Carta de Lúcio Lara a Viriato da Cruz

Cota
0007.000.056
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel comum
Remetente
Lúcio Lara
Destinatário
Viriato da Cruz
local doc
Rep. Federal da Alemanha
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
4
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Carta a Viriato da Cruz [dactilografada] 22.XI.59 Caro Viriato Apenas devo resposta a um telegrama teu, ao qual aliás tinha respondido na véspera, ou ante véspera, sem saber. Creio que como de costume deves ter recebido essas notícias, em que eu propunha novas questões a considerar no telegrama, que é de facto no entender de todos importante. Não sei o que entretanto terás decidido acerca disso, mas aguardo as tuas notícias. Veio uma carta do Committee of African Organisations que me esqueci de referir a última vez que te escrevi. Mostram-se dispostos a realizar as démarches por nós pedidas e interessados numa continuação de contactos. Saiu no New Statesman um artigo do BD [Basil Davidson] sobre as prisões em Angola. Logo que possível mando-te uma cópia, ou se conseguir, um exemplar. Exceptuando umas alusões ao Henrique Galvão e portugueses de oposição, o artigo tem interesse. Recebi ontem essa carta do M. [Mário de Andrade] para te enviar. Ele nada diz do texto do telegrama, pois segundo me comunicou ainda não foi à direcção de confiança buscar a carta que lhe escrevi sobre o assunto e outras questões importantes do mac. Aliás ele mostra-se descrente das possibilidades actuais do mac. Tenciono escrever-lhe, dando-lhe o meu parecer sobre este assunto. Penso que não há motivo para descrermos, antes pelo contrário. O Mac é de fundação recente e, bem sei que devido a auxílios extras, tem já um activo positivo nas tarefas que se impôs. Se mais não se fez, foi porque na nossa ingenuidade política esperávamos obter mais rapidamente um apoio dos nossos irmãos de África, apoio esse que até agora tem sido igual a Zero. Mas isso não é culpa do mac e pode ser que também não seja culpa dos n/ irmãos. Creio que as deficiências inegáveis que existem devem tentar sanar-se, dentro das n/ possibilidades, quer através de uma reforma estrutural, quer pela adopção de métodos mais eficientes que requerem outra situação que não aquela em que nos encontramos. Dentro do espírito em que temos trabalhado, e na impossibilidade de contactar com o Sékou Touré, quando aqui passou, resolvi enviar-lhe um telegrama em nome do mac em que assinávamos os dois. Eis o texto: AU NOM DU MOVIMENTO ANTICOLONIALISTA ORGANISATION NATIFS PAYS AFRICAINS SOUS DOMINATION PORTUGAISE SALUONS EN LA PERSONNE DE VOTRE EXCELLENCE PAYS ET PEUPLE GUINÉENS STOP ACCORDONS NOTRE MEILLEUR SOUTIEN VOS EFFORTS FAVEUR UNITÉ AFRICAINE STOP SOUHAITONS BRILLANT SUCCÈS VOTRE VOYAGE STOP VIRIATO CRUZ ET LÚCIO LARA1 O telegrama foi barato (5 marcos). Pareceu-me que não sendo possível cumprimentá-lo pessoalmente, como fez por exemplo em Londres o C.A.O. [Committee of African Organisations] seria significativo que não deixássemos de aparecer mesmo em telegrama. Comuniquei à malta de Paris. Quanto à minha situação ela complicou-se deveras. A possibilidade remota de um fremdepass2 torna-se bastante restritiva, na medida em que a minha saída da Alemanha passa a estar condicionada ao Governo alemão e ao Governo do País para onde eu quisesse ir, dado que passa a ser um pass sem entrada livre numa série de países. Na impossibilidade de trocar opiniões com toda a malta, tu e a malta de Paris, e perante o marasmo, ou a aparente indiferença em relação ao que se está a passar com os países nossos amigos, resolvi discutir o problema com a Ruth e com o Rocha para tomarmos decisões que se impõem sejam urgentes. Eis o que mais ou menos está resolvido: 1 – Dado que a resposta de Ghana não veio até ao dia 15, data em que eu anunciava a m/ provável partida para Paris, em busca de solução junto da Guiné, Marrocos ou Tunísia, pareceu-nos não ser de esperar uma resposta breve a tempo de me apanhar ainda com o pass válido. Acresce que eles deixaram caducar o teu pass apesar do telegrama enviado a 7 pedindo uma resposta. 2 – A tentativa de falar c/ o Embaixador do Ghana resultou infrutífera, porquanto ele está em repouso. Conseguiram falar com ele a meu respeito pedindo um visa, mas ele disse não ter poderes pª o conceder; disse contudo ter pedido esse visa pª Ghana, o que não deve adiantar grande coisa, pois se chegar, deve chegar com o pass caduco pelo que eu não me poderei deslocar. 3 – Tentei aqui, sem efeito uma démarche pª falar c/ o Embaixador da Guiné; dados os cuidados de que se revestiu a passagem de Sékou em Francfort, todas essas tentativas resultaram nulas, o que me levou ao recurso do telegrama, no qual por razões que me parecem óbvias, mais não disse... 4 – Embora ele tenha prometido comunicar às autoridades do seu país o m/ caso, nada indica que a resposta esteja cá até ao fim do mês. Ele deve estar em viagem, segundo a carta que recebi ontem do Mário. 5 – O fremdepass, não sendo certo, será uma solução limitativa, porque nessa ocasião ficaremos os dois imobilizados à espera duma milagrosa solução dos países amigos, que, repito, pode bem demorar outros tantos meses. 