Carta de Viriato da Cruz a Lúcio Lara

Cota
0007.000.015
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Viriato da Cruz
Destinatário
Lúcio Lara
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
9
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

Carta de Viriato da Cruz
[dactilografada]1

B. [Berlim], 13.10.1959
Meu Caro,

Respondo à tua carta de 10 do corrente.
1 – A viagem por avião é cara. A não ser que, no momento haja necessidade absoluta de se viajar por aquele meio, sou de parecer que possamos todos viajar por barco. Por este meio é mais barato. Além disso, a deslocarmo-nos, devemos acompanhar-nos de todos os nossos necessários instrumentos de trabalho – livros, papéis, arquivos, etc. – a fim de que, logo que cheguemos a África, possamos começar a trabalhar. Este trabalho não vai ser imposto apenas pelas nossas necessidades particulares, mas também pelos nossos amigos ghanenses, segundo creio. E a única maneira de podermos cumprir, de maneira satisfatória, todas as obrigações ou compromissos que assumirmos à nossa chegada em África, é de trabalharmos com base nos elementos que temos vindo a coligir e a estruturar aqui. Em suma: precisamos de viajar sempre com os nossos arquivos e livros. Logo, viagem por barco oferece completamente esta possibilidade. Quanto tempo levará a viagem por barco? Máximo 15 dias, suponho. Não é muito se tivermos em conta as vantagens que ela oferece.
2 – Estive ontem na editorial. Eles aceitam assinar contrato comigo. Apresentei-lhes plano do livro que pretendo escrever, bem como um pequeno capítulo pelo qual eles poderão avaliar o estilo, etc. No que respeita à forma de pagamento, ainda nada está resolvido. Pediram-me que regressasse lá na próxima sexta-feira, dia 16. Este adiamento pode jogar a meu favor, na medida em que o meu visto de séjour aqui termina em 15 (depois de amanhã), e assim poderei pedir uma prolongação do mesmo, alegando a necessidade de tratar assuntos com a editorial. A prolongação do séjour, pedi-la-ei amanhã, dia 14. Acho que tudo será resolvido a meu favor.
3 – Sobre o discurso do Presidente [Nkrumah] no tal Bureau, acho que ele se baseia, sem dúvida, nas informações do Abel [Amílcar Cabral]. Tanto mais que numa das cartas, que eles enviaram, diziam que estavam estudando cuidadosamente o relatório do Abel. Além disso, o Presidente, en tant que presidente, não falaria do caso sem uma base de fonte angolana. Coisas da diplomacia. Lição a tirar: se quisermos, na verdade, um apoio da diplomacia internacional temos de actuar junto desta diplomacia, como fez o Abel. Claro que esta actuação não pode ser individual, mas tem de ser, necessariamente, em nome de uma organização que ofereça garantias de idoneidade e maturidade através da sua actuação.
4 – Óptimo que Cairo passa a ter relações connosco. É importante termos conhecimento imediato de todas as resoluções e comunicados do Conselho do Cairo. Isto orienta-nos sobre a política internacional, permite-nos colaborar com esse Conselho e não nos deixa isolados, o que convém para mantermos presença concreta na política africana.
A nossa mensagem para o Cairo foi registada? É importante registar tudo que parta daí com conteúdo político. Não esquecer que esse país, onde vocês estão, está profundamente engajado na política africana, ao lado dos colonialistas. A bomba do Sahara é produto da sociedade franco-alemã, tanto no plano técnico e financeiro, como nos interesses políticos. Isto foi bem denunciado por um jornal inglês. Além disso, sei que o Conselho do Cairo emitiu, há semanas, um comunicado denunciando essa colaboração. Sendo assim, não é de pôr de parte a ideia de que os organismos de controle desse país procurem controlar os contactos com Cairo, sobretudo, como é de certo modo legítimo, se esses contactos partem do seu próprio território. Não convém minimizar esta hipótese, que não tem nada de inédito ou de improvável. É melhor ser prudente.
