Carta de Lúcio Lara a Viriato da Cruz

Cota
0007.000.058
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel comum
Remetente
Lúcio Lara
Destinatário
Viriato da Cruz
local doc
Rep. Federal da Alemanha
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
6
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

Carta a Viriato da Cruz [dactilografada] Frankfurt, 26 de Novembro [de 1959] Meu caro Recebi só ontem a tua carta de 22, contendo o Manifesto. Antes que me esqueça, peço-te que me digas se recebeste a Présence que foi enviada em teu nome para casa da m/ família e que para aí remeti. Espero que tenhas também recebido a minha carta de 22 em que te dizia que tinha resolvido, depois de uma apreciação da questão com a Ruth e com o Rocha, pedir passaporte ao Consulado português. Estou já de posse do novo passaporte o que me faz pensar que nada consta a meu respeito nos consulados. É muito chato ter de recorrer a uma solução dessas precisamente quando tenciono subscrever um telegrama para o Secretário Geral, mas pareceu-nos ser a única chance para sair da Alemanha, onde agora já nem se põe o problema da economia, por já não estarmos a viver em casa da família. Ao que parece a vida é mais barata na Tunísia, segundo um artigo que lemos numa revista que descreve a viagem de um casal de Turistas. Eles davam o preço dos bons hotéis de lá que é metade do que estamos aqui a pagar numa pensão. Acresce como já te disse que a dar-se a circunstância de termos de esperar mais tempo ainda por uma solução do Ghana ou da Guiné, sempre estamos em País africano, onde ainda por cima se deve começar em breve a preparar a Conferência Africana. Também é possível que lá encontre o fio que nos leve ao apoio da Solidariedade Afro-Asiática. Deve haver lá encarregados de Negócios ou embaixadores dos países por que nos interessamos e deve ser portanto mais fácil pelo menos falar com eles. Um aspecto que ajudou a que decidíssemos por esta solução foi também a necessidade de nos desenrascarmos sem a interferência pouco desejável dos B. [Bouvier] que desde que eu aceitei que ele tentasse através do tal seu «amigo» arranjar-me uma entrevista com o embaixador em Bonn ou um visa de 21 dias para o Gh., ficou convencido que eu tinha depositado todo o m/ problema nas suas mãos e que eles é que me iriam arranjar soluções para tudo. Evidentemente pus-me sempre na retranca, para evitar até ter que arranjar pretextos e aldrabices para não os pôr dentro dos meus problemas. Analisando a seco a questão do pass português, creio que de qualquer modo ele vem a ser muito mais útil à nossa luta (na sua fase presente) do que qualquer outra solução que me imobilizaria; a menos que os nossos amigos nos enviassem passes como lhes pedimos, o que a acontecer, é possível que ainda demore. Em face da nova situação, repito, uma hipótese se me põe cada vez mais insistentemente. Entrar já em África, pela África do Norte. Para fazer o quê? 1 – Em primeiro lugar continuo a achar que devemos aceitar uma possível resposta favorável do Gh. ou da Gu. Aquele parece-me no momento mais conveniente, dada a existência oficial de um Bureau para as questões africanas, coisa que ainda não existe na segunda. Mas a Gu. deve constituir por outro lado uma experiência mais interessante para nós, dadas as condições estruturais quase nulas de que partiu. Não estamos neste momento em condições de escolher, pois tudo depende da aceitação deles. É certo que o Men. [Hugo de Menezes] está lá pois se dirigiu ao S.T. [Sékou Touré] creio que com a interferência do Committee of African Organisations e trabalha num Hospital. Há uma ou duas semanas partiu para lá a noiva dele, vinda de Lisboa. É um precedente favorável, como precedente é a aceitação em Gh. do Ventura [Holden Roberto]. Mas parece-me que nós devemos fazer todos os esforços para irmos para o mesmo local. Temos visto nesta curta fase «experimental» os inconvenientes e os atrasos que resultam de uma forçada correspondência que cada vez necessitará de ser mais cuidadosa frente a possíveis interferências. O Mário põe-me a questão de eu ir trabalhar pª a Guiné, como aliás pensava fazer quando abandonei Portugal. Mas essa questão pª mim só terá sentido se eu souber que tu também estás disposto a ir para lá trabalhar, e que as autoridades lá nos concedem pelo menos grande parte das questões que lhes pusemos no Memo. Pelo que escreves, depreendo que te é indiferente o País pª onde pretendemos emigrar, desde que ele nos assegure o cumprimento das tarefas impostas pela n/ luta. Eu penso assim, mas devo dizer que prefiro uma solução Gu. ou Gh. a uma solução África do Norte. 