Carta de Viriato da Cruz a Lúcio Lara

Cota
0007.000.063
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Viriato da Cruz
Destinatário
Lúcio Lara
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
4
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Carta de Viriato da Cruz [dactilografada] [Acrescentado à mão, ao alto da página: Acusa a recepção de tudo isto, na volta do correio. e na margem: A pessoa para quem envias as coisas em Wilmersdorf não é Herrn é Frau. O melhor é não escrever nem Herrn nem Frau. Põe só o nome dela.] 29.11.59 Caro Amigo, Recebi e agradeço as tuas cartas de 22 e 26 do corrente. Agradece ao Rocha por mim pelas notas que teve a bondade de copiar. 1 – Junto remeto algumas correcções e aditamentos ao projecto que te enviei. Isto é, ao projecto do Manifesto. Neste falta algo que é básico: uma palavra-de-ordem para a acção imediata. Sem essa palavra-de-ordem o manifesto seria mais uma peça para a biblioteca do que um impulso para a acção imediata, agora mesmo. Sou de parecer que as discussões sobre o presente projecto de manifesto não deverão alongar-se por semanas. A razão disto está em que, por um lado, o Manifesto transmite uma palavra-de-ordem para ser passada à acção imediatamente, e, por outro lado, é compreensível que nunca o tempo para a leitura e apreciação do manifesto poderá ser maior do que o que se gastou com a redacção do mesmo. Além disso, se formos a manter o vício vergonhosamente preguiçoso de fazer tudo com demora, seremos sempre ultrapassados pelos acontecimentos. No caso do Manifesto, quando as discussões tivessem acabado, já novos problemas e acontecimentos estariam a exigir de nós uma outra tomada de posição e novas palavras-de-ordem. Acresce ainda que, como li no artigo do Basil Davidson, o Henrique Galvão, dentro em breve, vai definir a posição da oposição portuguesa no que respeita às colónias. Ora, de modo algum poderá convir que a declaração do Galvão seja anterior à publicação e divulgação do nosso Manifesto. Se a anterioridade da posição dos oposicionistas se verificar, isso significa que nós seremos empurrados à uma posição de defensiva. Ora, como naturais das colónias, é vergonhoso que não sejamos sempre nós a passar à ofensiva. Em resumo, o MAC precisa de ser uma força que aja sobre a realidade; o MAC precisa de ser, de facto, um movimento, e não um corpo movido, a reboque, pelos acontecimentos. 2 – O que faz o «directorium» em Lxa.? Onde é que já se viu um directorium que não dirige nada? O directorium é a negação de si mesmo. Sou de opinião que se ponha, urgentemente e sem rodeios, aos amigos de Lxa, a seguinte proposição: ou dentro de 20 dias o directorium põe em prática todo um sistema para comunicar-nos as suas ordens, ou o directorium deve sair de Lxa., ou finalmente o directorium não pode estar em Lxa. Das três, uma. O directorium não pode, de modo algum, ser um peso morto para nós. O directorium tem de ser o organismo mais dinâmico da nossa organização, o que deve dar exemplos de acção rápida, de espírito de sacrifício, de espírito de iniciativa. De outro modo, estaremos a manter mitos e não sei com que utilidade. 3 – No respeitante aos Acordos de Paris, não me deste a resposta que eu pretendia. Não me disseste se esses acordos foram aprovados na sua forma original e se eles estão, por conseguinte, em vigor; não me disseste se se aprovaram novos Acordos. Do que me dizes na tua última carta, fiquei com a impressão de que a fusão que se fez em Lxa baseia-se em acordos verbais. Quer dizer, para bem ou para mal, parece que Lxa não chegou a fazer um trabalho ao menos com o nível que nós fizéramos em Paris. Enfim, sempre os vícios da porqueira portuguesa envenenando e ditando a nossa acção... 4 – Que andamento já se deu ao problema da nova estruturação do MAC? 5 – Fizeste bem em conseguir a renovação do teu pass. Foi um acto inteligente e revolucionário. O meu parecer sobre esse problema da renovação de «pass» português é que não devemos admitir a hipótese de renovarmos sempre esses pass. Se admitirmos essa hipótese, nunca faremos esforços sérios para passar a viver fora da sombra da bandeira dos nossos colonizadores. Em dado momento, é preciso que cada um de nós tome a decisão de cortar os cordões umbilicais que nos ligam à «Metrópole» e de procurar outra saída para os seus problemas. Sem essa decisão, jamais se iniciará, ao menos no plano individual, um verdadeiro movimento de emancipação. 