Artigo de Mário de Andrade para La Gauche

Cota
0006.000.102
Tipologia
Texto de Análise
Impressão
Policopiado
Suporte
Papel comum
Autor
Mário Pinto de Andrade
Data
1959 (estimada)
Idioma
Conservação
Razoável
Imagens
7
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

Artigo de Mário de Andrade em "La Gauche" [dactilografado – sem data]1 POR DETRÁS DA CORTINA DA MENTIRA E DO MEDO INQUIETAÇÕES E VAGAS DE TERROR EM ANGOLA O maior slogan da política interna e externa de Portugal é sem dúvida o da tranquilidade e satisfação paradisíacas que reinam nas chamadas "províncias portuguesas" (sic) do Ultramar. Todos os dias os jornais portugueses, mormente os das colónias, num gesto evidente de quem nos quer lançar poeira aos olhos, publicam extensos artigos em que nos são contadas e cantadas as delícias da "pax lusitana", e que nos põem em guarda contra os agitadores de fora e contra os "ventos que sopram do Leste". Frequentemente surge no estrangeiro quem, com uma inconsciência de arrepiar, ou com evidente espírito mercantil, presta ouvidos complacentes a estas despudoradas mentiras, e aparecem na imprensa estrangeira artigos exaltando a incomparável obra dos colonialistas portugueses, o seu espírito de fraternidade cristã, o surto de progresso que estão imprimindo às suas possessões, a tranquilidade e a paz que reinam naqueles bocados de céu "pelo mundo em pedaços repartido", como cantou um dos seus poetas. Ainda não há muitos dias, apareceu no jornal "O Mundo Português" do Brasil um artigo intitulado "Consciência do Dever" em que se escrevia, entre outras muitas baboseiras, o seguinte: "A unidade da Nação lusa é indiscutível e indiscutida. É certo que surgem, de quando em quando, boateiros preconizando dissensões e proclamando existirem inquietações nas Províncias do Ultramar. Todavia nada de sério existe, senão na vontade dos poucos inimigos do actual governo de Portugal. Ultimamente os palradores procuram referir-se à situação nas Províncias ultramarinas. E falam de incidentes, de recalques, de anseios de liberdade... Em nenhuma dessas Províncias há inquietação. Não há em qualquer desses pontos do todo lusitano conflitos, nem, tão pouco, vozes que se ergam contra o governo central. Angola e Moçambique, para citar apenas as duas maiores Províncias ultramarinas de Portugal, são forjas de trabalho e de paz. Seus naturais laboram, realizam, criam, esforçam-se ao lado dos europeus, identificados com o ideal comum que é a grandeza nacional (o sublinhado é nosso). É possível que haja algum perigo. Mas este é de ordem externa, de estrangeiros que invejam a evolução, o avanço extraordinário que se processa em todas as terras do Ultramar português... Se os inimigos existem, pois, são eles do exterior. São agentes imperialistas que se não conformam com o clima de ordem, de paz e de trabalho que impera em todos os pontos onde tremula o pavilhão da Lusitânia". Isto é um pano de amostra das inúmeras mentiras que todos os dias aparecem na imprensa e na rádio, quer portuguesas, quer estrangeiras. Todavia, se os africanos tivessem a palavra... Mas não! Em Portugal e nas suas colónias, a ditadura de Salazar matou toda a liberdade de pensamento e de associação. Nenhum jornal pode ser publicado sem ser "visado pela comissão de censura". Partidos políticos, só um – a "União Nacional" de Salazar. Sindicatos, só os controlados pelo Governo. Nas colónias, então, nem sequer se pode pensar em publicar jornais ou fundar sindicatos dos africanos e para os africanos. A bota da ditadura e do colonialismo esmaga toda a cabeça que pretenda levantar-se, imobiliza todo o braço que queira agir, faz emudecer toda a língua que ouse reclamar. Para isso tem o Sr. Salazar uma polícia hábil e activa – a terrível P.I.D.E. (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) – que não fica nada a dever à Gestapo de Hitler. Para esses "rebeldes", "indesejáveis", "comunistas", "perturbadores da ordem", existem as prisões e os campos de concentração. Senão, vejamos: Numa tarde de domingo, no dia doze de Outubro de 1958, 24 negros foram presos num campo de futebol dos arredores de Luanda (capital de Angola), e depois de maltratados na prisão, onde permaneceram longo tempo incomunicáveis, sem culpa formada e sem a mais rudimentar defesa, foram finalmente deportados para os campos de concentração do sul de Angola (Moçâmedes, Baía dos Tigres, Porto Alexandre, etc.). Entre esses deportados contava-se uma mulher, de nome Filipa Manuel, com uma criança de colo. O crime destes desgraçados foi terem enfrentado, em legítima defesa, alguns "colonos" que alvejaram a tiro alguns negros indefesos, em consequência duma dessas vulgares zaragatas que se costumam armar nos campos de futebol. Claro está que os beneméritos "colonos" nem sequer foram incomodados pela Polícia. Factos destes sucedem a cada passo, sem que seja possível lançar o mais apagado