5 – Óptimo que a «Gauche» já tenha publicado algo sobre os últimos acontecimentos. Convinha, agora, que se fizesse chegar à nossa terra, esse artigo. Como fazê-lo? Não podemos fazê-lo por uma espécie de exportação, sem qualquer cuidado. Proponho que através da Bélgica (melhor ainda seria a Suíça, Áustria ou mesmo América do Norte) se enviassem recortes desse artigo, dentro de jornais reaccionários e bem conhecidos. Tudo de maneira discreta. Na América, o Castro Lopo poderá, talvez, encarregar-se disso. Mas ele que actue de acordo com as regras da mais rigorosa discrição. Acabemos de vez com a mania lusitana de procurar chocar-se contra a pide e irritá-la. Nós devemos procurar enganar sempre a pide e contorná-la o mais longe possível, contanto que atinjamos sempre os nossos objectivos, que são: servir os nossos irmãos de África e estabelecer contactos com eles, a fim de a acção africana avançar para frente com o mínimo de obstáculos e de vítimas. Toda a repressão policial ou militar é mais nociva que benéfica. Essa repressão emperra sempre um movimento. Ela semeia a desorientação, divide forças, abate a coragem de elementos instáveis (que infelizmente são sempre a maioria em qualquer movimento) elementos instáveis esses que, com o desenvolver de um movimento subterrâneo, poderiam adquirir melhor consciência e firmeza. Não devemos esquecer que o princípio número um de qualquer movimento como o nosso é: Vencer sempre. Esta vitória virá como um processus; e, na prática, esse processus deve significar progressos diários e crescentes para o reforçamento das nossas posições. Todo o nosso recuo, toda a ofensiva do adversário, é nociva para o moral dos nossos elementos.
Os tais jornais com recortes, a que me referi acima, poderiam por exemplo, ser enviados a: Dr. Eugénio Ferreira (presidente da Cultural), melhor seria para o seu endereço particular; Monsenhor Manuel das Neves, Paço Episcopal; Dr. Amílcar Barca, Benguela. Não mandem nem bilhete, nem nada de particular dentro desses jornais. Aquelas personagens, muito possivelmente, farão chegar a outras pessoas esses recortes. Eles lá saberão como o farão. Deixemo-lhes actuar da maneira que as circunstâncias concretas lhes aconselharão, à la place e no momento. Tudo isso eles o saberão melhor do que nós aqui no exterior.
6 – Estou de acordo com o conteúdo dos relatórios do Abel. Mas não posso aceitar como boa o ele ter escrito MAC, «organização que agrupa todos os movimentos, etc.» Isto significou um gesto de fazer passar, precipitadamente, os nossos desejos por realidade. Salvo prova em contrário, penso que a realidade ainda não é essa. Na verdade, em Maio, acordámos que o MAC, no seu desenvolvimento concreto e futuro, deveria ou poderia converter-se numa espécie de Conselho de colaboração e de coordenação de todas as organizações africanas que lutem contra o inimigo comum: o colonialismo luso. Isto, em termos práticos, só seria possível,
1. – se antes de tudo, contactássemos todas as organizações importantes das colónias portuguesas;
2. – se essas organizações aceitassem, por acordo explícito, escrito, as formas e os limites por que actuaria esse Conselho;
3. – se esse Conselho incluísse, no seu seio, representantes autênticos de todas as ditas organizações.
Nós temos de ser realistas. Num movimento anticolonial é indispensável, na verdade, uma frente sólida de todas as forças anti-colonialistas. Mas isto não quer dizer que todas as correntes anti-colonialistas propõem-se atingir a mesma meta e têm os mesmos interesses, tanto em relação ao presente como ao futuro. Por exemplo: O que é a UPA? Sobre que classe das sociedades africanas baseia, tanto do ponto de vista material como ideológico, a UPA a sua acção? Como concebe a UPA o desenvolvimento político e económico do nosso país, logo imediatamente depois da libertação deste? – Eis alguns problemas actuais e sérios.
Todos sabemos que nenhum movimento se realiza sem o apoio material de uma classe social. Este apoio só é dado pela dita classe, na medida em [que] ela, a classe, vê e se convence que a organização X luta pela independência com o fim de, após a vitória, fazer valer os interesses dessa classe no quadro do país livre. Estes problemas de classe não serão postos apenas depois da vitória sobre o colonialismo. Pelo contrário: eles já estão postos e serão cada vez mais claros. O próprio colonialismo é o responsável mais directo e activo no levantar desses problemas. Com que fim? A fim de dividir as forças nacionais e opô-las umas às outras. O colonialismo fará tudo para convencer os trabalhadores e as diferentes classes não-trabalhadoras que as organizações X, Y ou Z propõem-se lesar, após a vitória, os interesses desta ou daquela classe. O colonialismo não jogará apenas com os interesses económicos das classes, mas jogará também com os interesses étnicos e culturais dos diferentes grupos humanos do país.
