Carta de Viriato da Cruz a Lúcio Lara

Cota
0007.000.055
Tipologia
Correspondência
Impressão
Manuscrito
Suporte
Papel comum
Remetente
Viriato da Cruz
Destinatário
Lúcio Lara
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
4
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Carta de Viriato da Cruz
[dactilografada]

22.11.59
Meu caro

Respondo à tua carta de 16 do corrente.
1 – Estou de acordo com a alteração feita ao meu projecto de telegrama. Como Portugal não é, segundo suponho, cosignatário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, não sei se vale a pena falar nesta no texto do telegrama. Acho que devemos assinar nomes e apelidos. Entre o meu primeiro nome e o apelido, tira o da.
2 – Sobre a questão do programa: Prometi e fiz o que pude. Junto te envio o meu projecto. Acho, porém, que não devemos chamar a esse documento de Programa. Geralmente, um programa dimana de um Congresso de uma organização, tem um carácter sintético, ordenativo, dirige-se essencialmente aos membros da organização, traça a linha de acção e de conduta de uma organização.
Prefiro que a esse documento lhe chamemos Manifesto. Este reveste geralmente a forma de uma declaração tornada pública por uma organização. O Manifesto tem um carácter interno, mas pode também destinar-se a um público estranho à organização. Enfim, um Manifesto pode integrar e ultrapassar os limites de um programa. Além disso, um Manifesto, sem perder autoridade, dimana sempre do organismo directivo de uma organização e não de um Congresso.
Para facilitar o modo de, futuramente, nos referirmos a ele, sou de opinião de que devemos chamar-lhe «Manifesto de Novembro»1.
3 – A minha posição actual (já não digo opinião) sobre a maneira de trabalharmos é, no essencial, esta: Devemos imediatamente, ultrapassar os limites da técnica de trabalho de um clube. Não podemos mais continuar a fazer um trabalho apenas entre nós, entre os membros da organização, ou entre esta e algumas chancelarias e algumas outras organizações. Isto tudo está bem. Mas falta-nos algo importante: temos também de fazer um trabalho público en tant que organização, en tant que MAC. É esta a única maneira de projectarmos o MAC no exterior, de criarmos no exterior a autoridade do MAC. Um dos meios para isso consiste na publicação, em letra de imprensa, tipográfica, de material oficial do MAC. Outro meio consiste na intervenção aberta, junto de instâncias internacionais. Esta intervenção, já que não pode ser pessoal por motivos financeiros e jurídicos até, pode e deve ser feita por telegramas, memorandos, cartas, mensagens, comunicações. Todo o material ou quase todo o material dessa nossa intervenção deverá igualmente ser publicado em letra de imprensa, em letra tipográfica, sob a forma de panfletos, brochuras ou colectâneas.
A todo o nosso material tipografado devemos dar um destino público. Quer dizer: deveremos fazer chegar esse nosso material tipografado aos nossos membros, aos nossos povos, às outras organizações dos nossos países (exemplo: UPA, PAI, etc.) às organizações similares estrangeiras, à imprensa internacional interessada no problema colonial, às chancelarias dos países africanos e asiáticos, às delegações dos países africanos e asiáticos junto da ONU, etc.
Para melhor efeito, grande parte do nosso material deverá ser traduzido ao menos em francês; e essas traduções em francês deverão ser igualmente tipografadas, impressas.
O processo do desenvolvimento de uma organização, que quer cumprir toda a sua missão, necessita de passar pelas fases em que ela se torna conhecida pelo público internacional, em que ela impõe a sua individualidade e a sua personalidade entre o conjunto das organizações políticas conhecidas, em que ela ocupa, efectivamente, um lugar próprio, seu, de direito, no conclave das organizações já bem reconhecidas; e, finalmente, em que ela, utilizando os direitos da sua posição, convoca, incita, convida, num tratamento de igual para igual, as outras organizações similares para apoiarem as suas pretensões.
Se quisermos um exemplo moderno desse processus, bastar-nos-á pensar um pouco no desenvolvimento do movimento argelino. Hoje é governo, reconhecido por altas instâncias internacionais, e ocupando, de direito, um lugar entre muitas delas.
Ora, o que pretendemos nós? Mendigar independência para os nossos povos? Pedi-la, mesmo em termos correctos? Tudo isso seria ingenuidade, incompatível já com a maturidade da nossa condição de homens adultos. Nós queremos criar Estados independentes. Em matéria política este objectivo é o mais sério dentre todos. Mas para isso, como sabemos, temos de conquistar, pela luta, que sabemos já difícil e áspera, mas que terá de ser contínua, inteligente e indomável, temos de conquistar os meios para chegarmos a esse fim. Parte desses meios está na realização por nós mesmos, pelo nosso esforço, daquelas fases de projecção do MAC que apontei acima. Sem isso, jamais sairemos de um círculo vicioso.