grito de revolta ou protesto. E os jornais, todos eles colonialistas "à outrance", guardam, claro está, sobre estes factos, o prudente silêncio de Conrado. Mas há mais. Na manhã de Páscoa deste ano corrente (dia 29 de Março), a terrível P.I.D.E. desencadeou sobre a pacífica população negra de Luanda uma autêntica operação de terror. Foram então presos (aguardando ainda julgamento), Lucrécio Mangueira, António Pedro Benge, Fernando Pascoal da Costa, Sebastião Gaspar Domingos, Agostinho [de] Carvalho, Contreiras [António José C. da Costa], Joaquim de Figueiredo, Belarmino Van-Dúnem, André Mingas, Pascoal de Carvalho, João Lopes Teixeira, Armando Ferreira da Conceição, Muxinda Kindamba, Kimbi Gunga e muitos outros. Decorrido algum tempo, novas operações de terror e novas prisões em massa. A população de Luanda, que a princípio seguia com atenção e o coração apertado as incursões da P.I.D.E. nos domicílios, nos escritórios e nas repartições públicas, acabou por ficar desorientada e perdeu o número dos presos. Retenhamos todavia alguns nomes, entre os mais conhecidos: Ilídio Machado (preso em Lisboa, enquanto se encontrava em férias, e dali trazido a Luanda), Higino Aires, André Franco de Sousa, Gabriel Leitão Pereira, Carlos Aniceto Vieira Dias (mais conhecido por Liceu), Manuel dos Santos (conhecido por Capicua), Mário Guerra, António Rebelo de Macedo, Dias Nobre, Noé Saúde, Luís Rafael, Eduardo Correia Mendes, Mário Augusto da Silva, Carlos Alberto dos Santos Van-Dúnem (Beto), Francisco José Africano, Amadeu Amorim, o poeta Mário António de Oliveira, Mário António Soares de Campos, Manuel Alves da Cruz, Abílio Rodrigues da Costa, o cidadão norte-americano Francisco Javier Hernandez, natural de Cuba. Miguel Fernandes (Catuto), preso enquanto fazia escala por Funchal a caminho de Lisboa, e António Monteiro ficaram doidos em consequência dos maus tratos sofridos nos calabouços, e foram por isso internados na Psiquiatria de Luanda. Já meses antes, uma outra vítima da P.I.D.E. (um dos irmãos Benge) ficou até agora paralítico e mudo, em consequência dos maus tratos recebidos. Serão também julgados, apesar de se terem escapado às malhas da P.I.D.E., Matias Miguéis, angolano residente actualmente na República do Congo, e dois cidadãos estrangeiros – Laurence Holder, negro-americano, e Karl Dogbe, natural de Ghana – ambos residentes em parte incerta. Tem larga e profunda significação humana o facto de que os presos pertencem aos mais diversos credos políticos e religiosos, aos mais variados níveis de cultura. Há entre eles católicos e marxistas, protestantes e indiferentes, funcionários do Estado e humildes operários, sobas (autoridades tradicionais) e simples cobradores. Nem faltam mesmo alguns brancos, que, havendo cometido o "crime" de se solidarizarem com as reivindicações dos negros, foram também dar com os ossos na prisão. São bem conhecidos em Luanda os nomes do Engenheiro Calazans Duarte, Arquitecto Veloso, Doutora Julieta Gândra (médica), José Meireles, Helder Neto, José Graça, José Cardoso, Adolfo Maria e o poeta António Jacinto. A lista está simplesmente no princípio. Muito mais prisões foram feitas, e aguardam-se ainda muitas outras. A espada de Dámocles está agora suspensa sobre dois sacerdotes católicos nativos: o Cónego Manuel das Neves e o Padre Pinto de Andrade. São duas das personalidades eclesiásticas mais em evidência em toda Angola. O Cónego Neves, Prelado Doméstico de Sua Santidade, é pároco da Sé de Luanda, Deão do Cabido Metropolitano e Vigário Geral da Arquidiocese de Luanda. O Padre Pinto de Andrade, Licenciado em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, é Professor do Seminário Menor e Maior de Luanda e Chanceler da Arquidiocese. Note-se de passagem que os cargos de Vigário Geral e de Chanceler são os dois lugares mais importantes a seguir ao Bispo diocesano. Contra estes dois Padres lançou o Tribunal um despacho de pronúncia, propondo que ambos sejam interrogados pela Gestapo de Salazar (a terrível P.I.D.E.), a fim de averiguar até que ponto vai a responsabilidade deles na maturação da consciência africana e a sua participação na luta clandestina do Movimento de Libertação de Angola. Acabarão eles também por serem presos? A população de Luanda (é de notar o grande prestígio de que estes dois sacerdotes africanos gozam, quer entre os negros, quer entre os brancos) não alimenta ilusões a esse respeito. Eles sabem muito bem que a ditadura de Salazar e o colonialismo português riem-se da opinião pública (seja esta nacional ou internacional) e não temem o poder moral da Igreja. E apontam dois exemplos recentes e desanimadores: O General Humberto Delgado, candidato da Oposição nas eleições presidenciais de Portugal o ano passado, teve que pedir asilo político na embaixada do Brasil e exilar-se para aquele país. E contudo tratava-se de uma das personalidades mais prestigiosas