Carta de Lúcio Lara a Mário de Andrade

Cota
0007.000.050
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel comum
Remetente
Lúcio Lara
Destinatário
Mário Pinto de Andrade
local doc
Rep. Federal da Alemanha
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
4
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Carta a Mário de Andrade [dactilografada] Frankfurt, 14.XI.59 Caro Mário Há muito que estou pª vos escrever uma grande carta; a hipótese porém de ter de ir aí levou-me sempre a reservar pª outra ocasião o transmitir-vos de viva voz o que desejávamos. Como creio já ter referido os últimos acontecimentos em que o mac tem tomado parte activa, mostraram que a sua estrutura actual não permite uma solução satisfatória dos imensos problemas que lhe estão a aparecer e que se espera venham a aparecer. Por exemplo uma das questões mais salientes é a falta de contacto que existe entre nós e a sede o que dificulta uma actuação colectiva e concordante. Já em tempos fizemos uma sugestão para a sede que se elegesse um executivo a fim de podermos actuar com maior liberdade de movimentos. Até hoje infelizmente não obtivemos resposta. Por outro lado impõe-se o estabelecimento de normas que regulamentem o comportamento dos Membros e especifiquem tarefas e obrigações de comissões, assim como é necessário apresentar uma declaração de princípios, um programa, que sirva pª fazer compreender a quem quer que seja os nossos objectivos. Trocámos aqui impressões a esse respeito. Já nas conversações de Maio encaráramos a hipótese de o mac vir a ser logo que possível como que um Conselho de colaboração das frentes que se viessem a constituir nos diferentes países. Deve provir daí a utilização algo precipitada pelo engenheiro [Amílcar Cabral] da designação com que «assinou» o memorando entregue a Dakar. Dado que essas frentes ainda não existem, ou pelo menos não são do n/ conhecimento, o mac continua a ser uma organização de indivíduos de todas as colónias portuguesas, como até aqui. Impõe-se porém que reconheçamos a necessidade da nova estruturação de modo a não demorar muito as démarches pª tal efeito. Sem dúvida uma das coisas que é necessária é que haja cá fora gente suficiente com poderes pª deliberar sem a preocupação de estar à espera da opinião da sede. Como fazer isso? Ou bem a malta de lá elege entre os que estão cá fora dois ou três membros que pertençam à Direcção (provisória ou definitiva) a título por exemplo de Delegados com poderes especiais, ou então a malta empenha-se a sério em mandar mais gente cá para fora. O certo é que tem de haver fora de muros mais gente com poderes executivos, pª bom andamento das questões em que nos empenhamos. Por outro lado é necessário estabelecer códigos e processos eficientes e rápidos de comunicação com a sede e com os países, coisa por que em vão temos lutado de há muito pª cá. Seria bom que vocês na medida em que as vossas preocupações actuais o permitam, pensem nisto e sugiram os vossos pontos de vista, pª depois podermos fazer em bloco uma exposição à sede. Tenciono aliás, se se oferecer oportunidade, insistir no que já pª lá lhes disse sobre a necessidade de um executivo «exterior» em condições. O V. [Viriato da Cruz] pôs há tempos o problema de serem incorporados no mac tipos como a Ruth e o Horta, numa secção especial de propaganda e informação. Eu estou de acordo com esta medida que não vai muito contra o que ficou decidido a este respeito na sede (a malta não africana seria incorporada com a maior das cautelas, depois de prestadas provas suficientes de interesse e honestidade, embora em princípio estivesse excluída a hipótese de se lhes confiarem cargos de direcção). Digam o que se vos oferecer a este respeito. Quanto aos subterrâneos lusos, achamos que não é de rejeitar uma cuidadosa colaboração que não envolva questões de compromisso ideológico da n/ parte; rejeitamos qualquer sentimento paternalista, desejando que eles compreendam que nos cabe como africanos a direcção da n/ luta que é tão «avançada» como a deles, embora a situação dos povos seja diferente. Põem-se porém vários problemas: Será conveniente que as n/ coisas apareçam com os caracteres de imprensa tão conhecidos dos subterrâneos? Creio que não e o V. também. Teremos que ter presente que o n/ povo não encarará com simpatia uma colaboração íntima com os lusos (progressistas ou não). Haveria pois que pensar como se realizaria essa colaboração, se