2 – Em todo o caso se na Tunísia encontrar possibilidades de trabalho que me facilitem ficar lá até obter uma solução concreta no Sul, estou decidido a aceitar. Na Tunísia CREIO haver boas possibilidades de contacto quer com os organismos panafr., como com os afro-asiát. e mesmo c/ aquele amigo com quem falámos no café romano1. Tenciono logo que chegue procurar pôr-me em contacto com os tipos do Sul, através de embaixada, quanto à Gu. e directamente quanto ao Gh. A estes penso que devo escrever (ainda uma vez) para a semana, dizendo que em virtude de não ter recebido qualquer resposta até agora, e não sabendo quanto tempo terei ainda de esperar por uma solução para a n/ questão, vejo-me obrigado por todas as razões a abandonar a Alemanha e ir para a Tunísia e a procurar outras saídas para os nossos affaires. Parece-me ser de lhes dizer que na Tunísia procuraria na Emb. do Gh. saber se eles para lá tinham comunicado qualquer coisa, antes de tentar novas démarches (o que aliás já lhes disse na última carta, embora desse a entender que continuava à espera de uma decisão deles e que portanto o que arranjasse teria um carácter provisório). Insistiria no teu caso que se me afigura complicado por não haver aí representação diplomática deles e tu não te poderes deslocar ao Ocidente. Isso faz-me crer que de duas uma: ou tu consegues que esses tipos te abonem um pass e depois seria apenas uma questão de visa ou então o que se me afigura que tem de ser mesmo, é necessário arranjar um pass africano para ti. É isto que eu penso que devo tentar resolver em Túnis, a obtenção de um pass para ti, seja de quem for. Esta carta pª o Gh. se estiveres de acordo que se escreva, podes tu fazer. Tens aí cópias das cartas deles e de quase todas que eu escrevi. Penso por outro lado que é de fazer nova insistência para a G. que nunca se fez. Parece-me que se podia escrever directamente ao «primeiro destinatário», através da Embaixada de Paris, relembrando o mem. e expondo a actual situação. Por outro lado, na carta do Gh. convém frisar a situação do Rocha, a quem eles já deram autorização pª entrar, sem concretizar se lhe concediam a bolsa pedida, pondo como condição ele pagar a passagem, mas sem sequer lhe mandarem o visto requerido já que não se pode embarcar sem esse visto. Cada vez que penso naqueles tipos irrito-me. Ainda não deram uma única resposta CONCRETA a tudo o que se lhes tem perguntado. Afinal para quê os curriculum vitae e as fotos há tanto tempo enviadas? 3 – Em Túnis há por outro lado, como sabes, o aspecto da futura conf. Af. Uma questão se nos põe desde já. Perante a indiferença «aparente» pelo menos, com que o Comité executivo da Conf. de Accra tem recebido as nossas cartas como actuaremos em relação a esta conferência? Creio que tem interesse requerermos a aceitação de delegados nossos. O facto de ela se realizar dentro de dois meses obriga-nos a que não descuremos uma preparação eventualmente necessária. Eu estava a alinhavar e continuarei a fazê-lo, dados que servissem para uma Mensagem ou uma intervenção, conforme o carácter que tomasse a n/ representação (oficial ou não). Como sempre, porém, tenho presente que de todos nós tu és o mais verdadeiramente armado do convívio do nosso Povo, necessário para exprimir os seus mais profundos anseios. Se estivéssemos juntos, podíamos de comum acordo e com elementos que os nossos companheiros de Ps. [Paris] e de La. [Lisboa] trabalhar nessa questão. Isso não acontece e a coisa tem que ser feita. Sem querer descarregar para cima de ti mais um trabalho, sugiro que pelo menos ordenes os tópicos que entendes devam figurar em semelhante documento. Eu poderia redigi-lo com os tópicos que teria, enviar-te-ia para Paris para ser corrigido no que fosse preciso e aumentado, e depois enviaríamos o documento. Se por acaso algum de nós lá estivesse e pudesse lê-lo, fá-lo-ia, caso contrário seria junto, creio, aos documentos da conferência. De qualquer maneira penso que independentemente do que eu puder a tal respeito fazer em Túnis, temos de voltar a comunicar com esse «silencioso» comité executivo para ver como é que eles encaram o