Em face de tudo isso, é indispensável estabelecer, previamente, um acordo de acção com todas as organizações válidas de cada colónia. Cada colónia deve construir uma concreta frente das organizações anticoloniais. Depois da constituição dessas frentes nacionais, estas deverão criar um Conselho de colaboração e coordenação (Conselho supra-nacional ou internacional, como se quiser), o qual actuará com base nos interesses comuns postos tanto pelo inimigo comum, como pela unidade africana, continental. Este Conselho, na sua fundação, encontraria já uma experiência importante e válida: a do MAC.
Nas actuais condições, acho que o MAC não deve, precipitadamente, arrogar-se papéis e missões sem base concreta e jurídica. Isto é importante para preservar a honestidade do MAC. O MAC deve, desde já, fazer ver que os interesses da luta em cada colónia, impõem que, em cada uma destas, as diversas classes ou grupos humanos se organizem e procurem, ao mesmo tempo, estabelecer uma frente comum nacional.
A garantia número um da vitória de um movimento nacional consiste em que ela se baseie nas massas populares do país em questão e de que ela tenha em conta as condições específicas do dito país. Assim sendo, cada organização, em cada colónia, organizará uma parte do povo. A frente nacional organizará todo o povo. Na prática, tudo costuma marchar por partes e por etapas.
A meu ver, são esses os princípios que o MAC pode, desde já aconselhar às diversas organizações africanas.
7 – No respeitante à necessidade de se estabelecer, mais uma vez, uma estrutura para o MAC, acho que o MAC deve propor-se, nos seus estatutos, transformar-se no tal Conselho a que me referi acima, logo que existirem as condições concretas para isso. Evidentemente que o MAC não deve esperar que em todas [as] colónias portuguesas se criem as frentes nacionais a fim de, só depois, se transformar nesse Conselho. Uma vez que, por exemplo, em Angola e na Guiné, essas frentes nacionais sejam criadas, o MAC poderá já transformar-se no tal Conselho que incluiria, no seu seio, representantes de todas as organizações de Angola e da Guiné. Nessa altura, esta declaração corresponderia a uma verdade autêntica. Acho que compreendes o meu raciocínio. Os meus escrúpulos visam a agirmos com realismo e honestidade. Fora disto lançaremos todo o nosso trabalho em pura perdição e correremos o risco de nos queimarmos, se os nossos inimigos ou adversários pensarem em explorar os nossos pontos fracos. Títulos, é melhor merecê-los e não tê-los ainda do que tê-los e não merecê-los ainda.
Outro ponto da estrutura do MAC:
É preciso criar e definir comités executivos ou de trabalho. Esses comités devem obedecer a uma hierarquia e devem estar organicamente dependentes uns dos outros.
Acho que até hoje tem prevalecido uma ideia errada: a de se supor que cada Secção (Paris, Lx, etc) corresponde a um MAC e que cada secção deve possuir os seus próprios organismos dirigentes. Esta posição é falsa e mesmo perigosa. Isto gerará a anarquia, e desta à divisão só vai um pequeno passo. Não há unidade de movimento sem unidade de organização e de direcção. [Escrito na margem por Lúcio Lara: Aqui está enganado] É preciso estabelecer, de uma vez por todas, que cada secção é apenas uma categoria regional, imposta pelos diferentes domicílios dos membros do MAC. Não há interesses especiais da malta de Paris ou de Lxa. Só há interesses criados pela posição de todos nós em face do colonialismo português. O estarmos em Paris ou na China não cria interesses especiais e importantes que mereçam sobrepor-se aos nossos interesses comuns determinados pela nossa situação de colonizados do imperialismo português. Esta é a realidade mais importante; o resto é secundário e deve obedecê-la ou, pelo menos, harmonizar-se com ela.