o aproveitamento da imprensa não se deveria antes limitar a um esclarecimento luso-local das questões coloniais e da posição dos nossos povos perante as questões lusas. O V. põe dois problemas ainda: um de princípio e um de táctica, com os quais não creio que algum de nós esteja em desacordo: são eles: como princípio não devemos nunca afastar-nos das massas populares dos nossos países, tentando sim marchar à frente delas, mas não muito distanciados, tentando na medida das n/ possibilidades contribuir pª o amadurecimento da «sua sagesse política». Como táctica, nós, capacitados de sermos as vanguardas dos n/ povos, aproveitarmos os meios que se nos oferecem desde já pª o alargamento da n/ luta «sem que as massas populares tirem do conhecimento desse n/ aproveitamento conclusões desfavoráveis aos n/ países. Este problema é particularmente difícil porque teremos de preservar a n/ honestidade pª com os n/ povos e evitar todos os compromissos que hipotequem a liberdade de movimento dos interesses dos n/ povos». Põe-se depois a questão das futuras negociações. Quem as entabulará? Quando saí do «jardim» [Portugal] estava marcado um encontro de direcções de que não conheço o resultado, não sabendo mesmo se por virtude das condições difíceis que então se punham teria sido adiado (já o fora uma vez)... Será que o representante aí conhece alguma coisa a este respeito? Porque razão procuram fazer cá fora algo que já se tentou fazer lá dentro sem terem a certeza sequer de tu seres pessoa organizada? Isto não percebo e creio que só depois de bem esclarecido seria de tentar alguma coisa. O V. entende que de facto é melhor estabelecer os contactos cá fora: eles «mandariam pessoa ou pessoas devidamente mandatadas pª discutirem connosco problemas de princípio e problemas práticos referentes a uma possível colaboração», e o V. continua «O melhor seria que nós sugeríssemos uma agenda dos problemas que seriam discutidos nesse encontro ou então seriam eles a sugerir essa agenda, sendo de desejar que ambas as partes estivessem preparadas pª esta discussão». Eu estou de acordo, apenas com a reserva que temos de comunicar com a sede antes de darmos qualquer passo definitivo, dado o que já disse de ser possível que eles lá tenham já tratado de alguma coisa e não ser conveniente nós tomarmos deliberações que possam por acaso ser contrárias ou pelo menos não concordantes com o que se teria lá decidido. Vou tentar comunicar com a sede pª ver se mandam por alturas do Natal ou já se for possível alguém da direcção com instruções sobre todos estes assuntos. Outra questão interessante posta agora pelo V. é enviarmos um telegrama à ONU a propósito dos acontecimentos de Ang. e Gu. O projecto de telegrama que ele me enviou é do seguinte teor: EM NOME DO MOVIMENTO ANTI COLONIALISTA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DE NATIVOS TODOS OS PAÍSES AFRICANOS SOB REGIME COLONIAL PORTUGUÊS APELAMOS VOSSA INTERVENÇÃO FIM SISTEMÁTICAS NEFANDAS ATROCIDADES COLONIAIS GUINÉ E ANGOLA STOP PORTUGUESES USAM TORTURAS E ASSASSINATOS CONTRA AFRICANOS STOP NÓS CONDENAMOS TAIS MEDIDAS REPRESSIVAS POR PORTUGUESES COSIGNATÁRIOS CARTA NAÇÕES UNIDAS STOP NÓS APELAMOS EXERÇAIS VOSSOS BONS OFÍCIOS FAZENDO PRESSÃO SOBRE GOVERNO PORTUGUÊS IMEDIATA LIBERTAÇÃO PRISIONEIROS POLÍTICOS CESSAÇÃO INCITAMENTO PORTUGUESES EM PORTUGAL E COLÓNIAS CONTRA AFRICANOS ESTABELECIMENTO IMEDIATO CLIMA SOCIAL ACORDO DIREITOS DO HOMEM E CESSAÇÃO PREPARATIVOS MILITARES REPRESSÃO ARMADA assinaríamos os dois [acrescentado à mão: e vocês se quisessem, claro...] Eu estou de acordo que se deva mandar o telegrama embora por questões processuais proponha umas modificações que teriam em vista uma maior audiência do telegrama e até mesmo a s/ discussão. Eis pois as modificações que proponho EM NOME etc até ao primeiro «apelamos» APELAMOS VOSSOS BONS OFÍCIOS JUNTO GOVERNO PORTUGUÊS FIM SISTEMÁTICAS ATROCIDADES E NEFANDOS ASSASSINATOS CONTRA POVO AFRICANO GUINÉ E ANGOLA LIBERTAÇÃO PRISIONEIROS POLÍTICOS SUSPENSÃO PREPARATIVOS REPRESSÃO ARMADA STOP AGRADECEMOS TRANSMITIR ISTO QUARTA COMISSÃO E NOSSO PROTESTO CONTRA POSIÇÃO PORTUGUESA ONU CONTRÁRIA ESPÍRITO CARTA E DECLARAÇÃO UNIVERSAL DIREITOS HOMEM Não me parece ser de pedir ao Sec. Geral que faça pressão porque isso lhe é interdito. Quanto à parte que se refere à opinião pública portuguesa, estando de acordo com ela, parece-me porém ser de substituir pela parte referente