aparecimento de uma delegação nossa em Túnis. É de não esquecer que o Barden na sua última carta diz que nos manda (ainda não chegaram) os documentos últimos da Conf. de Accra pª os «estudarmos e ficarmos a conhecer o que pensa o Hon. Chairman acerca das questões africanas». A propósito o tratamento do Nk. [Kwame Nkrumah] como deves já ter reparado é Rt. Hon. (Right Honourable) e não só Hon. como nós o tratávamos. Bem sei que nós nos dirigíamos ao Chairm. de um partido, mas é possível que os tipos com os seus hábitos «britânicos» se chateiem com estas coisas. Aliás o Barden insiste no Rt. Mas como ia a dizer, o facto de nos enviarem os documentos das últimas reuniões do Bureau da Conf. pode querer «aparentar» dar uma satisfação ao que lhes temos pedido, mas considero que se assim for essa satisfação não é válida, porque emana de um órgão do governo do Gh. (o B.A.A.) e não da própria Conf. Creio que, ainda quanto à Conferência, seria de considerar a distribuição do Manifesto, traduzido em francês, ou pelo menos de uma síntese compreendendo os pontos fundamentais desse Manifesto. Sobre ele pronunciar-me-ei noutra ocasião, digo, noutro lugar desta carta. 4 – Ainda quanto a Túnis seria bom, a meu ver, tentar continuar o estabelecimento de pontes que o Abel [Amílcar Cabral] tentou noutras paragens. Além de ver as possibilidades de uma mais íntima colaboração com os afro-asiat., seria de encarar uma melhor aproximação e troca de pontos de vista a propósito do café romano, em que inclusivamente se analisaria o problema à luz dos recentes acontecimentos. Quanto ao telegrama aguardarei ainda até ao fim da semana carta de Paris embora já saiba que eles estão de acordo, pelo menos o Mário, receio que eles proponham quaisquer modificações interessantes, ou sugiram algo mais a considerar. Por outro lado, ainda não se entrou na alínea em que habitualmente se discute a questão portuguesa, embora há três dias o representante da Guiné, Ismael Touré, se tenha referido ao caso portuga. Estamos pois mesmo na boa ocasião de enviar o telegrama. Fá-lo-ei segunda feira à tarde, depois de vir o correio. Se receberes esta no sábado, e ainda quiseres dizer algo a propósito, creio poderes escrever expresso pª aqui para a pensão. (L. LARA – HOTEL-PENSION SATTLER, BEETHOVENSTR. 46). Creio mesmo ser preferível utilizares esta morada até aviso em contrário, pois eu só vou a casa da família de dois em dois dias buscar o correio e pode ser que haja conveniência em responder logo no mesmo dia. Continuo na expectativa de te permitirem que continues aí. Hoje junto mais 100 DM. Tenciono ver a possibilidade de trocar o dinheiro em cheques de viagem e enviar-te pelo menos uma parte dele, ou então conservar esses cheques em meu poder para eventualmente te enviar quando fosse necessário. Creio ter-te dito que não penso ser possível recebermos mais massa por estes tempos mais próximos dos n/ amigos, porque sei o que representa para Lx. conseguirem-se 10 contos. Tenho oportunidade de enviar com certa segurança para Lx. um resumo das nossas actividades e da actual situação. Penso também fazer lá chegar o projecto de Manifesto, para que na medida do possível eles nos enviassem o seu parecer. Esta chatice das comunicações ainda não está bem resolvida. Vou sugerir que venha um tipo de direcção cá fora aproveitando as férias de Natal, para se assentar em moldes precisos de trabalho, que são difíceis de estabelecer por carta. Quero pedir-lhes também que respondam às proposições formuladas por nós no relatório que lhes enviámos em Setembro, por nós aí redigido em agosto. Tenciono pôr-lhes além de tudo os problemas de tipos nas condições do Horta e da Ruth, sem falar em nomes. Resumir-lhes-ei toda a n/ experiência recente que nos leva a rever determinados pontos em que assentava a organização, nomeadamente a necessidade de um aparecimento mais público, com que estou de acordo, convencido mesmo que só assim o Mac conseguirá ser considerado pelos n/ povos. Pedir-lhes-ei que tentem ajudar-nos a estabelecer com eles contactos profícuos que permitam que tomemos decisões apoiadas no seu acordo, sendo para isso necessário que se estruture o Mac nas melhores condições. Sugerir-lhes-ei o essencial das tuas proposições de há tempos, quanto a organização. Falar-lhes-ei do problema do material impresso, por ti ultimamente exposto. Tentarei saber o que se passou com os