Memorando de Abel e Mário de Andrade

Cota
0009.000.041
Tipologia
Memorando
Impressão
Manuscrito
Suporte
Papel comum
Autor
Abel [Amílcar Cabral] e Mário Pinto de Andrade
Data
1960
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
4
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

d418
Memorando de Amílcar Cabral e Mário de Andrade
[manuscrito por Amílcar Cabral]

[É de 23 ou 24 de Janeiro de 1960]
Caros Amigos

Em nome do Executivo, que me outorgou plenos poderes para tratar convosco todos os problemas que neste momento nos preocupam – e depois de prévia discussão com o n/ camarada Ma. [Mário de Andrade] apresento-vos o seguinte Memorandum:
1. Conferência de Túnis. Salientamos, entre tudo o que por certo não deixarão de ter em conta, que importa fazer o seguinte:
a) Agir numa frente única representativa dos nossos povos, e não permitir sob nenhum pretexto, que qualquer compatriota (referimo-nos especialmente ao que veio da R. da Guiné) tome qualquer posição separada da vossa ou em contradição com o nosso movimento.
b) Informar a Conferência da existência real do colonialismo nas nossas terras, do seu carácter e da sua atitude negativa perante a libertação dos nossos povos e perante as responsabilidades que lhe são exigidas pela Carta das Nações Unidas.
c) Mostrar que a nossa luta, a luta contra o colonialismo português, é hoje o problema mais importante para a liquidação do colonialismo em África. Que o panafricanismo e a solidariedade africana não têm sentido, se não se engajarem decidida e positivamente nessa luta.
d) Mostrar que a nossa luta tem de ser e está a ser realizada em dois campos: internamente e externamente. Que, dadas as excepcionais condições de opressão e de repressão em que vivemos, os países africanos – todos os povos africanos – têm de nos ajudar nos dois aspectos da nossa luta, mas principalmente no exterior.
e) Saber concretamente aquilo com que podemos contar desde já, no que se refere a tal auxílio, que tem de ser material e moral.
f) Saber concretamente quais os países africanos, independentes ou em vias de independência completa, que estão dispostos a ajudar-nos.
g) Mostrar que entre os aspectos mais urgentes do auxílio de que necessitamos, constam-se os seguintes: a realização imediata de condições materiais para a fixação de alguns dos nossos «leaders» nesses países, com o fim de organizarem e coordenarem a nossa luta na segurança; a realização imediata de condições materiais para a formação dos nossos quadros (políticos e militares), pois não temos possibilidades legais de fazê-lo nas nossas terras: os países que estão dispostos a ajudar-nos, devem receber e preparar os nossos quadros e devem ajudar-nos a conseguir bolsas de estudo para os nossos compatriotas nos países estrangeiros amigos.
h) Conseguir desde já a integração de um representante nosso no Secretariado Permanente Pan-Africano, saído da Conferência de Accra.
2. Presença na República da Guiné. O camarada que está na Guiné [Hugo de Menezes] (encontra-se aí convosco) não tem qualquer experiência política e, por isso, não tem conseguido vencer as dificuldades que enfrenta no seu trabalho. Esteve sem apoio de fora e, segundo as informações que dá, as coisas vão mal. Por isso tudo e porque a atitude dele não é suficientemente clara para estarmos tranquilos, devem fazer o seguinte:
a) Não deixá-lo isolado, enquadrá-lo e obrigá-lo a seguir as vossas resoluções no que se refere a atitudes a adoptar na Conferência e depois dela.
b) Saber dele tudo o que se passa na Guiné e fazer uma ideia o mais concreta possível da realidade.
c) Enquadrar os documentos de que é portador no âmbito dos documentos da nossa frente única na Conferência e exigir que ele faça vir da Guiné um documento importante dos trabalhadores de Angola e que ele deixou ficar.
d) Entrar em contacto estreito com Diallo Seidou, Secretário Geral da U.G.T.A.N., que esteve em Angola e daí trouxe documentos e informações de grande valor e que está muito interessado na nossa luta em Angola. Mostrar-lhe que o referido camarada é um elemento novo no Movimento que não foi por este mandado à R. Guiné, mas que temos de aproveitar o melhor possível. Propor-lhe a ida imediata de vocês dois ou de pelo menos um de vocês à Guiné.
e) Os dois – V. [Viriato da Cruz] e L. [Lúcio Lara] – devem ir imediatamente (depois da Conf.) para a R. Guiné, onde procurarão coordenar a nossa gente, acabar com as confusões e apoiar a organização de nativos da Guiné «P», que não deve ser confundida com o nosso Movimento. Se não puderem ir os dois deve ir um, pois isto é vital para nós. Há grandes responsabilidades na Rep. Guiné e o camarada que lá está não se encontra ao nível dessas responsabilidades.