Eu proponho, portanto, que:
a) se crie um Secretariado, composto por 5 membros – três de Lxa., um de Paris e um da A. [Alemanha].
b) Esse Secretariado deve eleger, no seu seio, entre os cinco membros, responsáveis para dirigirem os seguintes comités executivos: Comité de coordenação geral; comité das relações exteriores; comité de propaganda e publicidade; comité de finanças; comité de controle.
Cinco comités, portanto. Cada comité será dirigido por um membro do Secretariado. Este garante a unidade de acção de todos os comités.
Cada dirigente de comité escolherá dois colaboradores. Estes não são lacaios nem funcionários. Os três componentes de cada comité serão solidariamente responsáveis por todo o trabalho do comité e terão uma igualdade de voz, de consulta e de respeito. O camarada «dirigente» do comité (melhor talvez «responsável» do comité) será apenas aquele que responderá, junto do Secretariado, do trabalho do comité a que está adstrito.
O «comité de coordenação geral» é a estância superior do Secretariado. Esse comité estuda, em colaboração com os restantes comités, todos os problemas: de doutrina, de actuação exterior, de polícia e controle, de finanças, etc. O «comité de coordenação geral» é o representante insubstituível do MAC junto de todos os organismos ou entidades estranhos ao MAC. Evidentemente que o «comité de coordenação geral» poderá delegar, temporariamente e para missões bem definidas, poderes a este ou aquele membro do MAC para se desempenhar deste ou daquele trabalho, neste ou naquele país. Os delegados do MAC, nomeados pelo «comité de coordenação geral», não podem actuar independentemente, e estarão em contacto permanente, na medida do possível, com o referido «comité de coordenação geral». Deste emanarão as instruções gerais, em matéria de doutrina e de compromissos, para todos os seus delegados em missões bem especificadas.
Tendo em conta as realidades e possibilidades de acção, proponho que o comité de finanças seja composto por membros de Lx. Cá fora não há possibilidades de angariar fundos: além disso, temos de nos habituar a fazer nós mesmos, interessados na luta contra o colonialismo português, todos os sacrifícios exigidos por essa luta.
Por outro lado, se não é de pôr de parte a ideia das cotizações dos membros do MAC, acho que a ideia que deve prevalecer é a de o comité de finanças trabalhar por angariar, por subscrições gerais (dos membros do MAC ou não) todos os fundos que forem sendo exigidos por esta ou aquela tarefa. O comité de finanças não terá portanto uma tarefa de rotina (cobrar cotas e guardá-las), ele terá uma tarefa viva e que exigirá iniciativa para angariar fundos, onde for possível. Digo fundos, e não cotas. Fundos cujo quantitativo variará e cuja urgência será imposta pelas necessidades de cada momento.
O «comité das relações exteriores» actuará como tem actuado a secção da A. Como a sua acção se baseará sobretudo sobre questões de doutrina e de princípios, ele deverá estar em ligação íntima com o «comité de coordenação geral».
O «comité de controle» estará atento à actuação de cada membro do MAC, vigiará a idoneidade e maturidade dos membros inscritos ou a inscrever no MAC, avisará o MAC sobre todos os manejos dos colonialistas portugueses ou dos seus sócios, dará aviso, por iniciativa própria ou por solicitação do «comité de coordenação geral», das medidas de segurança a tomar para todas as missões ou trabalhos importantes a realizar.
O «comité de publicidade e propaganda» deverá fazer os possíveis por encontrar, na imprensa internacional, a possibilidade de exprimirmos os nossos interesses. Esse comité terá a iniciativa de escrever artigos ou comunicados. Sempre, porém, que esses artigos ou comunicados envolvam questões de doutrina ou de princípios fundamentais do MAC, o «comité de propaganda e publicidade» submeterá, previamente, os seus trabalhos ao «comité de coordenação geral». O «comité de propaganda e publicidade» encarregar-se-á, se for necessário, do trabalho de tradução de artigos importantes dos membros do MAC que mereçam publicação neste ou naquele órgão da imprensa internacional.