subterrâneos, lá. Estou de acordo contigo na necessidade de haver material impresso. É um problema já por nós discutido aqui, noutros moldes embora. Toda a n/ luta em tentar conseguir uma «base de operações» tem em vista esse problema, entre outros. Enganas-te ao dizer que houve discordâncias quanto aos «Acordos» de Paris, de 1957, em Lx e que essas discordâncias estavam na base de um incompreensível aborrecimento por tu não o teres feito lá. Isso não é verdade e quem te informou informou-te mal. Esses documentos ficaram sempre em poder de quem os recebeu. Essa pessoa ou por questões de segurança pessoal, ou por impossibilidade (em determinada altura desapareceu de Lisboa) nunca os trouxe ao n/ conhecimento a não ser na primeira reunião em que ficou decidido que eu iria a Paris. Refiro-me claro ao Abel. Essa primeira organização assentava em bases falsas, pelo menos quanto a Lisboa. Dela faziam parte meia dúzia de tipos que na sua maior parte tinham perdido o contacto com a nova geração e que portanto não conseguiram alargar verdadeiramente o Movimento. Isso conseguiu-se apenas com a fusão de que saiu o Mac. Em Lisboa é muito difícil a malta juntar-se, já pela dificuldade de arranjar um local insuspeito, já porque se torna sempre difícil encontrar dias e horas convenientes para todos. Claro que gente disposta a lutar conscientemente não pode deixar-se vencer por tão pequenas dificuldades. Mas tudo isso leva tempo a adquirir e receio bem que ainda se não tenha saído dos moldes antigos de trabalho, que poucos frutos davam. Para te falar com franqueza e sem quaisquer prosápias, creio que uma das tarefas que aos que estamos de fora cabem, particularmente, é precisamente puxar a malta a um trabalho cada vez mais responsável e adulto. O ambiente em Portugal é por si próprio pouco favorável ao «épanouissement» de métodos eficazes de luta. Eu tenho bem a consciência disso. Que os métodos actuais têm de mudar, isso é incontestável, sabemo-lo bem. O que é preciso é que mostremos aos n/ camaradas de Lª a razão por que pensamos isso e nos esforcemos por os fazer discutir os n/ pontos de vista, não pelo prazer de discutir, claro, mas no desejo firme de contribuir para o progresso da Luta. Quanto a todas as outras observações que fazes, deves saber que estou de acordo e que na medida do possível me esforçarei por as levar à prática. Li já duas vezes o Manifesto. Numa delas fizemos aqui uma leitura conjunta seguida de uma pequena apreciação. Agora tencionamos discutir mais pormenorizadamente. Não te falarei hoje no assunto, pois teria talvez de me alongar e não posso ainda dizer muito de definitivo quanto ao meu parecer. A m/ primeira impressão (é só uma primeira impressão) é que ele contém tudo o que deverá conter um Manifesto deste género. Talvez interessasse ter em conta, concretizando, algumas das lutas mais conhecidas dos povos africanos sob dominação portuguesa. Refiro-me por ex. ao caso de S. Tomé, ao caso de Catete, etc. Por outro lado parece-me também ser de sistematizar, pondo-os mais em evidência, os objectivos do Mac. Tentarei explanar melhor estas considerações numa próxima carta. Não gosto de fazer apreciações assim de um modo abstracto. Acho em todo o caso que não faço mal em mandar já este projecto pª Lx. se for possível, para que a malta lá sinta que se trata de um problema importante, cuja solução é necessária em breve. Nada sei do que se passou c/ o Marcel[ino]. Sei que ele foi à Bélgica e penso que o fez para ter mais três meses quando regressar a França. Tentarei saber se ele recebeu as tuas correcções. Espero que tenhas recebido o teu trabalho e a cópia do capítulo que te interessava dos ANAIS de ANGOLA. Consta em Lisboa (imagina a estupidez) que o Governo me teria convidado e a mais três (?) para regressarmos a Portugal. Esta notícia vem-me do Ernesto [E. Lara Filho]. Ele diz-me também que a «coisa em Angola continua dura» e que o Ferreira Mendes (não conheço) voltou a ser preso, estando agora na Casa de Reclusão. Bem, não me alongo. Escreve logo que possas e diz-me o que pensas sobre a n/ abalada pª a Tunísia. A não haver desacordo da v/ parte, penso abalar dentro de duas semanas, para dar tempo ainda a tratar do estabelecimento de certas ligações. Saudades da Ruth. Um grande abraço

Carta de Lúcio Lara (Frankfurt/Main) a Viriato da Cruz

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