Carta de Lúcio Lara a Viriato da Cruz

Cota
0008.000.014
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel comum
Remetente
Lúcio Lara
Destinatário
Viriato da Cruz
local doc
Rep. Federal da Alemanha
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
2
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

Carta a Viriato da Cruz [dactilografada] Frankfurt/Main, 8 de Dezembro [de 1959] Caro Cruz Acabo de chegar a casa e receber 3 cartas expresso: a tua, uma do Mário e uma do Marcelo [Marcelino dos Santos]. A deste contém um bilhete de apresentação para um tunisino do Neo Destour que ao que parece esteve em Paris e que eles informaram da m/ ida lá sem dizerem com que objectivos, mas tendo dado a entender que eu me encontrava engajado numa luta política. Parece que o senhor está interessado em dar qualquer primeiro apoio que eu necessite; para já sempre é bom ter mais de uma pessoa a quem um tipo se possa dirigir para dar os primeiros passos. A carta do M. [Mário de Andrade]; não era carta e apenas um envelope contendo as credenciais. Não sei porque razão a não mandaram expresso para ti como eu tinha pedido. Assim perde-se um dia e é possível que isso faça com que eu já não a possa levar, e tenha de aguardar lá por ela. Já é tardíssimo para eu ter peneiras que chegue lá amanhã, mas vou tentar. Se te chegar aí amanhã, quarta-feira, podes logo meter expresso no correio que deve estar cá com certeza na quinta feira, ou na pior das hipóteses na 6ª feira de manhã. Como eu ainda cá estou até 6ª feira à noite, está certo. Mas se só puderes enviar isto 5ª feira, não o faças cá para o Hotel, mas para casa da família. Assim não corre o risco de se perder. Claro que se ainda mandares 4ª feira, podes fazê-lo cá para o Hotel. A tua carta deixou-me um pouco chateado, como deves imaginar e como penso que seria tua intenção. Continuo a pensar que és injusto com a malta de Lx., embora pense que tudo devesse ter acontecido como tu pensas. Mas isso é, perdoa-me que te diga, idealismo. Nós estamos todos (e somos) perante homens e não perante heróis. Tu estás no teu direito de «achares» que se podia ter feito isto ou aquilo. Os amigos que ora sofrem o contacto com os tribunais port. estão também nesse direito. Mas nem tu nem os nossos amigos de Angola sabem o que se passa em Lisboa, em que condições a luta é travada, com que massa a luta é travada. Isso sabemo-lo nós, aqueles que também desde há muito se esforçam por lutar ao lado do seu povo e que na sua melhor boa vontade não hesitaram em experimentar adquirir nos movimentos lusos uma experiência que por circunstâncias várias não podiam adquirir ao lado do mesmo povo a que se quiseram devotar. A sua luta está pejada de erros, não o nego, mas foi uma luta, é uma luta ainda hoje. Onde estão os frutos dessa luta, perguntarás? Eu não tos posso já apontar, mas é significativo o facto de já se ter discutido em pequenos núcleos de Coimbra, Porto e Lisboa qual a atitude da malta africana perante estes acontecimentos que envolveram os nossos camaradas. É também significativo que pouco a pouco os nossos jovens comecem a abandonar um pouco à aventura as Universidades lisboetas e outras da Lusitânia, pª procurarem fugir exactamente a uma formação profissional e cultural eivada de todos os defeitos lusos. A luta é desorganizada, não o contesto; estamos a todo o instante a senti-lo; mas ela é o começo de uma verdadeira luta, ela envolve pela primeira vez apenas africanos e são sobretudo jovens que a dirigem (o Neto acaba de ter uma festa de despedida, deve ir breve para Angola). Há que ser compreensivo, embora duro a julgar. Nós desde sempre nos sentimos ligados àqueles que lutavam na nossa terra. A nossa luta tinha os olhos postos neles, e desde sempre aguardámos uma palavra de ordem. Esta levou tempo a chegar, mas quando chegou imprimiu-se um novo cunho a toda a nossa actividade. Desde aí considerou-se enfim que era errado o caminho por nós escolhido de lutar ao lado dos portug. Mas era errado a partir daí, antes não tínhamos outra perspectiva que não fosse essa. Compreendo-te quando falas de traição. Tu já me puseste ao corrente de parte dos factos que te levam a falar assim. Insisto porém que esse juízo é muito duro. Há erros? Há elementos que procuram primeiro resolver os seus problemas antes de se dedicarem às questões que interessam urgentemente à luta? Tudo isso é verdade. Mas esses elementos não são aqueles mesmos em que vós não contáveis? Sempre me disseste que os nossos camaradas de Angola não tinham confiança nos tipos que estavam