Carta de Viriato da Cruz a Lúcio Lara

Cota
0008.000.013
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Viriato da Cruz
Destinatário
Lúcio Lara
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
4
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

Carta de Viriato da Cruz
[dactilografada]

6.12.59
Caro Amigo,

De posse da tua carta de 2 do corrente.
Desde que estou ausente de África, nunca me senti tão doloroso e, ao mesmo tempo, tão revoltado contra esta situação de quase impotência que nós mesmos, africanos «portugueses» na Europa, contribuímos para mantê-la até hoje.
Tendo sido o primeiro que abandonou toda a sua vida civil, para se dedicar, sem ajudas patrícias, a uma actividade revolucionária no exterior que pudesse apoiar, chegado o momento, a actividade revolucionária do interior dos nossos países, verifico hoje como quase todos os meus esforços foram inutilizados por egoístas e diletantes da política. Aqueles que tudo fizeram para anular a minha luta, em verdade eles não prejudicaram só a mim: eles prepararam a traição aos nossos irmãos africanos!
1 – Dizes que sou injusto para com os amigos de Lxa. Não o sou. Acho que, pelo contrário, continuar a afagar uma atitude «compreensiva» em face das mazelas que os referidos africanos vêm exibindo aqui na Europa, é o mesmo que pretender manter as raízes de muitos dos nossos males. Todos os erros, todas as traições (digo conscientemente traições, porque as houve) e todas as tácticas dilatórias, que se cometeram e se praticaram na actividade política dos africanos «portugueses» na Europa, tudo isso derivou da falta de vigor do sentimento de ser-se Africano, e da falta de total repúdio de ser-se português, de estar-se assimilado ao povo português e de se participar de aspectos da vida portuguesa. A maioria desses africanos nunca negou, de maneira total, o facto português que a colonização criara dentro do seu espírito. A falta desse repúdio subjectivo contra todo e qualquer vestígio de uma alienação pessoal a Portugal é responsável pela falta verificada, até hoje, de um aparelho de luta, aqui no exterior (de África, evidentemente), montado com o propósito claro, total e incondicional de repelir completamente Portugal e a vontade portuguesa dos nossos países e de África. O problema de ser-se súbdito português e o de ser-se Africano raras vezes se apresentou, no espírito da maioria dos referidos africanos, em termos de uma contradição antagónica.
O colonialismo português pode ser responsável pelos diferentes métodos de trabalho adoptados no decurso da nossa actividade política; mas ele não é responsável pela atenuação de um sentimento que não se ensina: o de ser-se africano, e não um português rebelado contra a Mãe-Pátria.
Dizes: «Nós não podíamos prever a projecção que o Movimento viria a ter, dados os limites de visão que sempre se nos puseram».
Se com essa frase pretendes apenas dizer que o meio português não vos possibilitou uma instrução razoável sobre as necessidades e as técnicas de uma luta organizada, estou meio-de-acordo contigo.
Mas se com essa frase pretendes confessar que, ao fundar o Mac, não admitiste que ele podia ser chamado a lutas máximas para a liquidação completa do colonialismo português em África, não posso deixar de lastimar profundamente esse vosso esquecimento – o qual só confirma o que acabo de dizer atrás.
Nesta longa fase histórica de África, em que o homem do nosso continente é vítima do domínio cruel e cem por cento canalha de alguns povos, entre os quais está o povo português, é impossível conciliar a nossa africanidade com a mínima alienação das nossas pessoas, dos nossos interesses e da nossa psicologia ao facto português.
Dentro da situação concreta dos nossos povos, não se pode ser-se meio-português e meio-africano em Portugal. Na nossa situação, só há uma maneira correcta de ser-se africano de uma colónia portuguesa: é ser-se africano contra Portugal. Este é um problema de ser ou não ser. Um problema que não admite meios termos e fases intermediárias. Não há, portanto, dentro dele, lugar para «compreensões» para com possíveis fases intermediárias de comportamento.
Acho que a tua experiência pessoal durante este ano de afastamento do meio português pode ajudar-te a compreender o que digo. Por outro lado, o comportamento da Noémia, por exemplo, (e talvez do Neto) [sublinhado por L. Lara] podem servir de contra-prova.
2 – Há que fazer tudo para contactar a «International Association of Democratic Lawyers», da qual é vice-presidente o brasileiro Henrique Fialho (presidente da Associação brasileira de juristas democratas), o qual esteve, ou ainda está, em visita na China.
Vou escrever ao Mário a este respeito. Aqui não posso fazer nada nesse sentido.
Aí está uma das utilidades que poderia ter um Mac com cabeça, tronco e membros. Já houve mais do que tempo para o Mac se ter convertido num instrumento eficaz no plano internacional, das necessidades da luta libertadora de cada país africano sob dominação portuguesa. Mas no espartilho de uma estrutura primitiva, o Mac comporta-se como um corpo quase paralítico.