[Numa outra folha, acrescentado à mão: (P.S. e, dactilografado, todo o parágrafo seguinte: A propósito do comité de propaganda e publicidade há um problema que se levanta na minha consciência: o de incluirmos no MAC toda a malta que, como a Ruth e o Horta, por exemplo. mantêm a mesma posição que nós e são provadamente capazes de um trabalho sério e útil para a causa geral. No caso da Ruth, pessoalmente não tenho nada a acrescentar. No caso do Horta, acho que ele é bem capaz de, por exemplo, fazer um bom trabalho, quer no terreno de propaganda e publicidade, quer mesmo no de trabalhar com malta de colónias portuguesas que se encontrem estudando no país e na cidade onde ele está. O ano passado havia, além dele, mais dois jovens dessas colónias, naquela cidade. É possível que mais outros apareçam por lá. E dentre esses, um ou dois poderão ser aproveitáveis. Penso que o caso do Horta é digno de estudo e de consideração. Propõe isso a Paris. Prudência e cuidado não podem significar preconceitos. Em toda a parte, luta anticolonial não está rigorosamente condenada a limitar-se em fronteiras étnicas. Devemos estudar cada caso isoladamente, «independentemente» de raças e cores. Claro, o colonialismo é o único responsável pela consciência de solidariedade étnica que frequentemente se manifesta entre os colonos, e mesmo entre africanos filhos de colonos. Mas o homem, sabemos, é bem capaz de se deixar aprisionar pela ideologia colonialista ou de se libertar dela. Não analisemos esse problema com espírito de concessão, mas com espírito revolucionário e realista.)]
Parece-me que o «comité de coordenação geral», o «comité de relações exteriores» devem ser compostos por membros do MAC vivendo fora de Portugal. Fora deste país, estes comités poderão actuar com mais liberdade e com rapidez.
Os comités de propaganda e controle deverão ter membros em Portugal.
Aí estão algumas sugestões que tenho a fazer neste momento. Espero que sejam tomadas em consideração, quer para negá-las, quer para corrigi-las.
A preocupação principal ao propor estas sugestões baseia-se na necessidade de dar unidade orgânica ao MAC e de mantermos organismos que respondam às nossas necessidades actuais. Nada de organismos supérfluos; mas também nada de anarquia estéril.
Acho importante que a malta de Paris se pronuncie claramente e de maneira definitiva sobre a estrutura e responsabilidades que é preciso fixar urgentemente dentro do MAC. A malta de Paris deve ser avisada que estamos interessados em criar um clima de franca colaboração geral, amiga, flexível, atenta a cada caso e a cada pessoa, mas não nos podemos permitir o luxo de manter atitudes equívocas, de críticas estéreis ou de anarquia para satisfazer a opinião que cada [um] faz de si mesmo. Nós todos formamos um batalhão (para utilizar uma imagem) e não é o batalhão que compete marchar ao passo do indivíduo-soldado (por maior que seja a graduação deste) – o indivíduo-soldado deverá marchar ao passo do batalhão, isto é, dos interesses gerais, expressos por todos nós.
Nós não podemos aceitar, dentro do MAC, um estilo de trabalho de democracia liberal. O MAC deve trabalhar democraticamente, sim senhor, mas ele deverá possuir cabeça, tronco e membros. Eu sou pela democracia metódica, organizada, e com órgãos de centro e de periferia, com funções hierarquizadas e bem definidas. O MAC deverá trabalhar como um único corpo humano e não como uma série de corpos individualizados e tomando direcções diferentes.
8 – O H.M. [Hugo de Menezes], dentro da nova estrutura do MAC, deveria ser considerado um delegado, com actuação bem definida e limitada. Ele deveria estar ligado ao «comité de coordenação geral». Ele não pode sentir-se responsável apenas diante da Secção de Paris. Uma secção, seja ela qual for, é apenas uma organização regional: não é ou não deverá ser um organismo de orientação do MAC.
Tem valor que ele tenha pedido um empréstimo «remboursable après la libération». Mas este empréstimo, nas suas condições, só poderá ser negociado pelo «comité de coordenação geral» em íntima colaboração com os membros do MAC. Além disso, os dirigentes do país ao qual ele fez essa proposição vão perguntar, seguramente: Libération de quel pays? Estamos a ver os problemas sérios que esta provável pergunta vai levantar. Isto prova, portanto, que não podemos fazer proposições levianamente, ainda que as proposições sejam, como no caso, ditadas por necessidades incontestáveis.