à 4ª Comissão, pelos problemas que pode levantar e pela utilidade que uma questão destas levantada por nós teria pª os países que têm defendido os n/ interesses. Estudem vocês a questão e mandem URGENTEMENTE a vossa decisão a este respeito, pª se fazer imediatamente. Um problema se levanta que é o do local donde deve ser mandado o telegrama. Se a minha situação fosse legal aqui eu não me importaria de o fazer dando até a m/ morada, mas dentro de breves dias a m/ situação será ilegal, pois o passaporte caduca e se eu tiver nessa altura um passaporte estrangeiro não poderei assinar um telegrama desses, razão porque é Urgente que mandeis depressa a v/ opinião. Eu tinha pensado até aproveitarmos o telegrama pª pedirmos audiência, pª melhor esclarecermos os problemas. Mas pª esse efeito teríamos de fornecer uma morada fixa, e creio que vocês em Paris o não podem fazer e nós estamos sem saber onde estaremos amanhã... Ficará portanto pª outra ocasião, até porque se eles nos concedessem audiência, o que não creio, não teríamos condições pª nos deslocarmos... Creio já vos ter informado que entre outras prisões soubemos concretamente do Mário António e do António Jacinto. Sobre o teu irmão1 li há tempos uma local que ele realizara a cerimónia religiosa do casamento de uma filha do Presidente da Liga [L. Nacional Africana] com um tal Barradas [Acácio B.] jornalista, donde concluí que ele continua a respirar a liberdade. Quanto ao m/ problema e aos problemas com ele relacionados, creio que não será viável ter cá uma solução do Gh[ana] antes de se me acabar o pass. Isso traz algumas chatices grandes, pois terei talvez de pensar em pedir aqui asilo político e nessas condições ficarei impossibilitado de trabalho político. Outra hipótese que pus era ir pª Túnis; parece-me que pª lá não há complicações de embarque desde que o passaporte ainda esteja válido, o que por exemplo não acontece com Marrocos que exige um pass válido por três meses, visa e outras chatices. Se me decidir por esta hipótese, embarcarei pª a semana, talvez de hoje a oito dias de barco que sai de Génova, mas ainda é caso pª estudar e aguardo a tua opinião urgente. Quanto ao caso que aí trataste não sei em que pé está. Se ele ainda foi consultar as autoridades pª me conceder o visa, quando o visa vier (se vier) já eu não tenho pass para embarcar e naturalmente o visa não chega. Quanto a falar com ele aqui não é possível, pois eles estão inacessíveis em Bonn, onde não existe embaixada a que eu me possa dirigir. Além disso só cá estão três dias, partindo depois pª Berlin, pelo que têm as horas muito tomadas segundo as poucas informações que pude obter. Talvez seja possível ao V. contactar com eles. Escrevo-lhe hoje nesse sentido. Não sei ainda se o Embaixador do Gh cá me concede visto o que devo saber amanhã ou depois. Se ele conceder, parto já pª lá e depois se verá. Esperava uma resposta do Gh até ao dia 15 prazo que lhes sugeri, mas não veio nada. CAMBADA DE BUROCRATAS... Que há de concreto quanto ao Marc. [Marcelino dos Santos] e ES [Guilherme Espírito Santo]? Diz qualquer coisa. Sabes se a P.A. ainda tem Bolsas oferecidas pelos tipos da outra banda? Em caso positivo não seria de tentar também pedir por esse lado uma pª o Rocha? O moço está algo desanimado por nada saber quanto à s/ pessoa. Poderá o Marc chatear mais uma vez os amigos a saber de alguma coisa? Dada a situação instável dele seria bom que ele deixasse bem encaminhada a questão de modo que o moço soubesse a resposta logo que ela viesse. Será que a resposta ainda vem este ano? Pede ao Marc que responda a tudo isto. Se alguma coisa vier a comunicar ao próprio Rocha escrevam-lhe pª CARLOS ALBERTO ROCHA bei HERBERT DE BARY – Cretzschmarstr. 14 Francf. Diz qualquer coisa ainda esta semana. Se vier ainda alguma decisão a m/ respeito comunico-te. O V. tem visa até ao dia 30 deste mês, depois... Eu já não estou em casa da família. Era impossível continuarmos lá c/ o Paulinho que não se dava com a outra miúda e com estes dias de inverno em que tínhamos de estar todos numa casa muito pequena. Paciência. Qui vivra, verra... Saudades nossas pª vós ambos. Um abraço do t/ ass.) L. [Acrescentado à mão, na margem: O facto de eu querer ir aí relacionava-se c/ as possibilidades Túnis ou Marrocos, e ainda c/ a G[uiné]. Responde breve.]

Carta de Lúcio Lara (Frankfurt/Main) a Mário de Andrade

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