6 – A nossa situação aqui agravou-se com a saída de casa da família, dada a despesa que somos agora obrigados a fazer. Pensamos tentar a solução de Túnis, para onde o pass português é válido sem visto, não sabendo nós ainda se não é preciso, como no caso do Marrocos, que ele seja válido por 3 meses. Nada nos garante porém que, dada a situação tunisina, com os exilados argelinos, uma situação ilegal seria bem aceite ou não. 7 – Acresce que haveria toda a vantagem em estar já alguém em Túnis, dado que dentro de dois meses se realiza lá a conferência africana. E a termos que esperar por uma resposta da G.[uiné] ou do Gh.[ana] mais valia esperar lá. 8 – Dado ainda que estando o pass no fim, tanto faz ele caducar como ser apreendido pelas autoridades portuguesas, e que, se é certo como eu estou de acordo contigo, que nós devemos fazer o possível por negarmos a nacionalidade portuguesa e não nos aproveitarmos das vantagens deles, é também verdade que até hoje sempre temos vivido com o pass português na esperança de o podermos deitar fora logo que possamos obter um outro pass o que infelizmente não aconteceu, não seria de desprezar a hipótese de tentar obter um pass português, que permita pelo menos sairmos da Alemanha para África, tentando logo que possível obter um pass africano. Em face de tudo isto, resolvi pedir amanhã o pass português; nada garante que eles mo concedam. Porém se concederem, resolvemos que eu e a Ruth partimos dentro de uma ou duas semanas para Túnis, onde de qualquer modo a vida é mais barata do que aqui, pelas informações que colhemos. Lá tentaria contactar aquele tipo que conhecemos no Congresso3 e fazer as démarches necessárias junto de embaixadas de países africanos, a do comité afro-asiático (se lá tiver delegados) e assim apressar uma solução dos n/ problemas, principalmente o teu caso e também o do Rocha. Entretanto escreveria pª Accra comunicando a minha nova morada, e para a Guiné, tentando outras soluções para nós. Pª o Rocha não convém a G., por não ter Universidade. Se me recusarem o pass, estou ainda indeciso se pedirei asilo político aqui, ou aí. À primeira vista a parte de cá oferece-nos particularmente mais vantagens em comunicações. Mas há ainda o aspecto da política alemã muito «amável» pª com Portugal, o que pode ser causa de sérios embaraços. É certo que há cá muitos argelinos nessas condições. Enfim ainda estou bastante indeciso, sobretudo porque não descortinei ainda nos países a que pedimos auxílio, uma vontade resoluta de fazerem algo. Acresce que a tua futura situação, desconhecida para mim, me faz pensar que tu ainda não encontraste nenhuma solução concreta pª ela, por falta de um decidido apoio desse lado. Por outro lado aqui há embaixada do Gh. e aí não; e o Sékou creio não estar com vontade de ter relações diplomáticas com esse lado. Por tudo isto, resolvemos optar pela solução que particularmente me repudia, mas que em boa verdade me pareceu depois de discutirmos ser aquela que para já pode ser útil para todos os que aguardamos sair de um impasse. Será uma traição de princípios? Parece-me por um lado, por outro creio sermos levados pelas circunstâncias a adoptar esta atitude que há oito meses pensávamos desnecessária, confiados na compreensão dos n/ camaradas africanos. Há passaportes falsos. Talvez muitas vezes tenhamos de nos servir deles. Concordamos em que este, se for concedido, pertencerá a esta categoria. Comunicar-te-ei breve o resultado das n/ diligências. Irrita-me não podermos estar juntos para melhor discutirmos estas questões. Tanto estamos a falar em ti que o Paulinho perguntou agora se tu vinhas cá. Li o teu trabalho. Parabéns. Está uma obra de envergadura que deve prosseguir. Até para isso precisamos de estar juntos, pois entre os meus livros tenho algo que julgo te deverá interessar. Infelizmente está tudo num armazém encaixotado. Como creio ter-te dito na última carta, parece-me que o trabalho tem «pontos de descontinuidade», saltos que se devem harmonizar melhor. Creio também que há questões que carecem de maior desenvolvimento, que poderá ser obtido pelo estudo de outras obras. Isso serão questões que tu próprio depois de algum tempo e depois de consultar outros dados verás por uma cuidada leitura. Uma crítica de um ponto de vista histórico não está ao m/ alcance, dada a m/ pouca cultura dessa matéria. Sente-se porém que a obra tem vigor e é quanto a mim muito importante. Impõe-se que a obra continue, para que comece finalmente a publicar-se a «verdadeira» história do nosso povo frente à colonização portuguesa. Sempre que possível anotei pequenas emendas que talvez te tenham passado desapercebidas na rapidez c/ que foste obrigado a trabalhar. Devolvo-te agora, e junto uma cópia do capítulo que trata dos «contratos de Angola» tirada dos Anais, pelo Rocha, a m/ pedido. Espero que te seja útil. Li há tempos que o Mingas [André M.] tinha sido retirado do serviço, por estar preso às ordens da Pide. Entretanto estavam a preparar um processo disciplinar. Creio que vinha no Jornal do Congo. Por hoje, nada mais. Escreve e diz o que pensas de tudo isto. Que há quanto ao telegrama? Precisas de mais dinheiro? Um abraço da Ruth. Abraça-te o

Carta de Lúcio Lara (Frankfurt/Main) a Viriato da Cruz

A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

Nomes referenciados