6 – Quando escreveres à Ghana, não lhes mostres os nossos planos futuros. Que iremos pedir asilo na Tunísia, em Marrocos ou qualquer outro país é coisa que não nos compete informar à Ghana. Não vejo nenhuma vantagem para nós de especificarmos os países aos quais tencionamos dirigir-nos. Se tivéssemos que dizer alguma coisa sobre as nossas futuras intenções, deveríamos ter dito, vagamente, que iniciaríamos démarches junto de outros países. É preciso que nos desconvençamos, pela nossa conduta, e que, por outro lado, não demos a impressão à Ghana de que nós nos colocamos em situação de sucursal do «bureau» para África desse país. Em resumo, sobre os nossos planos futuros falemos apenas quando tivermos uma bem estudada conveniência. Em caso contrário, respondamos somente àquilo que nos perguntam e, mesmo assim, não podemos, por vezes, responder a tudo. 7 – Proponho que o Men. [Hugo de Menezes] passe a relatar-nos, todos os meses (e, extraordinariamente, quando lhe pedirmos) sobre os seguintes pontos: a) Posição dos organismos oficiais, das individualidades oficiais, das organizações de massa e do povo em geral, na G. [Guiné], sobre os problemas dos nossos países; b) Posição concreta em que se encontram as démarches já encetadas; c) Resumo do trabalho no mês dos indígenas das colónias lusas residindo na G. O que é que o Men. já fez de útil para nós, desde que se encontra na G.? 8 – Em face das nossas experiências no respeitante a irmos para um país da África negra, acho que não devemos perder tempo, hoje, com discutirmos sobre as vantagens e desvantagens de irmos para G. em vez de, por exemplo, para o Egipto. Nós já não somos virgens sobre essas possibilidades. Levantar problemas sobre preferências é continuar a sonhar. Não, meu amigo, costuma dizer-se que o óptimo é inimigo do bom. Se ir-se para a G. ou Gh. [Ghana] seria o óptimo, a verdade é que nós já encontramos, provadamente, dificuldades nesse sentido. Agora, o que nos compete é encontrar outra solução africana. Tunísia ou Marrocos. Ou mesmo Egipto. Neste último país, esteve durante anos a União das Populações do Cameroun, e estão ainda uma série de delegações de países da África Oriental. 9 – Mas sobre a tua ida a Tunísia falaste de tudo, menos porém do que mais interessa para o momento: a saber: É mesmo necessário, ou não é necessário, um visa de entrada? Já tens informação oficial, segura, a este respeito? Quanto custam as passagens? Por que porto já decidiste embarcar? Por Roma? Por Marselha? 10 – A ires para o Norte de África, acho que não tens necessidade de demorar aí na Alemanha mais duas semanas. Ficar aí mais tempo só redunda em perda de dinheiro que vos poderá ser útil para passagens e estadia no Norte de África. 11 – Acho que não deves alimentar a pretensão de viver em pensões e hotéis no Norte de África. Mais económico, penso, seria viverdes em casa particular ou em casa de família. 12 – A ires para o Norte de África sou de parecer que te deves munir de uma credencial passada em nome do MAC, a fim de tratares com organismos oficiais ou não oficiais sobre os nossos problemas. Da malta que está cá fora quem faz parte do Directorium? Dos que estamos cá fora quem tem competência para assinar essa credencial? Acho que um ou dois amigos de Paris deveriam também assiná-la para evitar reservas futuras no tocante à tua conduta no Norte de África. 13 – Estou disposto a fazer projectos do material que apresentaríamos nas próximas conferências africanas. Mas, sinceramente, não farei mais nada enquanto não se chegar a soluções positivas acerca da nova estruturação do MAC, acerca do Manifesto, e de outras questões sobre as quais já se gastou tempo e trabalho. Para que serve acumular inutilmente papéis escritos? 14 – Mais uma vez sou contra a tua opinião de que a malta de Lxa não estará apta a enviar, tão cedo, mais dinheiro. ISTO É UM ARGUMENTO INACEITÁVEL. É evidente que, se a malta de Lxa continua a pensar que só os membros da «seita» deverão financiar as nossas necessidades, o teu parecer está certo. Mas se os amigos de Lxa estão convencidos de que eles têm o dever de ir buscar o apoio material do maior número possível de africanos, mesmo dos nossos países, é evidente que há possibilidades permanentes de recebermos esse apoio financeiro. Não te lembras do que disse o Ilídio [I. Machado] ao Abel [Amílcar Cabral]: que a questão de dinheiro não é problema? Não perco mais tempo a discutir esse problema, porque partes de uma posição radicalmente errada. Se admitirmos, um segundo sequer, que os nossos povos não podem financiar as lutas em seu favor, então está tudo perdido; então o melhor é desistirmos de combates quixotescos. 