Carta de Lúcio Lara a Viriato da Cruz

Cota
0007.000.031
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel comum
Remetente
Lúcio Lara
Destinatário
Viriato da Cruz
local doc
Rep. Federal da Alemanha
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
3
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

Carta a Viriato da Cruz [dactilografada] [Acrescentado à mão, na margem: Enviei-te a Gauche com o tal artigo. Não sei as moradas dos tipos que indicaste em Angola] Ffm. [Frankfurt/Main], 26.10.59 (10 horas da noite) Meu caro Respondo hoje às tuas últimas cartas de um modo mais concreto. Afinal a tua situação tal como eu receava não melhorou muito, antes pelo contrário. A tua penúltima carta deixou-me algo aborrecido por pensares que eu desesperava e que era capaz de tratar de me desenrascar sem continuar a fazer tudo o que me é possível pª te englobar numa muito duvidosa solução dos nossos problemas. Se é certo que estou bastante preocupado, não é menos certo que tenho mantido a calma que permita raciocinar objectivamente no meio de todo este caos que é a nossa situação. E considero-a um caos porque a «solidariedade africana» que nós sabemos existir, não se organizou ainda a ponto de satisfazer a mais pequena das necessidades. Supõe por exemplo que havia mesmo uma urgente necessidade de termos uma resposta antes pª pôr a andar uma série de pontos que careciam de solução imediata. Claro que teríamos falhado e só porque tínhamos acreditado que a «solidariedade» estava liberta de peias burocráticas. Por acaso as nossas tarefas embora urgentes, não o são a ponto de um ou dois meses fazerem qualquer diferença, isto é, os muitos problemas que temos entre mãos e que queremos aumentar não dependem de um mês, embora beneficiassem muito com uma solução rápida da nossa estúpida situação. De acordo que tu passaste horas difíceis, mas tinhas apenas que pensar em ti. Eu até agora ainda não passei quaisquer dificuldades materiais, mas sem dúvida que me «preocupo» com o futuro, pois ao tomar a decisão de abandonar Port. fi-lo com a m/ mulher e ambos aceitamos a responsabilidade que tomávamos. É pois pensando nela, no Paulo e em todos nós que eu me preocupo. Mas não vejas nisso uma atitude de desespero; não há ninguém desesperado. Estamos sim todos chateados e é natural pois respiramos o ambiente cá de casa, que, coitados, estão ansiosos por nos verem pelas costas, e eu não os recrimino por isso; mesmo não os recrimino pelo facto de agora já nem sequer esconderem essa ânsia. Quanto ao teu problema pessoal a tua carta de hoje também me não tranquilizou, pois a hipótese que pões de procurar trabalho nas minas não me diz nada. Será que já tens um problema de asilo ainda que temporário resolvido? Se assim é percebo que possas trabalhar nas minas; caso contrário não vejo lá muito bem. Fico às vezes a pensar se ao pedires asilo eles não espetarão contigo por uns tempos na terra onde eu estive ou coisa do género? Nessas condições não poderias trabalhar nas minas e portanto não estaria aí a solução financeira pª o teu caso. Aliás, põe isto bem na ideia, o dinheiro que veio de Lisboa é pª dividirmos a meias. Se por acaso tu resolvesses aí o problema financeiro eu estava destinando essa parte pª ajudar a passagem do Rocha. Repara que estão à espera da decisão 6 tipos, embora o Mário só pense ir, se for, mais tarde. Também nada sei do E.S. [Guilherme Espírito Santo] a não ser que ainda está em Paris; estás pois a ver que seríamos dignos de bastante mais atenção, pelo menos daquela de estilo comercial, em que se limitariam a acusar a recepção das cartas e dizer-nos que o assunto estava em estudo. Isso ter-nos-ia dado maior liberdade de movimentos, pois o silêncio deles só podia significar que o assunto estava sendo resolvido. Claro que estou agora a estudar novas soluções. O Mário já me mandou os papéis da Emb. da G. [Guiné] pª preencher, mas os tipos só dão Visa com um bilhete de ida e volta... Tudo são dificuldades. Continuo a ter esperança que do Gh. [Ghana] venham os vistos, mas se assim não for até ao fim desta semana vou pª Paris, pª tratar das outras hipóteses. Entretanto escrevi ao Mário a pedir que se pusesse em contacto com o Aquino, mas estás a ver que tudo isso são hipóteses. Uma ideia que nos surgiu hoje foi esta: tirar bilhete pª Luanda, via Accra. Pª isso não devem ser precisos vistos pª nós. Como os passageiros em trânsito por 24 horas não precisam de visa, eu aproveitava descer em Accra e pedia asilo, tratando entretanto das outras coisas. Claro que isso envolve uma despesa de mais de 2500$ o que é de considerar, mas com as poucas possibilidades que se nos apresentam é de guardar esta hipótese no Bolso, pois a nós que aqui estamos seria a única possibilidade