Estou de acordo com a malta de Paris, quando eles insistem na necessidade de se criar e reforçar organismos de feição nacional, que actuem interiormente e sobre o terreno concreto de cada colónia. Cada organização deverá nascer do chão de cada região, de cada território, de cada colónia. É aí onde cada organização deverá ter bem fixas as suas raízes. O MAC deverá ser apenas um ponto de confluência de todas as correntes. A grande missão do MAC é o de combater pela unidade de acção e, se possível, de organização, de todas as organizações de cada colónia. O MAC, em boa verdade, não pode substituir, em eficácia, representatividade e conhecimento locais, as organizações de carácter nacional. Isto é claro.
9 – A carta do Adriano [A. Lima Araújo], interpreto-a de duas maneiras: ou teve iniciativa no grupo que ele representa ou é uma manobra de auscultação indirecta de responsáveis do país onde ele está. Acho que a proposta do Adriano deverá ser estudada pelo Abel. Este diz que há, na sua terra, a organização P.A.I. Sendo assim, tendo em conta os interesses da unidade do movimento da «G.-portuguesa», nós deveremos, mais acertadamente, pôr em contacto as organizações da «G.-portuguesa», a fim de elas procurarem um meio de colaboração íntima. O MAC poderá e deverá, nesta questão, agir como mediador, tendo sempre em vista a unidade do movimento combativo nesse país. Eis uma tarefa concreta que está bem dentro da missão do MAC.
Em face desta questão, surge, mais uma vez, a necessidade de o Abel estar fora. É claro: como não podemos oferecer-lhe garantias de viver facilmente aqui fora, ele deverá aceitar, por si mesmo, a responsabilidade das dificuldades que certamente encontrará aqui no exterior.
A saída da malta lá da serra da Estrela não deverá, penso, ser em massa, mas metódica.
10 – Podes continuar a escrever-me para o endereço que te enviei. Mas há uma alteração a fazer. Não escrevas o meu nome no envelope. No envelope põe apenas o nome da pessoa intermediária. A carta para mim deverá vir dentro do envelope exterior, e dentro de um outro envelope fechado. Houve dificuldade para os correios darem a carta registada. Os correios queriam que eu assinasse o talão de registo. Mas a pessoa amiga está do outro lado. Estás a ver a dificuldade.
Cumprimentos a todos. O meu melhor abraço
ass.) V.
11 – Quis deitar esta carta no correio, hoje, mas foi-me impossível. Estou a morar agora no bairro do Laub. A esta família não voltei a ver, depois da primeira e última vez que lá estive.
Vou aproveitar responder a outros pontos da tua carta.
12 – Falas da conveniência de frisar a Paris que as resoluções que envolvam problemas de princípios só devem ser resolvidas por um grupo de elementos e não por um elemento. Não sei o que queres dizer bem com isso. Se se dá o caso de que a resposta para o H.M. foi feita e assinada só por um elemento de Paris, não me parece haver dúvidas de que tal facto é, não só de rejeitar, mas também de solicitar que não seja repetido.
Na tua carta não dizes o que foi pormenorizadamente estabelecido com os nossos amigos, no respeitante à correspondência, quando estiveste, há pouco, naquela cidade. Receio que essa vossa resolução vá criar problemas e levantar melindres. Na expectativa de informações a este respeito, emito a opinião de que nenhuma resolução escrita de Paris deverá ser expedida daquela cidade, sem que ela tenha sido discutida pelos três únicos elementos que lá estão e sem que esses elementos tenham chegado a unanimidade sobre os pontos de qualquer resolução escrita.
Seja o que for, tenho a sensação de que tudo quanto se possa dizer agora para evitar isto ou aquilo, é o mesmo que tentar tirar com a concha da mão a água que invade um barco que se afunda. Para a anarquia a que chegaram as coisas, só me parece haver um remédio: nova estruturação e novo estabelecimento de responsabilidades e tarefas.
Salvo o erro, tu mesmo agiste desacertadamente. Se foste incumbido das relações exteriores, só podes subestabelecer em outras pessoas poderes semelhantes aos teus com autorização prévia dos organismos que te deram a ti esses poderes. O teu gesto, salvo erro, pretendeu, praticamente, substituir a autoridade do organismo superior que criou o teu cargo e que te delegou poderes. Há que repensar nisto tudo e corrigir o que deve ser corrigido.