Toda a gente no mundo sabe que fora de organização, que sem organização, não há viabilidade, nem de vida política consequente, nem de crédito político. Nenhuma organização séria, do mundo, dá importância aos pedidos aflitivos de um indivíduo que não esteja mandatado por uma organização autêntica. Mas a nossa «experiência» (até quando?) só soube aconselhar-nos a constituir organizações desorganizadas, ineficazes, e «movimentos» de uma lentidão mortal.
3 – Acho que deves abandonar o argumento de que «este primeiro choque sério com a Polícia deverá constituir uma lição preciosa para a nossa malta, ainda virgem de contactos e julgamentos deste tipo».
Não, meu amigo, este teu raciocínio não tem nenhuma utilidade para nós. Não constitui nenhuma lei histórica que a nossa libertação do domínio português devesse passar, obrigatoriamente, pela lição dos choques com a polícia e de julgamentos em tribunais portugueses.
Em Angola, nós tínhamos definido a inutilidade dessas «experiências» de que se vangloriava, estupidamente, o P.C. português. Uma luta é tanto mais frutífera quando ela contorna os obstáculos, e não quando ela se choca contra estes.
Os revolucionários portugueses (ou alguns, como se quiser) foram um dos inventores da teoria errada de que o aço revolucionário teria de ser temperado nas prisões, nos tribunais e nas perseguições desumanas. Isto nem sequer é uma teoria marxista. Lenin dizia que o revolucionário deve «viver para a revolução e não morrer por ela». Um revolucionário na prisão é quase como um corpo morto. Não tem nenhuma utilidade prática. Só se pode fazer uma revolução com homens que tenham liberdade de movimentos. O aço revolucionário tempera-se na acção junto do povo, na acção tendente a mobilizar, organizar e levar o povo a derrubar o seu inimigo mortal. A grande forja revolucionária é a acção revolucionária entre as massas. Vencer a apatia, a ignorância e a resignação das massas – eis o que é trabalhoso, mas isso é também o mais útil. (*) [Acrescentado à mão, na margem: * Porventura as revoluções russa, chinesa, vietnamiana e algeriana (para citar apenas as maiores revoluções populares do nosso século) não foram somente possíveis pela sobrevivência, até à vitória, dos seus dirigentes mais responsáveis? Pode-se fazer uma revolução sem dirigentes? O que é um povo decapitado, se não um rio fora do leito?]
Que grande tarefa há a executar junto dos polícias, dos juízes e dos carcereiros da opressão? Convertê-los? Ruborizá-los com «umas verdades duras»? E porque é que essas verdades não poderiam ser melhor ditas cá fora, na liberdade, ainda que clandestina? E que farão os empregados do colonialismo das verdades que lhes dissermos?
Não, meu amigo, a verdade só é útil a uma certa categoria de gente: àquela gente que não a teme, mas pelo contrário, só tem tudo a ganhar com ela. Essa gente é o povo oprimido.
Nós dizíamos, em Angola, que um certo comportamento revolucionário luso oscilava entre dois termos de uma ambivalência: a revolta inconsequente contra a opressão – e o masoquismo.
O revolucionário luso, ou atira-se, «valentemente», de modo a partir a cabeça, ou converte os seus fracassos e dores em «actividade revolucionária eficaz». [Acrescentado à mão: Mas, no final de contas, ele nunca vence nada.]
4 – Quanto ao caso do Rocha, transcrevo a seguinte apreciação insuspeita do Horta, que veio mesmo a propósito: [À mão: (30.XI.59)]
«Quando voltei do Festival estava à espera que passasses por aqui... para te falar a esse respeito e afinal creio que nunca cheguei a dizer-te nada. A melhor lição que lá recebi foi a necessidade de uma associação para estudantes ou juventude africana de cultura (ou expressão) portuguesa. A cada passo pude avaliar esta necessidade que me pareceu imperiosa. Todos os jovens africanos vinham em nome de uma ou de outra organização: “Estudantes de Dakar”, “Juventude Democrática da Mauritânia”, “Associação dos Estudantes da Maurícia” (!!) e assim por diante. Todas essas associações beneficiam de bolsas... Da Maurícia creio que cinco estudantes estão nestas condições. Encontrei em B. [Bucareste] um estudante da Guiana que tinha recebido uma bolsa por intermédio da “Associação dos Estudantes da Guiana Francesa”... Quanto a Angola e Moçambique e outras colónias portuguesas parece que somos os únicos que vamos ao Festival sem compromissos. Os Camaradas do Comité Preparatório dão-nos facilidades extraordinárias tendo conhecimento das condições difíceis dos nossos países. Mas que diabo, não são essas mesmas condições difíceis que deviam incitar-nos a fazer alguma coisa? Fui a P. [Paris] expor estas ideias ao Marcelino: diz que é impossível, que é preciso esperar... pela morte da bezerra se calhar. Enfim durante as semanas que passei no Festival e na Roménia tudo me gritava a necessidade de uma organização, as vantagens de fazer parte de uma associação, os horizontes que isso podia abrir para a nossa juventude quanto a bolsas de estudo, etc. Vim com uma grande vontade de saber o que se poderia fazer nesse sentido; a minha boa vontade encalhou em casa do Marcelino, que tinha acabado de receber os direitos de autor de uns poemas seus traduzidos em r... Na Roménia tinham-me pago 125 lei por uma página com as minhas impressões e a única coisa que pude fazer foi dividir essa soma com um companheiro Guadalupeano... Em M. a «delegação» das colónias portuguesas recebeu também presentes que não sei que destino teriam levado, a não ser enfeitar os domicílios dos delegados. É todo um estilo de trabalho individualista, errado pela base.»
