Carta de Viriato da Cruz a Lúcio Lara

Cota
0006.000.075
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Viriato da Cruz
Destinatário
Lúcio Lara
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
3
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Carta de Viriato da Cruz [dactilografada] 6.9.59 Caro Lara, Respondo à tua carta de (suponho) 3 do corrente. Estou de acordo em que tenhas acrescentado na carta para a AAPC [All-African People’s Conference] o caso da Guiné e que tenhas frisado a necessidade de se exigir a libertação de todos. Ainda não recebi essa carta. Mas logo que a receba expedi-la-ei. Enviei-te há dias uma carta, por avião e por exprès, destinada à conferência que terá lugar amanhã no Cairo. Julgo que a recebeste ontem, sábado, e que ontem mesmo a expediste. Achei que não devíamos estar ausentes dessa conferência, ao menos por dois motivos: o problema tem um valor continental; e o nosso gesto ajuda a vincular mais as nossas relações com o comité do Cairo. [Acrescentado à mão: O hábito de estar presente é uma vantagem.] Caso Bov. [Bouvier]: Acho que estás a sentimentalizar demasiado um problema que é afinal simples. Há aí uma questão de amizade e uma questão de política. À pergunta: qual delas é a mais importante, para mim, neste momento?, eu respondo: é a política. Sendo assim, as minhas relações de amizade são determinadas pelos meus interesses políticos. E estes, para mim, não são apenas os actuais mas também os futuros. Explico-me: Quando saí da terra, sabia que havia de deixar a m/ mãe desamparada; e além disso, eu não lhe disse que me ficaria por aqui, nem nunca lhe escrevi até hoje. Este meu comportamento talvez tenha parecido ser uma monstruosidade do ponto de vista de muita gente que não se importa de apreciar os factos tendo em conta a perspectiva futura de uma situação. Hoje, toda a gente sabe e vê o desenvolvimento que tomou, na nossa terra, a acção repressiva. Em face do que tu e eu sabemos do que se está passando lá, parece-me não constituir um exagero para ti se te disser que estou quase tão certo como dois e dois serem quatro que a Pide deve ter feito já interrogatórios e buscas a alguns membros da minha família, minha mãe inclusive, porque foi a pessoa com quem sempre habitei. O que teria sucedido à minha velha, se a Pide lhe surpreendesse com cartas minhas, facto este que não espantaria a ninguém dado o natural sentimentalismo de uma mãe? Por outro lado, como a minha velha não sabe mesmo nada a meu respeito, ela está naturalmente armada para responder sempre, em qualquer situação, que não sabe nada de mim. A mim, que estou longe, a Pide não poderá fazer algum mal, mas aos meus familiares, que estão lá, ela poderá fazer o que lhe der na gana. Logo, o meu dever de amizade consiste em pôr de parte as corriqueiras expressões de amor filial, e velar pela segurança física dos que estão lá. Isto é o que tem mais valor. Quer dizer: não escrevi à minha velha, porque, dada a minha situação política, isto lhe prejudicaria, num momento que podia ter chegado (se já não chegou) independentemente da minha vontade e da vontade dela. Também não escrevi, nem escrevo, aos Bou [Bouvier] a dizer-lhes que me encontro em Berlim, porque, tendo em conta os meus futuros interesses políticos, isso me prejudicará. Os Bou são suficientemente inteligentes para saber que eu não tenho pessoalmente possibilidades para permanecer aqui muito tempo nem vir aqui muitas vezes. Eles têm cabeça para concluir que no sector oeste não pode haver coisa de grande interesse para mim e que, por outro lado, a minha frequência de estadia nesta cidade acarretaria, naturalmente, uma aproximação com gentes do outro lado. Outras conclusões eles poderiam ainda tirar dessa minha declaração escrita sobre o meu domicílio. Evidentemente (dirás tu) que eles podiam já ter tirado há muito estas conclusões. É possível. Mas há uma distância imensa entre as conclusões que se tiram à base de conjecturas pessoais e as conclusões tiradas com base em informações (vagas ou não), e em informações escritas, do sujeito em causa. As primeiras conclusões não têm prova, não têm fundamento, como se costuma dizer; as segundas já têm fundamento, por mais fraco e delgado que este seja. Por outro lado, eu não compreendo que utilidade possa haver para os Bou e para mim o eles saberem onde eu me encontro. Isso é matéria de pura bisbilhotice ou de conhecimento puro, sem qualquer utilidade. Em que é que o facto de lhes informar onde me encontro pode