na Europa. Não seria essa atitude errada? Eu creio que sim. Nunca se devia pôr uma questão de tipos aqui (na terra) e tipos lá (na Europa). A única questão que se devia pôr é que são todos africanos interessados honestamente em lutar pelas suas terras. O resto é uma questão de competências, de capacidades, de carácter, [acrescentado à mão: de disciplina.] Eu digo-te com toda a sinceridade que não vejo bem quais as razões porque tu exiges que tudo se acelere. Concordo plenamente que não devemos dormir, que não devemos desleixar-nos em dar seguimento a todas as questões que se nos põem. Mas tens que ver em que condições estamos a trabalhar. Estamos todos distantes; não temos um núcleo de base bem instalado (no aspecto prático, claro) de modo a dar pleno rendimento, a discutir de um momento para outro qualquer questão urgente que se ponha. A malta de Lx. não está completamente ao corrente do que se passa cá fora (nem pode estar) e se ainda não temos um executivo cá fora também isso deverá ter como causa o facto de nós mesmos ainda não estarmos instalados. Tu afliges-te por ver as coisas caminhar lentamente (eu também) mas repara que os assuntos que nós temos entre mãos caminham com uma lentidão aflitiva e que nós mesmos temos sido impotentes para acelerar essas questões. Tu pões-te na posição de exigir muito da malta de Lª; eu creio que exiges demais. A malta que está em Lª não pode já ter adquirido o mesmo espírito de luta que os nossos irmãos das nossas terras. Isso não quer dizer que eles sejam menos africanos por isso. Eu admito mesmo que haja verdadeiros africanos que nunca se integrarão verdadeiramente numa luta de libertação, embora possam ardentemente desejar-nos a vitória. De resto pª quem conhece a actual situação em Lª, é evidente que o espírito de Luta subiu muito; isso é evidente até para as próprias autoridades. Eu quereria dizer-te talvez outra coisa daquilo que aí vai. Estou cheio de pressa. Tenho imensas coisas a acabar e quero ainda ir à estação meter esta. Não posso ser muito mais extenso. Mas faço disto que te digo agora questão: a primeira oportunidade que tenhamos havemos de discutir o que tu afirmas nestas duas cartas últimas. Eu considero que nelas há muita coisa que tu afirmas sem razão. Ou bem te responderia com tempo, ou bem seria preferível guardar isso para melhor ocasião. Não gosto de escrever atabalhoadamente sobre estas questões. O que interessa neste momento é que nós podemos continuar a luta com aqueles que escaparam da prisão (a este respeito não deixarei de te dizer que considero um pouco idealista a hipótese de travar uma luta contra o dominador luso sem se passar pela prisão). Como dizia, nós cá estamos, cada vez mais decididos a concretizar a luta que todos os nossos irmãos travam neste momento. Eu admiro em ti um lutador experiente, com uma experiência adquirida à tua própria custa, dos mais honestos, um verdadeiro patriota. Tens de muitos problemas a visão que nos falta, aos que abandonámos há anos a Pátria. Tens o amadurecimento no seio do povo, que é a melhor escola que pode desejar quem luta por causas como a nossa. Mas não deixarei de te dizer que muitas vezes és parcial na maneira de analisar certos problemas, sobretudo quando eles dizem respeito aos teus irmãos que não se forjaram na mesma FORJA que tu. Isso não quer dizer nada de especial. Isso poderá ser mesmo a razão de um dia nos podermos corrigir melhor uns aos outros, naquilo em que for necessário. A hipótese do dia 11 continua. Ainda não tenho a certeza de ter bilhete no barco, mas penso partir de qualquer maneira nesta data. Manda pois as credenciais. Os tipos de Paris já ficaram com uma cópia. Por carta do Marcelo sei que o ES [Guilherme Espírito Santo] já abandonou a França, não sabendo ele se para a Suíça se para a Bélgica. Ele, Marc., está em Paris como turista e possivelmente terá a mesma sorte do ES. Ele pede que te diga que tudo foi entregue à Présence Afr. Afinal nada dizes sobre o que te pedi pª o Pothekine. Era mesmo um contacto oficial que eu referia. Esse contacto devia ser feito tempos depois de enviares aquela carta do Mário. Simplesmente eu daqui não o podia fazer e a tua situação aí só agora me pareceu clara, pelo que só agora pensei que tinhas um ENDEREÇO para onde se devia pedir a resposta do Pot. Esta já vai longa. Amanhã escrevo com mais vagar, para mandar aquilo que pensamos poder ser alterado no Manifesto. Saudades de todos. Um abraço

Carta de Lúcio Lara (Frankfurt/Main) a Viriato da Cruz

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