f) No caso de irem os dois, um deve seguir imediatamente para Ghana, onde também há responsabilidades vitais a enfrentar neste momento. O compatriota que lá se encontrava1 – estará ainda nos E.U.? – está queimado por causa do seu comportamento, tem de ser substituído por gente capaz. Por isso, o que for para Ghana tem de entrar em contacto, custe o que custar, com os compatriotas do Congo (da U.P.A.). [Acrescentado na margem: Se o camarada está aí, devem enquadrá-lo, controlá-lo e pôr-lhe claramente o problema da sua substituição, embora continue em Ghana a trabalhar na nossa causa.]
g) Em suma: fazer tudo para impedir que, no regresso à Guiné, o camarada H. [Hugo de Menezes] volte só. Aproveitar da melhor maneira aquilo que, mesmo com erros, ele conseguiu fazer, não sobrestimar as dificuldades que ele aponta e acabar de vez com questões de carácter pessoal.
3. Caso dos camaradas Ma. [Mário de Andrade] e Marc. [Marcelino dos Santos] Devem ir para África o mais breve possível. Tem havido grande confusão nestes casos, mais por negligência do que por dificuldades reais. Ma. confirma que está pronto a sair brevemente. No entanto, porque tem a saúde abalada e alguns compromissos, do nosso interesse a cumprir, não pode sair imediatamente. Quanto à saúde, vamos ver do que se trata e como poderá tratar-se com urgência. Quanto aos compromissos, conta satisfazê-los num mês. Vamos ajudá-lo o mais que pudermos, para sair brevemente, tanto mais que está em ordem de captura.
Marc. teve de sair daqui, como sabem, e está na Bélg. Vamos escrever-lhe a propor que saia em Fevereiro. Se não quiser sair, deixaremos de contar com ele para os problemas que temos de resolver já. Não há razões para continuar na Europa. Há que envidar todos os esforços para a saída destes camaradas. Por isso, devem:
a) Manter permanente contacto com eles, estejam vocês onde estiverem.
b) Contactar aí, na Conf., Ismael Touré, que se mostrou aqui interessado na ida de Ma. para a Guiné e a quem este vai enviar amanhã um Memorando.
c) Tanto aí como na Guiné e no Ghana, tratar da entrada dos nossos camaradas e obter respostas concretas.
d) Ver se alguns países dão passagens para eles (ou alguma organização) e ver concretamente o que o camarada H. pode ajudar materialmente, porque disse que está pronto a ajudar.
e) Contar com a possibilidade, da nossa parte, de arranjar uma parte ou todo o dinheiro necessário para essas saídas, no caso de não se encontrar outra solução.
f) Contar que esses camaradas estarão em África até o mês de Março, o mais tardar.
g) Saber que possibilidades haveria de o Ma. se tratar em África (está com falta de glóbulos vermelhos) no caso de não haver meios para se tratar na Europa, antes de sair.
4. Caso do camarada Abel [Amílcar Cabral]. Desgraçadamente, a carta que vos foi enviada «express» ainda não havia chegado às v/ mãos no sábado. Nessa carta ele explicava as razões da sua não ida imediata para aí, principalmente porque o Comité Executivo não determinou que ele saísse da Europa nesta viagem. O problema fundamental é a segurança, porque tem de voltar a casa2. Tem de voltar, por causa da organização interna, do futuro do movimento, das necessidades materiais do movimento, pois é o único que está em condições de ajudar os outros. [Acrescentado na margem: Abel não pode ir aí, porque tem que voltar a casa e só há um avião na quinta o que dificulta sua segurança. Retenham perspectivas até saída definitiva dele dentro de mês e meio.] Ainda porque tem tudo planeado para sair definitivamente dentro de pouco tempo, como sabem. Aguarda até terça-feira as v/ notícias e depois regressa a casa. Em relação a ele, devem:
a) Manter o contacto possível com ele, pelos meios que conseguirem realizar.
b) Evitar, na Guiné, que a sua identidade seja muito conhecida (só identificá-lo em casos de absoluta necessidade), mas preparar terreno para a sua actuação logo que saia.
c) Aproveitar o melhor possível o que ele fez na R. Guiné (Keita Mfamara, Secretário de Estado), em Ghana (African Affairs) e no Mali (Ministério da Informação).
d) Contar com a sua presença nos fins de Abril, o mais tardar no mês de Maio.
e) Fazer o maior barulho, nomeadamente junto dos Países Africanos Independentes e junto da ONU, no caso sempre possível de vir a acontecer-lhe algum percalço.
5. Manifesto.3 O camarada H., que chegou aí ontem, levou um exemplar do n/ Manifesto, o texto por vós feito e que alterámos em alguns aspectos. Quanto a este assunto, devem:
a) Dar, com a brevidade possível, a vossa opinião definitiva sobre o texto.
b) Enviá-la, com anotações, ao Ma. que, por sua vez, no-la enviará, no caso de ficar decidido que se tem de publicar em casa. Decidir, com o Ma., a forma de enviá-la a nós.
c) Dar a vossa opinião sobre este problema (local de publicação), sendo certo que o Executivo pensa que deve ser publicado em casa.
d) Dizer o que pensam sobre a repressão a que o Manifesto dará lugar, depois de publicado, e se acham que a data da publicação deve ser condicionada por questões de segurança de elementos responsáveis do Movimento.