de contactar DIRECTAMENTE com os deuses. Isto das cartas... são papéis. Há uma coisa que preciso que me digas: como te enviar dinheiro? Enquanto aí estiveres em Berlim não há problema, mas se fores pª as minas é uma chatice... Dentro desta carta vão pª já 100 marcos. Creio que eles te poderão fazer arranjo. Não te mando os 5 contos com receio de que precisemos aqui de um momento pª o outro de ter alguma massa, mas eles estão ao teu dispor e se por acaso vires que com eles te é possível embarcar daí diz que seguirão imediatamente. Estive pª mandar estes 100 em vale do correio, mas pensei que era capaz de dar trapalhada, e como as cartas têm sido bem recebidas, arrisca-se. Mas se tiver que mandar maior quantia terá de ir ou pelo Banco ou por vale do correio. Diz qualquer coisa a este respeito. Quanto ao Rocha não sei como vai ser. Por um lado estamos a tratar da Bolsa através da UIE, mas a resposta creio que costuma ser demorada. Ele contudo preferia, se pudesse, ir connosco pª África, sobretudo pª o Gh. continuar os estudos. Está vagamente de pé a hipótese de ele voltar pª Portugal, mas nem a ele nem a nós agrada tal hipótese. Seria bom que já que ele resolveu sair, pudesse ficar cá fora, onde não há dúvida somos poucos. Eu falei-lhe aos poucos na existência do Movimento, o que o entusiasmou. Com o teu acordo podemos cooptá-lo. Que dizes? Após este preâmbulo em que praticamente se falou do nosso futuro individual, falemos agora das coisas mais importantes. Estou de acordo com a estruturação prevista pª o MAC, que é aliás quase idêntica à que existe, embora mais coordenada e sobretudo com um comité de responsabilidade cá fora, como o da «coordenação geral», pª não falar no das «relações exteriores». De acordo também que é melhor não se contar com uma comissão de fundos cá fora, embora não seja de pôr de parte a ideia de uma cobrança, mesmo que simbólica, em épocas normais, e de uma contribuição mesmo exigindo um pouco de sacrifício, quando a organização o exigir. Quanto ao problema da Ruth e Horta eu estou pessoalmente de acordo. Acontece que em Lx, um tipo que desde sempre esteve disposto a trabalhar connosco, realmente interessado nos nossos problemas, que considerava também dele, a certa altura viu-se empurrado pª os movimentos portugueses aos quais passou a dar o melhor da sua contribuição por «sentir» que a malta não o aceitava abertamente. Claro que sempre que lhe era pedida colaboração ele dava-a ou ainda a dá, mas a verdade é que se perdeu um tipo entusiasta. Estou de acordo em que deve haver a maior das cautelas, mas é preciso mostrarmos espírito revolucionário; com isso estou absolutamente de acordo. Mas é preciso que informemos disso Lx; e que eles nos enviem o seu parecer. Eu ainda não fiz o memorandum destas coisas todas pª Lisboa, porque estava à espera de lhes dizer qual é afinal o nosso rumo. Informei a malta de Paris, não sei o que eles pensam, pois resolvemos escrever-nos apenas uma vez por semana. O correio vai pª o editor do Mário, registado, seguindo ao mesmo tempo uma carta para ele a avisá-lo do facto. A propósito, toda a correspondência por nós trocada oficialmente tem ido registada, e a carta pª o Cairo sobre a BA [?] foi registada, aéreo, express, simplesmente saiu daqui num sábado e a confer. começava 2ª feira. Parece-me que além da necessidade de se dar uma forma estatutária ao MAC é também preciso dar-lhe um conteúdo, que indubitavelmente já adquiriu, mas que encontra certa dificuldade em se exprimir. Exprimindo melhor o que penso direi que me parece ser de adoptar como que um manifesto em que ficassem bem expressos os nossos desígnios. Isso existe, mas não está escrito, nem corresponde já à feição hoje tomada pelo Mac, que sem dúvida evoluiu. A coisa escrita teria a vantagem de melhor elucidar os interessados quer futuros membros, quer entidades com que contactássemos. Não estaríamos pois ao sabor da interpretação que cada um de nós pode dar ao Movimento. Isto independentemente da base estatutária, em que as obrigações dos membros e a orgânica estariam vincados. A criação do Secretariado, ou melhor a reorganização do Secretariado (este existe, embora com o nome de Direcção provisória) nos moldes que tu indicas é preferível, mas existe a dificuldade da sua concretização. Isso exigiria que alguém de Lisboa viesse cá fora com plenos poderes, para se fazer a eleição ou escolha dos dirigentes ou responsáveis dos Comités, após uma eleição prévia de três membros em Lisboa. Vamos a ver como eles resolverão esse problema; além disso impunha-se que dois ou três camaradas dos mais responsáveis de lá pensassem em se vir a juntar a nós... Aguardemos a discussão do assunto por eles e por Paris. Quanto ao H.M. [Hugo de Menezes], segundo