Carta de Viriato da Cruz a Lúcio Lara

Cota
0007.000.005
Tipologia
Correspondência
Impressão
Manuscrito
Suporte
Papel comum
Remetente
Viriato da Cruz
Destinatário
Lúcio Lara
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
3
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

Carta de Viriato da Cruz
[manuscrita]

4. Outubro 1959
[Acrescentado à mão por L. Lara: R 7/X/59]
Caro Lara,

Recebi o teu telegrama, a que respondi ante-ontem. Recebi igualmente, na semana passada, a tua carta relatando o encontro de Paris.
Perguntas-me quando saio e por que via. Eu pergunto-me se devo sair. O m/ passaporte caduca dentro de 14 dias. Para onde irei? Fará sentido que eu vá para a Bélgica ou para aí? O que me garante uma solução satisfatória do meu caso? [Sublinhado por L. Lara]
É possível que saia, uma vez que assine contrato com a editora aqui, e uma vez que me adiantem o dinheiro suficiente para uma viagem directa, por barco, até África.
Também já não tenho lata para pedir aqui ajudas de viagem. Não peço.
Não te escrevi há muitos dias porque concentrei todos os meus esforços e todo o meu tempo no trabalho que tinha de acabar em 28 de Setembro. Era esta a data-limite para dar uma cópia do meu trabalho à união. E na verdade esse foi o meu compromisso e essa era a minha obrigação moral. Cumpri tudo. Dei-lhes uma cópia com 130 folhas do m/ trabalho.
A partir de ontem já não estou na casa de repouso. O pessoal entrou em férias e a casa está em reparações. Também já não estou a cargo da união.
Escrevo-te hoje de uma pensão, em Berlim. Amanhã de manhã tenho de deixar o quarto e procurar outro. Quase impossível encontrar um quarto para mais de uma noite. Há muitos forasteiros na cidade em virtude dos festejos do décimo aniversário da República.
Amanhã ou depois vou mandar-te um endereço para mim. Talvez do outro lado.
O m/ visa para aqui é válido até o dia 15. Depois desta data, não sei como sairei deste par de botas, pois já não estou sob a protecção da união. Possivelmente irei à Polónia: já fiz as primeiras diligências nesse sentido. Não sei se pegarão.
Até lá, vou viver aqui de escrever artigos.
2 – Outros assuntos: Do encontro de Paris não tenho nada de especial a dizer. Estabeleceram-se compromissos; afastaram-se as reservas pueris dos meninos de Paris. E agora? Agora, há que esperar que os factos provem que Paris está a colaborar com actos ou se se mantém na posição habitual de pedra dentro do sapato.
Não sei se vocês combinaram sobre as condições em que Paris utilizará os impressos com o carimbo do MAC. Quem assina? Sobre que assuntos estão autorizados a escrever? A redacção da correspondência deles está sujeita ao controle de quem?
Eu sou pela democracia; mas por uma democracia centralizada, com cabeça, tronco e membros.
Recebi uma carta, através da Bélgica, do Abel [Amílcar Cabral]. Vinha acompanhada de um relatório que ele deixou na Guiné. Essa carta foi enviada por ti ou pelo Abel? Não te mando cópia da mesma, porque a não tenho aqui comigo. [Na margem, por Lúcio Lara: Essa carta ia incluída numa minha]. Todas as minhas coisas estão na «consigne» na estação. Eu só ando com escova de dentes e gillette no bolso.
Escrevi um artigo para um jornal de Berlim. Dei todas as fotos de S. Tomé. [Sublinhado por L. Lara, que acrescenta à mão: convém que regressem] Vamos a ver se o publicam.
Até a próxima quarta-feira, vou escrever outro artigo sobre Angola. Para o mesmo jornal.
O Rocha sempre parte? Quando?
Caso da Noémia: Chato. Mas lógico. Eis um exemplo vivo do que o Mário chama revolucionarismo luso-tropical. Estou de acordo c/ o Mário em que existe efectivamente esse fenómeno entre nós. É um revolucionarismo de atitudes, verbal, sentimental. Um revolucionarismo que muda com o vento dos sentimentos. Hoje é a educação do sobrinho (educação em que ambiente? Sob que condições?). Amanhã é o casamento, é o problema da dentição do menino, é o emprego, é a avó que teve um colapso cardíaco. Enfim, histórias vulgares. Tudo isso está muito impregnado da pequenez de pensar, de querer e de agir do Português. Lusismo nos trópicos.
As cartas do Mário, enviei-as aos destinatários.
Estou de acordo com as cartas que ultimamente escreveste ao Padmore, bem como as diligências tomadas acerca do caso do Espírito [Guilherme Espírito Santo]. A malta de Paris está a começar a sentir o duro da vida. É possível que essa nova fase lhes faça compreender o sentido dos esforços despendidos até hoje para nos organizarmos e agirmos dentro de uma organização. Afinal, eles verão que isso é útil até para eles. O Marcelino ainda recebe subsídios do papá; mas mais tarde ele despertará do mundo cor-de-rosa da juventude estudante.
3 – Se puderes, escreve ao Secretariado do Cairo, a pedir-lhes cópias, para nós, dos comunicados que eles publicam. Queremos receber, sempre que possível, esses comunicados.
Não escrevi a esse Secretariado sobre o caso das colónias, sobre os últimos acontecimentos. Vocês podem fazê-lo aí.
Não mudem o nome das organizações. O Secretário do Cairo bem como o de Accra, chamam-se secretariat e não secretaryship. Este último termo, como sabeis, é abstracto.
Também acho ser tempo de vencermos o nosso desconhecimento sobre questões protocolares. É fácil informarmo-nos a esse respeito. Basta ler os «livros brancos» dos Estados; livros sobre diplomacia; e correspondência trocada entre personalidades políticas. Nós estamos metidos nesses affaires; logo, temos de conhecê-los. O que não podemos é pedir sempre que nos desculpem as mesmas ignorâncias. Aliás, isto deixa má impressão a nosso respeito.
Escrevo-te sem ter presente nenhuma das tuas cartas. É possível que não te responda agora a muitas perguntas tuas. Vou agora procurar quarto. Se reunir as m/ malas, posso responder-te mais circunstanciadamente.
Cumprimentos à Ruth, ao Rocha, à tua família. Beijos ao Paulinho. Este deve estar um espertalhão!
V.

Carta de Viriato da Cruz a Lúcio Lara

A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

Nomes referenciados