constituir uma prova de amizade para com eles? Porventura não sabem eles que eu estou politicamente engajado? Eles não podem compreender que um homem nas minhas condições pode ter missões que proíbam que se comunique aos simples amigos ou familiares os passos que ele dá? Isto não é normal? Para que serviu aliás a experiência do marido dela, na última guerra? Estás tu convencido que eles, por seu lado, nos têm informado sobre a sua vida política? Por que é que, então, nós temos o dever de exprimir provas de amizade com atitudes prejudiciais e ingénuas? Ghandi, que era um homem de bons sentimentos, dizia a propósito da língua inglesa: Gosto da língua inglesa «à sa place»; mas a ela me oponho, com toda a força, se ela tenta usurpar um lugar que não lhe pertence. É também nestes termos que situo as minhas relações com os Bou e muitos outros amigos. Gosto deles, mas «à sa place»; e a eles não correspondo, se eles tentam entrar em sectores da minha vida, onde a amizade deles não dá direito de entrar. Isto é claro. A atitude deles, se não é uma insistência velhaca, revela pelo menos falta de uma amadurecida consideração da minha vida e dos nossos problemas. E o nosso dever não é corresponder, por pena ou falso sentimentalismo, às atitudes imaturas dos outros, mas é sim de lhes fazer ver que cada coisa deve ocupar o seu lugar. Nos últimos tempos da minha estadia aí, estava a tentar a habituá-los à ideia que a nossa amizade não tem nada a ver com uma diarreia de informações a meu respeito e a respeito de assuntos que me transcendem. Lembro-me que, um dia, estando tu presente, eu disse que, ao falarmos, deveríamos fazê-lo com um senso político. Tu próprio me disseste que esta frase te chocara. Mas eu posso hoje dizer-te que ela foi mais benéfica do que maléfica para o desenvolvimento de alguns aspectos das minhas relações com os Bou. Além de tudo o mais, devo repetir-te que, pessoalmente, não tenho confiança, do ponto de vista político, no marido dela. Deste ponto eu não arredo pé, sem provas em contrário. Estou confiante de que o futuro trará factos que te convencerão que eu não estou a ser ingrato ou mal-educado, mas que, tendo em conta uma prudência necessária, estou a conciliar, o melhor possível, os meus deveres de amizade e os meus deveres políticos. Vou escrever, sempre que puder, aos Bou. Não há no momento nenhuma inconveniência em que eu lhes escreva. Mas não (decididamente NÃO!) lhes escreverei a dizer-lhes que me encontro em Berlim. Poderei dizer-lhes, por escrito, que me encontro na Bel[gica] ou noutro país do ocidente; mas, por escrito, nunca lhes comunicarei que me encontro naquela cidade. Julgo que te expliquei claramente a minha posição neste assunto. Fazendo confiança no teu realismo, espero que, não só me compreendas, mas que farás o teu melhor, se possível, para remeteres esta questão no seu justo lugar. Mas, por favor, nada de sentimentalismos formais. Analisemos tudo com o coração quente mas também, e ao mesmo tempo, com a cabeça fria. [Acrescentado à mão na margem:] Há uma saída para ti: Podes dizer, por exemplo, a essa gente que, por conveniência política estou temporariamente desligado de ti, e que não tens portanto notícias minhas, nem sabes onde estou. É possível que eles te perguntem para onde fui e o que fui fazer. Mas eu estou certo de que tu saberás concluir que uma pergunta destas transcende a ingenuidade e a pura bisbilhotice para se transformar numa flagrante falta de consideração pela seriedade da luta dos outros. Cumprimentos à Ruth e beijos ao Paulinho V. [Numa outra folha, escrito à mão:] P.S. – Acabo de saber que de Marseille (França) há carreira regular para Accra. O preço de uma viagem, desde aquela cidade a esta, é de 280 dollars. Quanto ao facto de o Menezes [Hugo de M.] não ter ainda escrito, talvez seja por ele não ter chegado a Conakry. Também não é de desprezar a hipótese de ele ter ficado um «pouco» mal impressionado connosco depois das trocas de ideias com a malta de Paris. Acho que ele é parente do Espírito Santo, autor ou redactor da «Acta». Espero que não estejas longe de compreender que certos amigos de Paris só pretendem obstruir a n/ actividade e criar conflitos entre nós. Cumprimentos. V. P.S. – Quem é o patrício de Novo Redondo que aí está? O que fazem os pais dele em Novo Redondo? Eu conheço esta vila, e, portanto, é provável que conheça, ao menos de nome, os pais dele.

Carta de Viriato da Cruz a Lúcio Lara

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