Carta de Mário de Andrade a Lúcio Lara

Cota
0007.000.028
Tipologia
Correspondência
Impressão
Manuscrito
Suporte
Papel comum
Remetente
Mário Pinto de Andrade
Destinatário
Lúcio Lara
Locais
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
3
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

Carta de Mário de Andrade
[manuscrita]

Paris, le 23-X-59
Meu caro Lúcio,

Espero que já tenhas preenchido o formulário que te mandei. Desde que recebi as tuas últimas cartas, tenho pensado no isolamento irritante criado à nossa volta pela burocracia panafricana. Creio que o raciocínio dos dirigentes políticos desses países se baseia numa estupenda incompreensão das nossas dificuldades interiores. Explico-me: pensam eles que uma ajuda exterior deve ser condicionada pela evolução da luta interna traduzida em factos evidentes – combate organizado, mortes, etc. Só a partir desse momento é que as coisas começam a ter importância. É bom ter em mente o conselho do n/ amigo Kimbanda1, formulado há tempos num café romano. Talvez possua uma visão pessimista ou uma concepção maquiavélica da política... mas a verdade é que a solidariedade panafricana não tem agido suficientemente no nosso caso. Nas circunstâncias actuais, sou de opinião que urge antes de mais arranjar um fundo material importante para as nossas deslocações. Mas numa perspectiva menos longínqua, proponho-me escrever (se tu e o V. [Viriato da Cruz] estiverem de acordo) ao I.T. [Ismael Touré] irmão do Presidente, que conheci perfeitamente aqui, quando ele era apenas engenheiro e marido da S. Dir-lhe-ia em suma que nós estamos decepcionados e desencorajados pela atitude do governo da G. [Guiné] em relação às démarches empreendidas pelo n/ movimento. E pediria então uma solução imediata para o teu caso, em nome dos movimentos angolanos em luta (Resta saber quais). Por outro lado, farei esforços (e aqui surge mais uma vez a incapacidade em que me encontro na hora em que te escrevo de conseguir uns 20.000 fr.) para me deslocar a Londres, entre 9 e 15 de Novembro.
Numa carta que acabo de receber, o V. pede-me que tente algo junto de Rabat e Túnis. É certo que tenho um amigo em Rabat – o Bragança [Aquino de B.]– mas esse rapaz é um «lírico». A menos que te pareça viável, pois a passagem é menos dispendiosa.
Aguardo uma carta do HM [Hugo de Menezes]. Não vejo a necessidade de se reeditar um memorandum que já foi entregue ao Presidente. Cabe ao n/ representante de agir.
Quanto às notícias das prisões, o B.D. [Basil Davidson] prometeu-me escrever um artigo para o New Statesman e o M. [Marcelino dos Santos] entregou ao Diop uma cópia dos papéis que te enviei. Também redigimos o texto do telegrama que em princípio a S.A.C. deve dirigir às autoridades coloniais p [portuguesas].
Queres transcrever a parte da carta do Lima Araújo em que ele relata os acontecimentos da Guiné?
Acabo de saber, de fonte segura, que a Pide intentou um processo de difamação, nos tribunais ingleses, contra o New Statesman. A origem do processo? Um artigo dum correspondente publicado no nº de 6 de Junho/59, em que se lêem estas frases:
... «The Minister, Arnaldo Schultz, had a notorious record for brutality in the Spanish Civil War, and found no difficulty in recruiting three torture experts – Porto Duarte, Fernando Gouveia and Jose Gonçalves. Among anothers who have recently suffered at their hands are Oscar Reis and Francisco Pinto... Rogério de Carvalho... and Dr. Amadeu de Alcantara, who had his eyes burnt with cigarette ends and is now blind.»2
Trata-se de provar que esses gajos torturam de facto. A coisa promete ser dura.
Tive aqui uma longa entrevista com um dirigente do «subterrâneo» lusitano3 que me fez convocar. Falou-me sobretudo das dificuldades que eles encontram em Lisboa para contactar com gente nossa. Achas possível e conveniente comunicar o nome de alguém que mantivesse uma ligação com eles? Estão dispostos a dar uma ajuda «fraternal» sem intromissões: ajuda técnica, nomeadamente publicação de documentos destinados aos nossos países. Que pensas dessa abertura?
Um livro importante que estou a ler, indicado pelo D [B. Davidson]: «Portuguese Africa» – James Duffy. Cambridge. Massachusets. Harvard University Press ou em Londres: Oxford University Press.
É um estudo aprofundado e recentíssimo sobre a colonização portuguesa em Angola e Moçambique. Podes comunicar-me o que tens aí sobre a história de Angola?
Enfim, temos o Teatro em suspense, à espera de dinheiro. A adaptação marcha. Quanto a mim, gostaria de terminar definitivamente com os meus estudos na Sorbonne.
Como vai a Ruth e o vosso filho?
Um abraço a ti
Mário

P.S. Que número queres tu do «Monde Diplomatique»?

Carta de Mário de Andrade (Paris) a Lúcio Lara

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