Além disso, a nossa projecção internacional, pelos meios que apontei, permitir-nos-á provar publicamente, com ruído, abertamente, provar diante dos nossos povos a nossa luta em defesa dos seus interesses. Os povos só apoiam àqueles que lutam pelos seus interesses. Mas os povos não podem adivinhar quem são os que lutam autenticamente pelos seus interesses. Os nossos povos necessitam também, para esse seu conhecimento, de sinais concretos da nossa acção. Um dos sinais concretos é a documentação oficial tipografada de uma organização.
[Acrescentado à margem, à mão: Nada do que digo aqui pretende subestimar o que já fizemos até aqui. Falo aqui com os olhos orientados para frente e não para trás.]
Repito: necessitamos de, urgentemente, ultrapassar a técnica de trabalho de um clube. Temos de crescer; temos de auto-afirmar a nossa natureza; temos de atingir rapidamente os níveis compatíveis com a natureza dos nossos objectivos e da nossa vontade.
4 – Outra questão importante: temos de acabar com o carácter impreciso, sem limites claros, indefiníveis, de alguns aspectos do MAC. Por exemplo: Qual é ou qual foi a posição definitiva de Lxa. diante dos acordos (Estatutos, Programa, Declaração de Princípios e Resoluções) feitos, há dois anos, em Paris? Eu soube que houve discordâncias em Lxa. sobre os mesmos. Soube ainda que na base dessas discordâncias se encontrava um incompreensível aborrecimento pelo facto de eu não ter feito esse trabalho com os nossos amigos de Lxa quando passei por essa cidade. Os amigos de Lxa provaram assim não terem dado a mínima atenção ao facto de, alguns dias depois da minha partida de Lxa, as autoridades lusas terem procurado por mim. Eles não viram que, cumprindo disciplinadamente, o que me fora ordenado na terra, a minha conduta tinha o fundamento que a busca das autoridades lusas provou depois.
Em resumo: Essa preguiça de compreender as coisas com a ajuda de todos os elementos que a realidade nos oferece, essa mistura de sentimentos pessoais com interesses colectivos, e essa falta de preocupação de se chegar sempre a UM ACORDO GERAL, bem definido, diante do qual toda a gente se defina sem equívocos, – tudo isso não pode continuar a existir entre nós.
Nós não formamos um Círculo de beneméritos, um Círculo anarquista ou uma Sociedade de bem-pensantes. Com o nível das nossas capacidades reais e em crescimento, nós somos uma Organização (digo bem Organização) de combate para a conquista da liberdade de povos e para a formação de Estados independentes. As nossas pretensões e o cumprimento das nossas obrigações, levar-nos-ão, fatalmente, a criar, entre nós, os organismos e o espírito próprios de um governo. Não há governo sem órgão central, sem órgãos de periferia, sem força organizada. O espírito desses organismos terá de ser formado pela posição clara das pessoas, pela disciplina, pela autoridade das nossas ideias e pela autoridade pessoal dos nossos dirigentes. Sem o exercício pleno e real desse espírito todos os organismos serão sem vida.
Para vencermos a nossa posição actual precisamos de acabar, energicamente, com o espírito de concorrência pessoal que ainda existe entre nós e com essa posição contraditória das gentes que consiste em estas se suporem integradas numa organização com as nossas características e, ao mesmo tempo, se suporem inteiramente livres para disporem de si mesmas. Considero esta posição como a expressão mais intolerável da indisciplina dos membros de uma organização. Nesta situação, como poderá a nossa organização, como é indispensável, ordenar (digo bem: ordenar) missões aos seus membros? Como poderá a nossa organização pedir, como toda a autoridade, contas pela actividade marcada de cada um dos seus membros? Quem são as pessoas que têm autoridade para pedir essas contas? Em nome de que princípios e leis, com autoridade, poderão essas pessoas pedir contas?
Não estou a levantar problemas académicos, teóricos. As questões que levanto são essenciais e vitais para uma organização como a nossa. Sem definição clara de organismos e pessoas, sem autoridade de uma doutrina, sem autoridade de pessoas responsáveis, sem disciplina, sem limitação da liberdade individualidade [sic] diante dos interesses colectivos, sem a liquidação da concorrência pessoalista, sem tudo isto não seria possível mesmo o colonialismo luso, o domínio efectivo luso, a actividade armada e repressiva lusa. Como poderemos nós vencer o FACTO luso sem possuirmos nós também, por nossa parte, meios com os mesmos níveis e com níveis superiores aos dos lusos? Sejamos realistas. O inimigo é o nosso melhor mestre – assim pensam os modernos revolucionários chineses, e este princípio é claro na sua evidência.
Espero que penses e faças pensar os outros companheiros nas ideias que exponho nesta carta. Melhor ainda: agradeço não lerdes esta carta como se ela fosse apenas uma carta privada entre dois amigos que discutem, com espírito académico, problemas de que são simples amadores.
Eu falo sério.
