessada em assimilar e adaptar rapidamente aos novos países os processos novos que permitem o fortalecimento e o progresso vertiginoso de alguns outros Estados, em outros continentes. Ainda não vi, na África que já conheço, algo que me faça prever, para breve, uma avalanche de progresso comparável, guardadas as devidas proporções, ao que vi na China, por exemplo.
Eis o que tenho a dizer-vos, neste momento, sem a preocupação de criar artificialmente, em vós, entusiasmos cegos ou desânimos suicidas. Tal me parece ser a realidade. Ajamos em consequência dela e em atenção a ela.
Cumprimentos. O meu melhor abraço.
ass.) V.

Cópias para Abel e L.

Carta de Viriato da Cruz (Conakry) a «Caros Amigos» [Lúcio Lara e Amílcar Cabral]

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