Carta de Lúcio Lara a Viriato da Cruz

Cota
0006.000.083
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel comum
Remetente
Lúcio Lara
Destinatário
Viriato da Cruz
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
4
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Carta a Viriato da Cruz [dactilografada] 19.9.59 Caro Viriato Regressei ontem de Paris, onde me demorei mais do que tencionava, pois recebemos lá a notícia de que a Noé. [Noémia de Sousa] chegava no dia que eu tinha reservado pª partir. Assim, resolvi adiar por um dia a vinda pª contactar com ela, uma vez que soube que, devido ao facto de se ter demorado mais em Madrid do que contava, pôs de parte a sua vinda à Alemanha. O meu contacto c/ ela deixou-me algo desgostoso, pois constatei que desde que eu saí de lá ela não voltou a ter contactos; por outro lado achei-a muito desligada das nossas realidades, devido a ter compromissos com a família na educação do sobrinho que ela e a irmã fizeram vir de L.M. [Lourenço Marques]. Assim, a sua ida pª Gh. [Ghana] tornou-se muito hipotética e de certo modo função de se lhe arranjar a ela e à irmã um emprego que lhes permita ocuparem-se da criança e delas próprias. Claro que isto não é de espantar, dado que a irmã não tem de facto nada a ver com as nossas coisas. Só é pena é que isso nos faça perder uma companheira de luta que seria sem dúvida da maior utilidade. Veremos o que se arranja. Em todo o caso ela ficou de dar os respectivos curriculum à malta de Paris. Vou tentar dar-te uns apontamentos breves daquilo que foi tratado: Discutimos a acta que nos foi enviada. Chegou-se à conclusão que eles não tinham recebido uma carta nossa em que lhes dávamos conta das nossas actividades e que lhes enviámos quando fomos os dois pª Berlim. Essa carta aliás foi recebida, mas não foi «entendida» pelo Marc. [Marcelino dos Santos]. Concordaram no facto de terem reuniões pouco frequentes, devido a que cada um deles tem um tipo de vida diferente. O E.S. [Guilherme Espírito Santo] está desempregado, pois agora certos tipos não podem trabalhar em indústrias que forneçam a Defesa Nacional, o que era o seu caso. Deu-me o seu curriculum pª ser enviado pª o Gh. Uma das reservas mais importantes que eles punham ao nosso Memorandum pª a G. [Guiné Conakry] era o facto de lhes parecer que devíamos ter feito uma introdução expondo resumidamente a situação colonial portuguesa; por outro lado também o achavam imbuído de um certo pessoalismo, no que nos dizia respeito. Aceitei por boa a primeira observação, mas não concordei com a segunda e demonstrei por que razão não considerava o mem. pessoalista. Recebeu-se um telegrama do Men. [Hugo de Menezes] actualmente na G. a comunicar que o MAC estava oficialmente representado no Congresso do PDG [Parti Démocratique de Guinée] que teve lugar esta semana. Embora não tenhamos conhecimento profundo de como poderá o HM interpretar os nossos votos cremos ser um passo em frente o facto de lá termos um representante oficialmente aceite. De qualquer modo será a primeira participação oficial do Mac, na vida política de África. Ele anunciou uma carta que não chegou enquanto eu lá estive. O Már. [Mário de Andrade] recebeu uma carta do K. [Keita] Fodeba, que lhe diz muito simplesmente que os passaportes da G. só são concedidos a cidadãos g.enses. Claro que não é uma resposta de considerar, para já. Oficialmente ela pode ser válida, mas creio que só oficialmente. Basta notar o caso do poeta e professor que conhecemos em Roma, o David Diop. O M. [Hugo de Menezes] aliás pede à malta que lhe trate de mandar ir a noiva que está em Lx., o que mostra que ele já encontrou condições pª ela. Fizemos um balanço das nossas actividades e a malta em geral concordou com elas. Frisou-se que cada secção terá liberdade de movimentos apenas devendo consultar os outros em questões que estejam fora dos princípios do MAC. Discutiu-se a questão do carimbo e chegou-se à conclusão que seria conveniente eu deixar lá 50 folhas de papel carimbado, pª qualquer eventualidade. Li-lhes o conteúdo do n/ relatório pª Lx. Quanto ao problema das prisões, o Má. ficou de contactar c/ o Basil Dav. [Davidson]. Ele é de opinião (e eu concordei) que esperemos pelo artigo que vai sair na Gauche esta semana, pª depois jogarmos com esse artigo face à outra imprensa e a certas entidades, uma vez que se faz mais fé num artigo de jornal. Pensa-se contactar a FEANF, a SAC, a Liga dos Direitos do Homem, os jornais do Congo Belga (Présence Cong.), o Committee for African Organisations, o British Committee for Algerie, a Solidariedade Afro-asiát., etc. Foram do parecer que para o Cairo e Londres podíamos fazer uma coisa do mesmo teor da que fizemos pª a AAPC, cujo conteúdo lhes dei a conhecer, bem como de toda a correspondência por nós trocada. Fizemos uma previsão da nossa actuação futura e chegámos à conclusão que ela só pode ser verdadeiramente esquissada quando estivermos em África, pois só aí conseguiremos ter uma visão de conjunto das possibilidades que se nos oferecerão, coisa que aqui na Europa é, como temos tido ocasião de apreciar, tarefa assaz complicada, se não impossível. Ainda sobre este assunto lembrei que poderíamos tentar contacto directo com os dirigentes dos países da Communauté que ainda lá estivessem depois da reunião do executivo da referida Communauté. Infelizmente nessa altura só lá estava o Modibo Keita, com quem