5 – Deram-me 15 dias de séjour, mas não me disseram que depois desse prazo eu estaria obrigado a deixar o país. Quer dizer que, em caso de necessidade, não está posta de parte a possibilidade de eu pedir uma prorrogação de séjour. Dar-ma-ão? Não ma darão? Eis o que ainda não posso responder.
Mas o que pretendo eu? Não pretendo ficar aqui, nem mais um dia, logo que saiba que tenho possibilidades para ir para um país africano livre. Esta é a minha posição fundamental, permanente. Creiam nela e contem sempre com ela. Não estou engajado aqui em nenhum emprego, com nenhum interesse, nem com nenhuma mulher (para fazer rir um bocado!). Tenho-me comportado de maneira a não prejudicar a minha possibilidade de uma mobilidade rápida em favor dos nossos interesses colectivos.
Aqui é-me, evidentemente, impossível tratar algo no sentido de conseguir uma entrada e domicílio em África. Não há aqui organismos qualificados e representativos de países africanos livres, para esse meu fim. Eis por que aguardo uma solução vinda do exterior. Talvez esteja em erro; mas neste caso agradeço um conselho.
6 – Porque é que o Marcelino recebeu ordem de abandonar o país onde está? Qual é a situação actual dele?
No dia 10 do mês corrente, remeti ao Marcelo [Marcelino dos Santos], do outro lado da cidade, uma carta por via aérea e registada, contendo as correcções à tradução do meu relatório ao Congresso de Roma. Agradeço que procures saber se ele recebeu essa carta, pois não gostaria que o meu relatório fosse publicado com as incorrecções de ideia que ele apresenta na forma conhecida.
7 – O telegrama para o secretário-geral tem interesse para a nossa causa e é, por outro lado, uma expressão da nossa obrigação moral perante os nossos compatriotas. Se diante dos massacres, das torturas, dos aprisionamentos dos nossos compatriotas nós formos ainda a discutir sobre a utilidade, a oportunidade e o interesse de uma intervenção aberta e firme da nossa parte, pergunto: quando será então que a nossa acção poderá ser útil, oportuna e vitalmente interessada?
Nós conhecemos os nomes das pessoas em prisão, conhecemos mais ou menos o número de assassinados, sabemos que dentre as pessoas aprisionadas estão muitos elementos essenciais, indispensáveis ao nosso combate, sabemos que essas pessoas têm atrás de si um trabalho positivo feito em condições difíceis. Ora estes factos não são bastantes para mobilizar o total da nossa emoção, dos nossos sentimentos e das nossas energias para uma intervenção aberta, firme, com fúria instintiva, em favor dos nossos irmãos? Quando os alicerces mesmos da casa que somos obrigados a habitar começam a ruir, haverá ainda lugar para se discutir, um momento sequer, no perigo das nossas vidas?
Os factos e a situação actuais dos nossos países é o coração da nossa razão de ser e de agir.
8 – Peço-te que não tomes uma só palavra desta minha carta como um ataque contra a tua pessoa. Exprimi-me com um total sentimento construtivo. As críticas que fiz, exprimi-as tendo em vista, na minha consciência, as situações de facto existentes entre nós. Não enderecei, em consciência, nenhuma das minhas apreciações a esta ou àquela pessoa. Isto não quer dizer, porém, que tenha a ilusão de que o amelhoramento [sic] das nossas situações de facto possa ser realizado sem uma acção destinada a amelhorar a psicologia, a ideologia, e a conduta das pessoas: da minha e das de muitos dos meus companheiros.
Saibamos aliar uma amizade sem suspeitas à expressão franca de um desejo total de progredirmos na acção rápida.
9 – O trabalho que fiz, e que tendes em mão, não está na verdade completo. A unidade que lhe falta, e a que justamente te referes, precisa de ser conseguida: mas creio ser impossível que ela venha [a] ser total, pois esse trabalho não pretende historiar, com sequência, a colonização lusa, mas sim ressaltar, revelar, criticar e ajustar à nossa óptica alguns aspectos da colonização lusa. Construindo esse trabalho com aspectos de uma realidade, ele terá necessariamente de enfermar de um certo carácter parcelar.
Que um trabalho desse género tem importância para nós é inegável, e afirmo-o sem vaidade. Antes de tudo, eu mesmo aprendi muito ao escrevê-lo. A minha consciência de combatente contra o colonialismo luso ganhou muito em convicção com o trabalho referido.
Uma convicção adquirida sobre a crítica justa de factos actuais, mas assente, por sua vez, sobre uma apreciação falsa ou incompleta dos factos passados – uma convicção assim baseada não é nem pode ser sólida. Sobre o passado do colonialismo luso e sobre a história africana, a imensa maioria dos nossos compatriotas, principalmente os que fizeram estudos em escolas lusas, tem um conhecimento respectivamente falso e nulo.
Cumprimentos a todos os amigos. Beijos ao Paulinho.
ass.) V.

P.S. Por favor, para meu sossego, acusa na volta do correio, a recepção desta carta e dos documentos juntos. Vão duas cópias deste (original e duplicado).
V.

Carta de Viriato da Cruz (Berlim) a Lúcio Lara

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