15 – Acho que deves procurar estar ao corrente do conteúdo dos seguintes livros: – «Cours de Droit diplomatique», de Pradier-Fodéré. – «Le droit international théorique et pratique», de Calvo. – «Manuel des agents diplomatiques et consulaires», de Ernest Lehr. – «Guide Diplomatique», de Ch. de Martens. Nesses livros, nem tudo nos interessa para já, mas há questões que são de interesse imediato para as nossas démarches junto de organismos oficiais. Sem estudarmos as coisas como elas são, jamais estaremos à altura dos nossos objectivos. [Acrescentado à mão: Acabemos com a improvisação muito nos hábitos dos nossos colonizadores lusos.] 16 – Se conseguir visa, aqui dão-me passaporte para sair. Acho que a minha situação está clara no respeitante a sair daqui. Com visa e com dinheiro para a viagem, eu sairei daqui em um ou três dias. Eis tudo. Cumprimentos a todos, o melhor abraço para ti ass.) V. P.S. Não dês importância aos muitos erros que dei nesta carta. Estou com gripe e com uma dose chata de quinino-redoxon. [Acrescentado à mão, na margem: P.S. Recebi os cem manguços. Obrigado. Com as tentativas dos B. [Bouvier] de te agarrar o braço puxando o dedo que lhes deste, ficaste a saber por experiência própria em que se funda a minha «negativa» de pôr os B. em «santa e familiar comunhão» com os n/ problemas. Eu conheço-os melhor do que tu e de bem perto. Quem está atrás deles? A quem eles servem? Por que insistem eles, com espantosa continuidade, em furar caminhos pelo lado africano?] *** [Escrito à margem, por L. Lara: Devolve-me isto] Apenso a esta vai um projecto de credencial para ti. Essa credencial deverá ser traduzida em bom francês. Proponho que o Mário, como o que de todos nós é que conhece melhor a língua francesa, a traduza urgentemente para esta língua. No texto, repito o teu nome duas vezes. Essa repetição é necessária porque o teu nome tem de ser, inequivocamente, citado nos períodos mais importantes. Estes períodos são: aquele em que te apresentamos ao Comité e aquele em que pedimos a este para que faça fé, plena e inteira, em ti. A expressão «fé plena e inteira» é sacramental, faz parte da linguagem diplomática nessa matéria. Não modifiquemos o que não temos interesse em modificar. Numa credencial é obrigatório também citar a categoria do enviado e especificar o objecto geral da sua missão. Isto tudo está lá. Não se especifica, pormenorizadamente, o objecto da tua missão porque isto não é obrigatório para uma credencial. A tua missão é expressa por nós em termos gerais. A ti, compete-te, através da negociação cautelosa, habilidosa e inteligente, concretizar com as autoridades competentes do país os nossos interesses pormenorizados. Desta credencial, dactilografem original e quatro cópias. O trabalho dactilografado deve ser impecável, sem rascunhos, nem letras batidas, quanto mais não seja porque a apresentação é um dos melhores atributos de uma credencial. O original e as cópias dactilografadas devem ser assinadas da mesma maneira pelas mesmas pessoas. O original deve ser metido num envelope de linho (é o mais resistente); esse envelope deve ser fechado e lacrado, e sobre ele deve-se escrever o endereço do destinatário. O duplicado da credencial, deverás entregá-lo em envelope aberto, e pessoalmente, ao secretário do Comité tunisiano, pedindo-lhe, ao mesmo tempo, para seres recebido pelas autoridades competentes do Comité. Quando fores recebido por estas autoridades, deverás entregá-las o envelope fechado com o original da credencial. O triplicado fica para o teu arquivo. O quadruplicado fica em Paris. E o quintuplicado remete-lo a mim. Em todas as cópias e no original estampem o carimbo do MAC. Acho que é suficiente que os amigos de Paris assinem a credencial. Tu não assinas a credencial. Não é necessário que os amigos de Paris escrevam «secção de Paris»; isto é um pormenor da nossa organização que não interessa a ninguém na Tunísia. Estou convencido que com esta credencial e com a ajuda directa do amigo do «café romano»1 a tua tarefa será muito facilitada. Se for necessária uma credencial idêntica para Rabat e Cairo, pede. ass.) V.

Carta de Viriato da Cruz a Lúcio Lara. Tem agrafado um «Projecto de credencial para Lúcio Lara» (0007.000.064)

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