Carta de Lúcio Lara a Deolinda Rodrigues

Cota
0009.000.010
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel comum
Remetente
Lúcio Lara
Destinatário
Deolinda Rodrigues
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
2
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

Carta a Deolinda Rodrigues [dactilografada] Túnis, 5 de Janeiro de 1960 Boa amiga Cá recebi no dia 30 de Dezembro a sua muito simpática carta1 que é mais uma prova de que nós, angolanos, possuímos a força imensa do nosso patriotismo a opor à vil escravidão a que têm sujeitado os nossos povos. Vejo que seja como for, a libertação do nosso país está próxima, pois aqueles que estão decididos a lutar poderão encontrar em breve a maneira de unir todo o povo, mesmo os indecisos, para exigir a retirada do ocupante. Agradeço-lhe as makutas. Pudéssemos nós contar com o apoio financeiro que é necessário, que a nossa luta estaria já muito mais avançada. Era bom que todo o povo compreendesse que uma luta pela independência exige inúmeros sacrifícios de todos, que a liberdade nunca nos será oferecida de mão beijada, que muitos de nós ficaremos pelo caminho. Enquanto não alcançarmos essa compreensão, não podemos ter a veleidade de nos atirar contra a «raposa portuguesa». Felizmente ela vai-se alcançando e estou certo que o desânimo aparente em certos sectores do nosso povo, receberão muito em breve um impulso positivo que os levará a uma atitude firme de oposição ao regime esclavagista que nos sujeita. Antes de prosseguir nos objectivos desta minha carta, deixe-me esclarecer dois pontos que a sua me fazem sugerir: 1) Entre nós, embora a idade seja (julgo) bastante diferente, e embora eu seja já um «papá» respeitável, não há nenhum motivo para existir um tratamento cerimonioso. Já não vou ao ponto de lhe pedir que me trate por «tu», pois prevejo que isso lhe possa fazer alguma confusão. Mas ponha por favor de parte o tratamento de «senhor». Nós somos camaradas de luta, facto que por si só justifica que não haja barreiras entre nós de espécie alguma. O tratamento por tu fica a seu cuidado... 2) Não posso aceitar a sua «apreciação» pelo «meu» impulso a favor dos nossos irmãos de ANGOLA e GUINÉ. O impulso não é «meu», nem tão pouco «nosso» (dos que têm subscrito cartas e telegramas). O impulso é de todos nós, dos milhões que se pudessem também assinariam telegramas e cartas de protesto. Se não houvesse atrás de nós uma força imensa que outra força, por enquanto mais forte, mantém quase paralisada, nós não poderíamos tomar atitudes dessas. De resto nós temos a felicidade de ter escapado às garras da Gestapo lusa; como deve saber eu fugi em março de Portugal, com a minha mulher e filho, pressentindo que em breve eles me viriam procurar. Constatei mais tarde que tinha escapado na hora H. Como tal temos o dever imperioso de lutar até ao limite das nossas forças para que a repressão feroz dos lusos não deite a perder o que com tanto sacrifício se consolidou – a consciência nacional do nosso Povo. Aqui há uns anos, não muitos, nasceu um movimento, que hoje se denomina Movimento Anti-Colonialista, cujos objectivos essenciais eram a consciencialização das populações africanas das colónias portuguesas acerca dos problemas e das lutas dos seus países e agitação à escala internacional desses problemas, em apoio das lutas travadas em cada país pelas organizações políticas locais. Este Movimento engloba nativos de todas as colónias portuguesas de África, quaisquer que sejam as suas ideias políticas ou credos religiosos, desde que estejam dispostos a lutar dentro das suas possibilidades, pela independência das suas pátrias. O MAC tem aderentes em vários países estrangeiros (infelizmente ainda não muitos) e conta já no seu activo um pequeno mas bom trabalho sobre os fins a que se propõe, entre os quais se inclui também o «procurar obter dos povos africanos e de outros povos anti-colonialistas o apoio moral, material e cultural de que tanto necessitamos». Dado o seu carácter o MAC não faz questão que os seus aderentes pertençam a outras organizações políticas, cujos fins não sejam contraditórios daqueles a que se propõe e que visam sobretudo a INDEPENDÊNCIA nacional dos nossos países. Nestas condições, surge a pergunta: quer você aderir ao MAC? Em caso afirmativo poderia ficar como que uma delegada no Brasil (facto que necessitaria apenas da concordância da Direcção do Movimento). Após a sua resposta, esclareceria mais alguns pontos fundamentais. Não sei se sabe que se realiza dentro de dias (de 25 a 29 do corrente) a II Conferência