Carta de Viriato da Cruz a Lúcio Lara

Cota
0007.000.021
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Viriato da Cruz
Destinatário
Lúcio Lara
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
2
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

Carta de Viriato da Cruz [dactilografada]1 19.10.59 Meu Caro, Aqui estou, no início de mais uma experiência: viver com o pass caducado. Acordei, olhei o dia através da janela fechada. É verdade: dia sem sol e frio; mas não tanto como se fosse inverno. Afinal, no presente, centenas de milhares de homens e mulheres, e mesmo crianças, vivem como eu. Os que pretendem uma vida nova, mesmo apenas nos seus países, são obrigados, por lógica fatal, a cortar alguns laços que os prendiam à vida contra a qual se opõem. Em 23 de Maio deste ano, Salazar disse num discurso: «Nenhum dos estudos que pude compulsar analisa porém certo aspecto da vida ultramarina portuguesa ou lhe atribui qualquer significado. Esse aspecto é o seguinte: Nós não pensamos em negar o relativo atraso de algumas regiões e a deficiência de alguns serviços. É evidente faltarem estradas e pontes, faltarem hospitais, faltarem escolas, e faltarem até, senhores, elementos de polícia e forças de defesa. Porque diz o nativo de Angola ou Moçambique em qualquer país estrangeiro em que se encontre que é português?» Há um facto novo nas posições de Salazar: Pela primeira vez, ele foi compelido pelo desmascaramento da «campanha de descrédito», a que ele se referiu no mesmo discurso, a aceitar publicamente uma verdade, para, em seguida, impingir ao mundo uma mentira: a de que o nativo de Angola ou Moçambique se diz português em qualquer país estrangeiro em que se encontre. O certo também é que essa mentira ainda não pode ser claramente provada por muitos factos. Muitos, se não a maioria, dos nativos das colónias port., depois de se verem livres do fogo infernal das condições interiores dos seus países, continuam porém a aproveitarem-se das vantagens da nacionalidade portuguesa no terreno internacional. É verdade também que a política portuguesa, nesse aspecto, é inteligente: combatem impiedosamente o «rebelde» no interior do país, mas procuram mantê-lo, dentro da «família», se ele se encontra no exterior. É por isso que, pelo que sei, as embaixadas port. não dificultam muito as renovações de passes, etc. Mas podemos nós ajudar a manter esse jogo que só favorece aos nossos donos? Por mim, quero ser coerente com as minhas posições, apesar das dificuldades que possa encontrar. Eu não sou um português da «oposição»; eu nego mesmo a nacionalidade portuguesa que me foi imposta sem meu consentimento. Eis porque nem sequer ensaiei de renovar o meu pass junto de qualquer embaixada desse país. Este problema não tem lógica para mim. Estou de acordo que deves começar a tratar de encontrar uma nova saída para o vosso embarque. Se concordardes comigo, acho que deveis começar já a obter a possibilidade de embarcar para Conakry ou Túnis, por exemplo. O melhor e o mais fácil talvez é de, por intermédio dos amigos e das embaixadas desses países em Paris, obter visa de emigrante em exílio ou mesmo de turista. Outra possibilidade é de embarcardes para Rabat. Nesta cidade está o Bragança (Aquino), como professor de inglês, segundo creio. Há tempos, o Bragança pedira ao Mário para trabalhar em Rabat, onde ele está de boas relações com altas entidades governamentais. Julgo que o Bragança será capaz de ser um precioso auxiliar na solução do vosso problema nesse país. Tu poderás trabalhar, em qualquer sítio, como professor de matemática. A Ruth, como professora talvez de alemão. Vocês têm qualificação profissional com possibilidades de trabalhar em qualquer sítio. Peço-te apenas encarecidamente que não te deixes tomar por qualquer atitude de desespero. Tu és um tanto inclinado ao desânimo e à impaciência. Isto não é bom nem útil. Nós necessitamos de muita coragem e de sensibilidade fria. Reconheço que a vossa situação, dentro da família em que estais, deve ser chata. Mas mais chata foi a minha durante muitos meses que passei aí em casa de gente amiga, é certo, mas sem quaisquer relações de parentesco. Eu senti, talvez mais do que vós, todos esses problemas. Estou convencido que, para um séjour temporário em Túnis ou Rabat, conseguireis visa depressa. Escreve já ao Mário e ao Marcello. O Mário que escreva urgentemente ao Bragança, a fim de este aconselhar sobre o melhor: se irdes para Túnis ou Rabat. O Menezes, se ele quiser e puder, deveria constituir-se em intermediário directo de uma solução para Conakry, As passagens para o Norte de África teriam a vantagem de ser mais baratas. Mesmo para Conakry creio serem mais baratas do que para Accra. Vou averiguar, como pedes, sobre a possibilidade de embarque por este país. Mas não deixes de iniciar, imediatamente, as démarches a que aludo acima. O dinheiro, que vocês têm aí, gastai só convosco. Eu sou só; mais facilmente me arranjo. Primeiro tu e a tua família. Além disso, vou fazer o impossível por encontrar uma solução financeira para o meu embarque, não junto de qualquer organismo oficial ou parecido, mas assinando contratos. Sem espírito de persistência e de luta nada resolverei. E tenho mesmo que resolver tudo. Não vos preocupeis, portanto, comigo. Não creio que, na minha situação actual, esta gente aqui me expulse. Mas se tal for o caso, eu não vou cruzar os braços e, seguramente, farei tudo por encontrar uma saída urgente. Põe de parte toda a ideia de eu embarcar fora deste país. Não tenho pass para entrar em nenhum país da Europa. Ânimo, pois! No desânimo não resolveremos nada. Cumprimentos a todos. O meu melhor abraço para ti. P.S. Agradeço o retrato do Paulinho. O gajo está grande! E na foto, ele está com uma cara de «sabidão», uma espécie de enfant terrible! Certamente o verei em breve. ass.) V.

Carta de Viriato da Cruz (Berlim) a Lúcio Lara

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