Carta de Viriato da Cruz a Lúcio Lara

Cota
0007.000.010
Tipologia
Correspondência
Impressão
Manuscrito
Suporte
Papel comum
Remetente
Viriato da Cruz
Destinatário
Lúcio Lara
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
5
Observações

As duas últimas páginas foram rasgadas. Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

Carta de Viriato da Cruz
[manuscrita]

Berlin, 8.10.59
Caro Lara,

Volto a referir-me às tuas últimas cartas.
Ainda não sei quando poderei sair daqui. Ainda não foi resolvido o contrato que desejo assinar com a editorial e pelo qual espero receber algumas massas que possibilitem viajar. A fazer viagem, não me interessa ir para a Bélgica, pois o caso do meu passaporte não me assegura um séjour calmo na Bélgica. A minha situação actual aconselha-me a sair daqui apenas com o propósito resolvido de seguir directamente para a África. De outro modo, é embrenhar-me inutilmente em problemas chatos.
1 – Acho que os termos da resposta do K. Fodéba para o Mário não poderiam ser muito diferentes. Já sabemos o suficiente para acreditar que todas as questões tratadas com organismos oficiais ou com personalidades públicas (en tant que investidas nos seus cargos) revestem sempre um carácter cuidadosamente diplomático. Mesmo quando esses organismos ou essas personalidades são africanas. É esse um fenómeno normal das relações oficiais e diplomáticas em todos os Estados. Foi precisamente por esse motivo que fui de opinião que contactássemos, desde o princípio, com o Hon. Presidente, não na sua qualidade de ministro, mas na sua qualidade de dirigente de partido político. Isto daria um carácter menos oficial e mais particular às suas relações connosco, e, portanto, poderia facilitar-lhe a solução dos problemas que lhe púnhamos.
2 – Quanto à questão de artigos sobre os acontecimentos na n/ terra e na Guiné, acho que isso deve depender mais da nossa iniciativa particular do que de um plano para a actividade de todos nós nesse sentido. Quer dizer: qualquer um de nós que tiver a possibilidade de publicar algo sobre tais acontecimentos deve fazê-lo imediatamente. O fundamental é que sejam alguns a trabalhar nesse sentido e não somente um ou dois. De outro modo, far-se-á pouco. Dizer que se deve esperar a publicação na «GAUCHE», para depois jogar com esse artigo junto de outras publicações ou de personalidades, é um facto, na verdade, com algum valor, mas não com um valor total; isto é, não nos pode satisfazer completamente. Nada nos garante que a outra imprensa se comova ou se convença a publicar também algo em face do artigo na «Gauche». Aliás a imprensa europeia, como sabemos, está mergulhada em ciúmes, em interesses particulares, e está dividida por preconceitos ou por justas razões políticas de umas em face das outras. Enfim, compreenderás certamente o que quero dizer.
3 – Como te disse, escrevi um pequeno artigo para um jornal de Berlim, o qual fiz acompanhar com 10 fotografias do caso de S. Tomé. – Ontem acabei de escrever outro artigo somente sobre Angola, ao qual junto duas fotos que o Soromenho dera ao Mário: jovens pescando e uma mulher cuanhama cozinhando com o filho às costas. Deves conhecê-las. Este último artigo deixei-o já, hoje, na redacção do mesmo jornal. Hoje também soube que o dito jornal não deseja publicar o meu primeiro artigo com a forma em que o escrevi. Querem um estilo leve, de reportagem. Não lhes disse que não faria como eles querem para não fechar para sempre uma porta que não convém, de algum modo, torná-la intransponível para nós só por causa de um caso, de um caso meu, pessoal. Mas, aqui para nós, essa condição pedida pelo jornal é chata porque se baseia apenas nos interesses do dito jornal sem ter em conta os nossos ou as minhas conveniências. Seja como for, é tempo e trabalho que perco.
Por este correio, envio-te cópias dos dois artigos. Autorizo-vos a utilizá-los; isto é: vocês, com base neles, podem introduzir nova matéria ou cortar algumas passagens deles. Depois disso, vocês podem publicar os trabalhos assim feitos na imprensa que vos oferecer oportunidade.
4 – Vou continuar a escrever mais artigos que irei enviando, com alterações aqui e ali, para diversos jornais de diversos países. Alguma coisa há de sair a público, ao fim e ao cabo da minha insistência.
5 – Vou enviar-te uma cópia do trabalho que escrevi até hoje, a fim de vocês apresentarem-me sugestões e críticas. Não t’o envio hoje, porque não posso gastar, por precaução, o dinheiro do outro lado que me resta.