de Todos os Povos Africanos aqui em Túnis. O MAC é convidado oficial, e nós faremos o possível para que a Conferência constitua uma condenação enérgica do colonialismo português, em especial, e que daqui saiam medidas CONCRETAS de apoio MATERIAL e moral à luta dos nossos povos. Logo que possível enviar-lhe-emos toda a documentação que se refira ao assunto. Se puder desde já alertar a nossa gente de que nós cá estaremos e de que tudo faremos para abreviar o seu sofrimento, e incentivar a sua luta, seria muito bom. Por outro lado já se falou com a Associação internacional de juristas que está interessada no julgamento dos nossos irmãos e que se propôs desde já: 1) a publicar um documento sobre o processo contra os nacionalistas angolanos, que será enviado às organizações e à imprensa do mundo inteiro; 2) estudar a possibilidade de assistência jurídica, presença efectiva de um advogado brasileiro ou francês em Luanda. O único entrave é que não se sabe ao certo a data do julgamento. Em princípio estava marcado para 5 de Dezembro, mas por uma notícia que os jornais difundiram a 24 de Dez., ainda não teria começado; se você souber alguma coisa de certo a respeito da data do julgamento, escreva rapidamente pª o Mário. No dia 24 passa aqui o Secretário Geral da ONU e nós vamos tentar entregar-lhe um memorandum sobre a situação política e social das colónias portuguesas. Não temos a certeza de sermos recebidos, pois ao que parece ele tem o tempo cá muito ocupado, com variadíssimas entrevistas e visitas para tratar de problemas da Tunísia. Mas vamos tentar o impossível para lhe entregar pessoalmente um memorandum que seria como que o complemento do telegrama enviado em 1 de dezembro. Creio aliás, por informações recentes, que ele ao passar agora por Portugal deve ter falado com o Presidente do Conselho a respeito disso... Passando agora ao seu caso, estou convencido que nenhum mal lhe acontecerá. Eles não devem ter poder sobre o governo brasileiro para pedirem a sua extradição, porque se trata de motivos políticos. No entanto é bom que você esteja prevenida, mesmo quanto a um presumível inquérito da Polícia Brasileira, que não deve passar de inquérito. Chegou a falar com o Conselheiro? Diga sempre o que se passar. Obrigado pelas moradas enviadas. A do Holder é certa? A polícia lusa também procura agir contra ele, como pode verificar por um documento que camaradas nossos nos enviaram há pouco tempo, e que vem completar aquela informação que lhe mandei na outra carta. Quanto a artigos, em breve lhe mandarei 2, que escrevi para jornais daqui e que você pode utilizar como quiser. A sua carta encontrou-me em Túnis, para onde ma enviou o amigo a cargo de quem ela vinha. Nestas condições não me foi possível tomar ainda medidas para me pôr em contacto com o seu irmão (não directamente, claro) e dar-lhe os seus recados. Receio mesmo que não chegue a tempo de o apanhar, pois você diz que ele partia este mês. Vou em todo o caso ainda tentar. Acho óptimo que você esteja em contacto com a Cruzada Cultural do N.B. [Negro Brasileiro]. Logo que o trabalho em que estamos envolvidos por causa da Conferência abrande um pouco estudaremos uma colaboração estreita e concreta com os nossos irmãos brasileiros. Um pedido: será você capaz de arranjar fotografias do nosso povo, que mostrem alguns aspectos da sua vida, desde a habitação até às danças, trabalho, etc? Será capaz de se interessar por arranjar isso? Faz-nos muita falta... Tenho que humildemente confessar que não percebi o «ngoma ka ivua kiavulu, kutanduka». Tenho uma ideia vaga do que quer dizer, mas não sei concretamente. Eu não sei nem umbundu, nem kimbundu. Percebo alguma coisa, muito pouca de umbundu, que é a língua da m/ região (Huambo), mas eu fui sempre educado à europeia, vivi em colégios europeus, e não aprendi a língua do meu povo. Mas ainda vou a tempo... Bem, querida amiga, esta já vai longa, e o trabalho amontoa-se... Coragem, para si e para os nossos irmãos que lidam consigo. Sempre que puder comunicar com a Pátria, diga-lhes que cada um de nós redobrará os esforços para substituir no máximo (totalmente não é possível) a falta dos que caíram nas mãos dos carrascos... As últimas notícias que tive sobre os Boavidas e Cabral (há cerca de um mês), eram boas. Toda a amizade e encorajamento do camarada e irmão ass.) Lara [Acrescentado à mão: P.S. – Sim, eu sou o «Lúcio que dava lições à Ruth e Jeny».]

Carta de Lúcio Lara (Túnis) a «Boa amiga» [Deolinda Rodrigues]

A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

Nomes referenciados