e sem dúvida a mais popular de Portugal. O Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, por ter ousado criticar, numa carta aberta, a política de Salazar, que reputou contrária à doutrina social da Igreja, viu-se obrigado a exilar-se em França. Contudo a P.I.D.E. continua hesitante no que diz respeito à prisão dos dois padres africanos acima referidos. Temem, de qualquer modo, a reacção do povo (pois que estes padres são duas espécies de símbolos para os negros de Angola), e receiam entrar em conflito com a Igreja e perder assim o apoio desta na colónia. Ninguém, com efeito, ignora, que as Missões foram as precursoras do colonialismo português e continuam sendo o seu baluarte mais eficaz. Quais os crimes de que são acusadas todas estas vítimas da Gestapo de Salazar? O seu grande crime é o de lutarem pela liberdade. Não alimentam outra ambição senão a de romperem as correntes da escravatura. Para isso se organizaram os angolanos em grupos clandestinos de 2 e 3 e se lançaram num largo Movimento de Libertação de Angola. Foram distribuídos clandestinamente numerosos panfletos passados a ciclostil, nos quais se gizavam programas de acção, se faziam proclamações de luta anticolonialista, se denunciavam as injustiças, as violências, os propósitos imperialistas e as mentiras dos "patrões" portugueses. Antes do Movimento de Libertação de Angola, já outros movimentos se tinham organizado: PLUA (Partido para a Luta Unida de Angola), ELA (das iniciais dos pseudónimos dos principais iniciadores do movimento), Movimento de Libertação Nacional, etc. Infelizmente, a P.I.D.E. trabalha com uma rede de espionagem bem montada, contando com inúmeros informadores entre a população negra, aos quais remunera generosamente. Em virtude de inconfidências, denúncias e uma certa inexperiência neste género de luta, a Gestapo do Sr. Salazar acabou por descobrir muitos centros de irradiação da luta antiesclavagista, e mais de uma centena de abnegados combatentes da liberdade foram parar às masmorras. Os maus tratos sofridos nas prisões da P.I.D.E. já se tornaram proverbiais. Todos ou quase todos passaram pela "clássica" tortura da "estátua", a qual consiste em obrigarem o preso a manter-se dias e noites seguidos em pé, sem poder sequer encostar-se nem muito menos dormir, até "confessar" os "crimes" de que é acusado ou denunciar pessoas que a P.I.D.E. persegue. Muitos sofrem injúrias, bofetões, ameaças de toda a ordem... Agora, terminada a instrução dos processos, foram estes entregues ao Tribunal de Luanda. Dentro de um ou dois meses (não se sabe ao certo quando) começam os julgamentos. Qual será a atitude dos juízes e quais as penas que cairão sobre os presos? Eles são acusados de haverem incorrido no crime de que fala o artigo 151 do Código Penal Português, ou seja de crime contra a segurança interna e externa do Estado. As penas previstas vão de um mínimo de dois anos até um máximo de 24 anos. Trata-se do crime mais grave do Código Penal Português. Haverá no mundo chamado livre democratas corajosos e lógicos, que se resolvam a desencadear uma campanha através da imprensa, da rádio, das organizações sindicais, políticas e culturais, das instâncias internacionais, a fim de evitar que estes batalhadores da liberdade, na maioria jovens, vão apodrecer nas masmorras da P.I.D.E., talvez deportados para a Ilha do Sal (no Arquipélago de Cabo Verde)? Que fazem a ONU e a sua Comissão das Curadorias? Para que existe a OTAN? Para que é que foi escrita a Proclamação dos Direitos do Homem? Se não se abre uma veemente campanha de imprensa no campo internacional, os fascistas portugueses não hesitarão em condená-los a pesadas penas. Para eles não conta a reacção (praticamente nula) dos cinco milhões de negros de Angola. Aliás, se estes ousassem levantar a cabeça, lá estariam as metralhadoras para os reduzir ao silêncio e à imobilidade. Os ditadores e os fascistas sempre se apoiaram no direito da força. E os colonialistas de Salazar mais do que ninguém. Ainda há poucos dias, os Altos Comandos Militares Portugueses decidiram fixar nas colónias de África a maior parte dos seus efectivos militares. E o General Gomes de Araújo, Director do Instituto de Altos Estudos Militares, no discurso com que inaugurou o ano lectivo daquele Instituto, em 3 de Novembro corrente, não teve pejo em afirmar que "a soberania nasce com as forças armadas e morre quando elas desaparecem". A afirmação não poderia ser mais categórica. A luva foi atirada. Quem a levantará? Uma grave ameaça pesa, não somente sobre as populações de Angola, mas sobre a concepção mesma de democracia e de liberdade. Haverá no mundo chamado livre democratas suficientemente honestos e coerentes para não deixarem a ameaça sem resposta?

«Por detrás da cortina da mentira e do medo», artigo de Mário de Andrade para La Gauche

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