e) Evitar uma publicidade prematura do Manifesto, embora isso não impeça que a sua existência seja conhecida pelos Países Africanos presentes na Conferência.
6. Julgamentos em Angola. Sabem a data provável e conhecem os nomes dos implicados e advogados. Outro advogado, muito conhecido e que costuma advogar «subversivos», defenderá os nossos compatriotas, por procuração passada por colegas. Virá aqui antes da ida a Angola. O camarada Ma. vai escrever artigos sobre o caso. Em casa, temos uma Comissão do julgamento que segue a evolução das coisas de perto, contacta com o referido advogado e recolhe fundos para ajudar nas despesas do julgamento. Em Angola não estão parados e há dias, quando começaram com as primeiras audiências (preliminares), o povo reagiu, alguns europeus foram atacados (pedras, garrafas com areia, etc.) e as audiências tiveram que ser suspensas. Notícias recebidas de presos deixam crer um espírito decidido de luta, pelo menos da maioria deles. Vamos fazer o primeiro julgamento público do colonialismo português. Aí na Conf. e depois dela, vocês devem:
a) Contar tudo que se passa com o julgamento e prisões e interessar os outros países no caso, nomeadamente Ghana e Rep. Guiné.
b) Fazer com que Ghana e Cuba enviem advogados para defender os réus Ganiense e Cubano.
c) Tratar deste assunto nos contactos com o camarada Ma, nomeadamente no que se refere à presença do delegado da Assoc. de Juristas Democráticos.
d) Como têm feito, dar a maior publicidade ao assunto, tanto na imprensa como na rádio dos países amigos em todos os continentes.
7. Ida do Secret. Geral da ONU a Casa. Temos de anular toda e qualquer perspectiva de exploração deste caso pelos nossos inimigos. Temos de mostrar ao Sr. H. [Dag Hammarskjoeld] que estamos a lutar e que não admitiremos quaisquer concessões ao nosso inimigo. Como sabem, não podemos agir à vontade em casa. Dificilmente mesmo podemos fazer alguma coisa, mas vamos tentar tudo o que for possível. Esperam, no entanto, que o vosso espírito de iniciativa e de vigilância tenha tomado uma atitude neste caso. O Executivo está seguro de que não deixaram ou não deixarão de contactar, pelos meios possíveis, o Sr. H. Se ainda não o contactaram, devem:
a) Fazer chegar às mãos dele um documento em que afirmam a nossa posição de consciência da nossa situação e da luta decidida para libertar os nossos povos.
b) Fazer isso, na falta de um contacto verbal, mesmo depois de ele ter ido falar com o nosso inimigo.
c) Contar com ajuda material para isso, para o que indicarão o necessário.
8. Organização. Até Junho temos de ter a organização no exterior em pleno funcionamento. Tem de ser, como resultado do trabalho feito até aqui e pelo que vai ser feito. No interior, apesar das crónicas dificuldades de comunicação que a organização no exterior resolverá de vez, sabem que a nossa gente não parou, que em Angola e na Guiné, nomeadamente, a vida continua, cada [vez] mais esperançosa. No dia seguinte àquele em que a Polícia comunicou que tinha feito abortar o Movimento em Angola, saiu um Panfleto a desmascarar as acções da Polícia e do colonialismo. Os delegados africanos à Conferência da O.I.T. em Angola vieram de lá cientes de que estamos a lutar, como podem saber de alguns deles que aí estão. Na Guiné proliferam as organizações de luta e o problema está em coordená-las e dar o melhor sentido à luta comum. Notícias, embora raras, de Moçambique, indicam que a nossa gente está a organizar-se, nomeadamente no Norte. A presença do camarada Marc. é necessária para tratar disso e procurar contacto, de África, com Moçambique. Em casa, a etapa é agora de alargamento, de multiplicação de células, depois da reestruturação feita. A nossa gente está, na grande maioria, esclarecida. Querem fazer sair mais gente de casa ainda este ano. Vamos colaborar, sem perder o sentido da vigilância, com o P. [Partido Comunista Português]. Impomos condições e, nesta base, é uma coisa boa. Não damos mais notícias, porque (vocês conhecem-nas) as condições não permitem e continua de pé o problema das comunicações que só resolveremos com a vossa presença efectiva em África.
Por hoje é tudo. De lamentar não termos podido estar juntos, mas cremos que este momento foi bem aproveitado. O que ficou dito como coisas que devem ser feitas por vós, por certo não será novidade, mas o Executivo tem de dizer isso mesmo. Os melhores parabéns pelo exemplar espírito de iniciativa, de sacrifício e de firme decisão de lutar até a nossa vitória final, de que têm dado provas. Avante na luta unida pela libertação das nossas Pátrias! Viva o MAC, instrumento activo dos nossos povos na luta pela sua libertação do domínio colonial! Viva a África unida e independente!
Pelo Comité Executivo do MAC
ass.) Abel Mário

[Escrito na margem: Dêem resposta detalhada por vias seguras (Liège, por exemplo).]

Memorando de Abel [Amílcar Cabral] e Mário de Andrade

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