diz o Mário, deve ter acontecido por lá qualquer coisa, pois a Emb. da G. comunicou que não aceitam mais cartas do e pª o HM, receando o Mário que ele tenha cometido qualquer bronca diplomática, como por ex., recusar-se a entregar as cartas abertas. Claro que ainda nada sabemos dessas razões. A ser assim – o ser devido a qualquer falta de tacto – seria chato na medida em que isso pode prejudicar o conceito do Mac. Ele trabalha num hospital e a noiva está em Paris à espera de bilhete pª seguir pª lá. O Mário diz que pensa ir a Londres o mais breve possível «ou talvez na altura em que o S.T. [Sékou Touré] fizer a sua visita» que não sei quando é. Se fosse possível gostava de passar por lá pª ver como correm lá as coisas e as possibilidades que há. Tenho a impressão que o HM se deixou arrastar pelo seu entusiasmo, esperando como todos nós esperávamos que o apoio é coisa assente e que portanto há que não olhar a diplomacias, dado que todos somos irmãos. Mas de concreto nada sei e afinal é idiota estar com conjecturas. Como te disse pedi à malta de Paris que fizesse seguir a questão do Adriano [A. Lima Araújo] através do HM; houve porém a tal dificuldade do Correio e eles perguntaram pª cá se não seria possível que o Correio ido daqui evitasse Paris, pª se escrever daqui, e pelos vistos não é, pois todo o avião correio pª Conak. vai via Paris. De forma que até à última carta do Mário ainda não se tinha tratado desta questão. O que eu pretendia era apenas preveni-lo que a carta foi recebida e que logo que possível ele teria uma resposta concreta. A resposta ao Memorandum do Men. [H. de Menezes] foi resolvida por três tipos de Paris; não sei se os três assinaram, mas isso seria o menos, desde que realmente o resolveram em conjunto. Quando eu me referi a frisar a Paris da necessidade de não tomar resoluções importantes individualmente, queria dizer que eles deviam transmitir isso ao HM, que evidentemente fez mal. Quanto à correspondência, evidentemente que ficou estabelecido que ela será feita com conhecimento dos três e até se possível com o nosso conhecimento, quando se tratar de casos mais sérios. Penso que não agi desacertadamente em deixar lá as folhas, pois temos que prever que só um tipo responsável por toda a correspondência pode empatar a solução de alguns problemas. Quanto ao pedir autorização pª Lx; sabes bem como isso é difícil e um pouco idealista. Infelizmente as nossas comunicações não estão no ponto em que isso seja possível para uma questão que não envolve questão de princípios e pretende pelo contrário desembaraçar as vias de comunicação. Creio que nas condições em que o fiz e com as garantias pedidas não fui «adiante dos bois». De resto como em tudo o que faço, dei conhecimento a Lx. e informei-te a ti. Se viermos a constatar que procedi erradamente, mais não farei do que tomar nota da lição; seria uma das muitas que tenho tido de há uns tempos pª cá. Creio que os amigos de Paris já há uns tempos tomam disposições pª não terem documentos comprometedores em casa. Informaram-me disso quando lá estive. Outras notícias: Saiu um novo livro do Fanon. Creio que é possível arranjar. Eu continuo a tentar arranjar o máximo de documentação possível, pª o que vou pedindo a uns amigos de Lx, extra-movimento. Há dias o Ernesto [E. Lara Filho] enviou-me uns 10 discursos do Salazar, traduzidos em francês. Acabei mais ou menos o art. pª a revista, faltando-me apenas limar umas coisas. Esse art. sintetiza a situação do n/ problema na ONU de acordo com o que me tinha pedido a malta em Paris. Se tiver tempo de o passar à máquina, mando-to. Os B. [Bouvier] estão bem. Nada sei da de B. [Mme de Bary], tencionando telefonar-lhe amanhã. A Brd. [ou Erd.?] esteve cá uns dias tenho a impressão que na esperança de te ver passar, pois a velhota andava com um pressentimento que tu ias aparecer de um momento pª outro. De Angola só se ouve falar de instalações militares. Já está criado o Comando Naval de Angola e o Comando aéreo. Como sabes a costa é permanentemente patrulhada. Não sei se já te disse que consta em Lx que tencionam enviar os portugueses pª Angola presos e importar os presos de Angola (angolanos e portugueses). Neste momento não me ocorre nada mais por já ser uma hora da noite, e a família tem estado a conversar o que por vezes me leva a parar pª não incomodar... Todos te mandam saudades. O Paulinho agora anda muito chato pois passa a vida a chorar. Deve passar-lhe. Se um dia vires a Haradetzky [?] dá-lhe cumprimentos. Não te esqueças de me informar claramente de como podemos continuar a contactar e do t/ futuro próximo... UM APERTADO ABRAÇO ass.) L.

Carta de Lúcio Lara (Frankfurt/Main) a Viriato da Cruz

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