13 – Recebi os documentos que enviaste com as tuas cartas de 19 e 26 do mês passado.
14 – A fim de preenchermos, com eficácia, o programa da rádio Conakry, sou de parecer que se deva começar a organizar um ficheiro para os problemas actuais de Cabo Verde e Guiné: questões referentes às medidas legislativas do governo luso sobre administração, polícia, exército, exploração económica (de companhias privadas e do Estado), instrução, acordos entre Portugal e outros países referentes àquelas duas colónias, etc. O «comité de propaganda e publicidade» encarregar-se-ia de redigir programas periódicos para as emissões daquela rádio, com base, sobretudo, nos elementos fornecidos pelo ficheiro a que me referi.
15 – Agora uma questão pessoal: Dentro da nova estruturação do MAC, eu não gostaria de possuir nenhum cargo dentro de qualquer dos comités. Preferirei trabalhar como membro de base, e podeis ter a certeza de que me interessarei permanentemente por todos os problemas do MAC: apresentarei sugestões dentro dos direitos gerais de cada membro, e aceitarei, com prazer, desincumbir-me das tarefas temporárias que me forem marcadas. Essa minha posição será boa, não só tendo em conta a minha experiência passada, mas também porque é necessário que gente nova venha para a frente ganhar experiência e sentimento de responsabilidades.
16 – Nossos amigos daí: Na verdade, não é uma boa coisa que eu não escreva a ninguém. Preciso de escrever. Vou fazê-lo logo que possa. O preenchimento dos meus compromissos aqui e uma certa indisposição física não são suficientes para justificar o meu silêncio em relação a eles. Até aqui, estou de acordo.
Quanto às démarches (desta ou daquela origem, não importa) para tirar nabos de púcaros a meu respeito, convido-te a veres nisso a primeira prova do meu cuidado em não fornecer, a nenhum estranho aos nossos interesses, informações, da minha lavra, a meu respeito. Outras coisas, que mais espantarão, estão para vir.
Só vos peço, com toda a minha energia, que tomeis em relação a vós mesmos medidas semelhantes. Nada perdereis em ser prudentes. Actuai e falai tendo em conta a perspectiva futura dos acontecimentos. É para o futuro que devemos olhar sempre. O presente é falaz e está a desaparecer.
Num dos últimos números do «L’Unitá» vem uma reportagem sobre Portugal. A França está a fornecer material de guerra àquele país. Nesse jornal vem uma fotografia de tanques desembarcados em Lisboa. Isso significa que os amigos de Paris, mais dia menos dia, sobretudo com o desenvolver da nossa actuação no terreno internacional, vão ser incomodados pelos sócios dos portugas. Isso não seria inédito. Eu mesmo já passei por experiência semelhante naquela cidade. Por consequência, é legítimo perguntar até que ponto é aconselhável que os nossos amigos de Paris tenham em casa documentos sobre o nosso movimento. Que medidas eles já tomaram para evitar que os sócios dos portugas cacem o que não convém que caia nas mãos deles?
Tu mesmo já pensaste na hipótese de as autoridades daí, sob qualquer pretexto, te passarem uma busca? Impossível? Não acredito. O actual presidente da república desse país, onde estás, quando esteve há tempos na União Sul-Africana, teve a coragem de afirmar que «o problema dos indígenas está aqui (na União Sul-Africana) em boas mãos». Li isto no número de Setembro, deste ano, da «Démocratie Nouvelle». Vou mandar-te este artigo, logo que possa.
Tudo isto está dentro das tarefas do «comité de controle» a que me referi atrás. Este comité, entre outras missões, estaria alerta sobre a situação no terreno em que os membros do MAC actuariam. Como vês, tarefas vivas e necessárias a nós, já no momento actual.
Mais uma vez, abraços a todos.
V.

[Acrescentado à mão: Beijos ao Paulinho. Este «gajo» deve ser agora um dos chefes da garotagem do jardim! Se tiveres uma foto dele, recente, manda-me.
V.]

Carta de Viriato da Cruz (Berlim) a Lúcio Lara

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