6 – Quanto às resoluções tomadas em Paris sobre os nossos contactos ou relações com outras organizações, isto quase não me impressiona. Porquê? Porque, por exemplo, o pensar em contactar o Goan League é um fenómeno velho. Há mais de um ano, o Mário ofereceu-se para estabelecer esse contacto, se nós lhe ajudássemos nas passagens para a viagem a Londres, onde ele tinha, nesse momento, um certo interesse com uma senhora. Também por motivos igualmente pessoalistas, a mesma gente, que em Paris disse que sim a muitas sugestões, havia se oposto à sugestão de se criar uma secção juvenil ou estudantil da nossa organização e filiá-la à União Internacional dos Estudantes, por exemplo. Essa sugestão nem sequer chegou a ser transmitida a Lisboa, como pedi na altura. Em face da minha experiência em Paris, eu desconfio da fácil realização do que foi ultimamente resolvido e receio que a liberdade de movimentos, que a secção de Paris pediu, possa trazer inconvenientes para a marcha geral dos nossos interesses. É evidentemente [sic] que a secção de Paris já devia ter tido oportunidade para se desarmar de certas presunções exageradas que ela alimentava. Ela teria já podido compreender que, nos nossos países, ninguém está à espera da sabedoria de Paris para resolver os nossos problemas. A própria maneira como eu contornei e ultrapassei as minhas dificuldades com que as gentes de Paris se solidarizavam de certo modo, isto também poderia ter-lhes feito compreender que se pode andar para a frente mesmo sem eles. Quer dizer: a posição dos amigos de Paris, em face de alguns factos concretos, pode ter-se modificado; e é possível, sim senhor, que entremos todos nós numa nova fase de trabalho mais produtivo e compreensivo. Mas nada de optimismos exagerados. Que estejamos vigilantes e que aguardemos os factos.
7 – Na lista da malta presa, há nomes de indivíduos que, no passado, trabalharam para os colonialistas. Refiro-me especialmente à: André Mingas e Mário da Silva. Este último foi um dos responsáveis da prisão, há dezenas de anos, de um grupo de angolanos que fora acusado de ter enviado um relatório à antiga Sociedade das Nações. Enfim, os homens mudam e costumam também, às vezes, aprender com a vida. É possível, portanto, que aqueles dois indivíduos tenham hoje posições honestas.
Digo-te isso para que tomeis as necessárias cautelas e para que possais compreender melhor as tácticas e ardis utilizados pela Pide.
8 – Aconselho-te, mais uma vez, a não enviar nada para o jornal ABC. Como te disse, o director desse jornal é um colonialista de 4 costados, ex-ladrão, e que tem contactos flagrantes com a Pide em Luanda. Não confundas a posição de uma ou 2 pessoas, que trabalham nesse jornal, com os dirigentes do mesmo.
9 – Receio que as nossas cartas para amigos do e no Congo Belga não venham a ser devassadas e controladas pela polícia belga. Não esqueçamos que há uma íntima colaboração entre as polícias de todos os países com colónias em África, e, em especial, entre a do Congo B. e Angola. Não sou contra a necessidade de, desde já, se contactar com amigos do Congo B. Sou de opinião, porém, que devamos encontrar e utilizar os meios que garantam segurança a esses contactos.
10 – Concordo convosco em que já é tempo de o Abel [Amílcar Cabral] vir definitivamente para fora. Não só pelos riscos que está a correr, mas pela falta evidente, que temos, de mais gente capaz e que trabalhe. Somos poucos e as nossas energias ainda não estão, infelizmente, ao nível das realizações que os acontecimentos exigem de nós. A propósito, e de passagem, devo dizer que me sinto particularmente doente; devo ter algo de anormal no meu sistema circulatório e no meu coração.
Bem, até à próxima. Brevemente.
Cumprimentos a todos. O m/ melhor abraço para ti.
V.

P.S. – Não te mando cópia do 1º artigo que escrevi, porque tenho-o infelizmente numa mala que deixei na «consigne» da gare de outra cidade.
Baseado no meu 2º artigo, vocês podem fazer outros que destinarão, por exemplo, à «L’UNITÀ».
Escreve-me, na volta do correio, para o seguinte endereço, dando-me notícias sobre o andamento da questão do visa e outras:
V. da Cruz
bei Loni P. Michelis
Berlin – Wilmersdorf
Laübenheimerstr. 15
Mas manda todas as cartas sob registo.
V.

Carta de Viriato da Cruz (Berlim) a Lúcio Lara

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