chegámos a ter entrevista marcada mas que não teve lugar por ele ter de abreviar a sua partida pª África. A malta de Paris ficou encarregada de sempre que se lhe oferecer oportunidade tentar encontrar os referidos dirigentes pª com eles trocar impressões sobre os nossos problemas. Tratámos também das oportunidades que procuramos encontrar para a nossa gente cá fora. Focou-se particularmente o problema dos estudantes, por ser o que de momento oferece mais possibilidades. Decidiu-se contactar a FEANF pª o caso concreto do Rocha, como uma primeira tentativa de abrir portas. A FEANF interessou-se pelo problema e fez seguir a nossa petição em nome de estudantes das colónias portuguesas (temos necessidade de pensar numa organização estudantil) pª a UIE [União Internacional dos Estudantes]. Vamos a ver o que resulta. O problema dos fundos subsiste. A teu respeito, se disso houver absoluta necessidade por causa do teu embarque, e se outras receitas não aparecerem até essa altura, pode-se conseguir um empréstimo até Dezembro do Marc. Portanto pelo menos não será por falta de dinheiro que deixarás de ir; o problema é que a resposta ainda não veio e as passagens não são assim tão fáceis de arranjar. Aliás nem sei quando tencionas sair daí. Penso que será por estes próximos dias. Como creio ter-te dito, antes de partir pª Paris escrevi ao Padmore; vou ver se encontro a cópia da carta para te enviar, pois fiz uma cópia pª ti. Quanto a contactos futuros pensou-se em escrever ao Goan League pª estabelecer um primeiro contacto entre as duas organizações; também se frisou a necessidade de logo que estejamos em condições de o fazer exigirmos a nossa cadeira nos diversos comités (Cairo, Accra, etc.); logo que se ofereça oportunidade contactarmos com as diversas organizações sindicais africanas, pª as quais penso eu que devemos também fazer um apelo a favor dos nossos presos. O Má.[rio de Andrade] ficou de fazer um inventário de todos os organismos com quem nos devemos relacionar para consolidar a nossa presença, base de todas as nossas pretensões. (O Césaire ficou de se informar junto do S.T. [Sékou Touré] se tinha recebido o n/ memorandum; isto não vem a propósito, mas lembrei-me agora). Sobre esses organismos, acentuou-se quanto a nós de Angola a necessidade de desde já contactarmos os organismos políticos do Congo B[elga]. Podemos fazê-lo através do Lumumba e do Iléo Joseph que parece ser o que de momento nos oferece maior interesse. O seu endereço, do Iléo, é B.P. 164, Commune Dendale, Léopoldville. O Béhanzin está em Paris e parte no fim do mês. Não consegui falar com ele por ter ido para fora. Quanto ao problema da ONU decidimos começar desde já a trabalhar numa exposição baseada naquele questionário, tendo distribuído algum trabalho pª Lisboa. Claro que se acentuou a urgência de que o trabalho seja feito e pelo sim pelo não, convém estarmos preparados para o caso da gente de Lisboa não dar seguimento ao nosso pedido. O Má. ficou de escrever a um tipo que trabalha na ONU (deves saber quem é) para que ele entre em contacto com o tal Roberto Haldane [Holden Roberto] que segundo informações que o Má. tinha já está em Nova Yorque. Simplesmente, a carta que acabo de receber do Abel [Amílcar Cabral] e cuja cópia integral te envio, bem como o documento que lhe vinha apenso e que penso ser parte de uma exposição sua a quem de direito, simplesmente, dizia eu, o tal conterrâneo deixa algo a desejar e confirma em absoluto as reservas que o Abel me fez quando eu ainda estava em Lx. Grande gaita. Vamos a ver se é possível e como impedi-lo de representar o nosso povo e desmascará-lo quanto antes. Pª já vou escrever ao Má. pª que ele suspenda o contacto que tencionava fazer com esse tipo. Deixei pª o fim a carta do Abel. Ela foi pª mim um balde de água fria nas suas referências ao Haldane. Esse nosso amigo está correndo riscos gravíssimos e na impossibilidade de encontrar alguém que se desempenhasse da missão foi ele mesmo. Pela Noé. mandámos-lhe dizer que estamos verdadeiramente preocupados com o seu futuro e que deve pôr-se a mexer. Ele aliás dá conta disso na sua carta. Ele é digno da nossa homenagem pela maneira inteligente e patriótica com que se desempenhou da sua missão. Não seria conveniente que tu e eu estivéssemos juntos antes de embarcarmos para decidir do muito que há a fazer? Não te será possível vires por cá? Que há sobre a possibilidade de ires daí directamente pª África? O Ilídio foi sob prisão pª África e na altura de desembarcar prenderam também um marítimo que lhe deu um recado da família. Isto foi a única notícia que a N. trouxe... Por ora nada mais me recorda. Não sei se o Abel também esteve no Congresso do PDG. A carta dele permite supor que isso seria possível. Escreve com urgência e diz-me concretamente a tua opinião sobre todos os pontos focados nesta carta. Penso também ser de escrever ao Barden de que fala o Abel (e isso quanto antes), a dar-lhe conhecimento de todas as démarches e a pedir que intervenha. Como vês os problemas complicam-se e urge estarmos no nosso posto, que não é evidentemente aqui. Esta vai expresso pª o MD [Mouradian Dicran]. É uma chatice este tempo que se perde com o détour, mas tem que ser. A Ruth manda-te saudades. Abraços meus. O miúdo está óptimo. Escreve depressa. Teu ass.) L.L.

Carta de Lúcio Lara (Frankfurt) a Viriato da Cruz

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