O Horta, sem ter grandes convívios com a nossa malta (ele nunca fez estudos em Portugal) viu logo e verberou as podridões que existem no nosso meio.
Nos começos de 1958, propus, em Paris, que se criasse uma secção de juventude e que a filiássemos a uma dessas organizações internacionais de jovens e estudantes. Os amigos de Paris (excepto o Mário) sabotaram a minha proposição. Nem sequer, penso, a transmitiram a Lxa, como pedira. É por isso que falo, claramente, na existência de actos traidores, dentro dos esforços que se fizeram, na Europa, para criarmos instrumentos necessários à nossa luta libertadora. Uma das pessoas que mais traiu foi precisamente o senhor Marcelo [Marcelino dos Santos]. E um dos hábitos, que mais contribuiu para que os actos traidores tivessem êxito nos seus manejos, foi o de «ser-se compreensivo».
Não perco mais tempo em discutir esses assuntos. Tu mesmo só te convences da verdade das coisas quando a sentes na tua própria carne. [À mão: (Caso Boveiros, por exemplo)]
5 – A tal «comunicação de pessoa amiga» deve ter sido feita por um português. Dentre as pessoas citadas (oito) só se cita o nome de um africano: o Ilídio. Porquê? Porventura o movimento revolucionário anti-colonial em Angola é obra de portugueses?
Ora, aí está uma atitude desonesta; ou então um interesse orientado no sentido português.
Nós devemos pedir, acima de tudo, os nomes dos africanos presos. A maioria dos presos são africanos. Essa luta é obra e mérito de africanos. Não podemos permitir que os portugueses, mais uma vez, se encham de glória com um esforço que não lhes pertence.
Acho que não tem interesse saber quem é o Juiz. Será, necessariamente, um colonialista.
O Franco de Sousa não é um marítimo, nunca o foi. É possível que o teu nome como o do Mário apareçam citados no processo. De certeza, os nossos compatriotas, num acto inteligente, lançaram sobre as costas da malta que está no estrangeiro algumas acusações portuguesas. Que mal te virá a ti, a mim ou ao Mário? Em nenhuma parte do mundo civilizado se reconhece o direito de extradição por «crimes» políticos. Portanto, só à força o Mário e a Deolinda poderão ser enviados a Angola, pelas polícias francesa e brasileira, respectivamente.
6 – Espero que partas para o Norte de África no dia 11, como dizes.
Fora da Alemanha poderás, talvez, escrever directamente para mim. Até o dia 19 deste mês permanecerei no seguinte endereço: (Meu nome) bei C. Gottschalk – Berlin, Schöneweide – An der Wuhlheide, 20.
Depois do dia 19 até ao dia 27 deste mês, estarei em Petzow, no lar [à mão: dos escrit.].
Se achares conveniente, podes ainda escrever para Michelis.
Espero que me ponhas ao corrente do decorrer de todas as démarches na Tun. No caso de ser possível a minha ida a esse país, escreve-me imediatamente, a fim de eu tratar de partir sem demoras inúteis.
7 – A credencial assiná-la-ei. Mas declaro o carácter ilegal desse meu gesto. Faço-o, porém, porque é preciso agir e depressa.
8 – Os 15 dias que se gastaram para se enviar o telegrama ao Secretário-geral são uma demora intolerável. Se foram precisos 15 dias para comunicar Berlim – F. [Frankkfurt/Main] – Paris, e para estudar um texto com 80 palavras, então quantos meses serão necessários para estudar um programa, um manifesto, um plano de organização ou mesmo um relatório a um organismo internacional?
O valor do telegrama não pode estar na «vibração» que a malta de Lisboa terá ao lê-lo. Ele está no dever moral de apoiar a luta justa dos nossos irmãos em África e de denunciar a ilegal e selvagem dominação portuguesa.
9 – Os contactos do Mário com o Pothek[ine] e os teus com a Deolinda são bons. Mas é preciso não cair no gosto desses contactos, pois está-se a manter um vício que é preciso EXTIRPAR IMEDIATAMENTE: Nós precisamos de relações de organização para organizações, e não de indivíduos para indivíduos. Que os indivíduos actuem atrás de uma organização. Acabemos com as «personalidades». [À mão: É preciso afirmar uma organização e projectá-la!]
Enfim, cansei-me a escrever muito. Valeu a pena? Estou profundamente desconfiado da utilidade dos meus esforços.
Cumprimentos. O meu melhor abraço.
ass.) V.

Carta de Viriato da Cruz a Lúcio Lara

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