Diário do Governo, I Série nº 110

Cota
0002.000.020
Tipologia
Legislação
Impressão
Impresso
Suporte
Papel comum
Autor
Governo Português
Data
Idioma
Conservação
Mau
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12
Acesso
Público
Quinta-feira 20 de Maio de 1954 I Série - Número 10 DIÁRIO DO GOVERNO SUMÁRIO Ministério do Ultramar Decreto-Lei nº 39 666 - Promulga o Estatuto dos Indígenas Portugueses das províncias da Guiné, Angola e Moçambique. … A Lei orgânica do Ultramar (Lei nº 2 066, de 27 de Julho de 1953) contém vários preceitos relativos a populações indígenas das províncias da Guiné, Angola e Moçambique. Além das bases componentes da secção especialmente epigrafada “Das populações indígenas”, encontram-se, nomeadamente, o nº V da base LXC, sobre o julgamento das questões gentílicas, e o nº II da base LXIX, sobre a extensão dos sistemas penas e penitenciário. A regulamentação dos princípios gerais contidos nestas bases exige que sejam alterados alguns dos preceitos dos chamados “Estatuto Político Civil e Criminal dos Indígenas” e “Diploma Orgânico das Relações de Direito Privado entre Indígenas e não Indígenas” (Decretos nos 16 473 e 16 474, de 6 de Fevereiro de 1929), que por outro lado, haveria já anteriormente conveniência em modificar e aditar em parte, a fim de uniformizar procedimentos, extinguir regimes locais inadequados e alargar o âmbito das reformas. Com efeito, em leis gerais de carácter fundamental, como o Acto Colonial, a Carta Orgânica do império Colonial Português e a própria Constituição Política, algumas das regras contidas no estatuto e no diploma orgânico foram gradualmente aperfeiçoadas, ao mesmo tempo que outros diplomas - como o Decreto nº 35 461, de 22 de Janeiro de 1946, sobre o casamento - enunciavam preceitos que bem caberiam nos estatuto. Acresce que certas matérias importantes, entre as quais a aquisição da cidadania por antigos indígenas, eram reguladas apenas em textos locais, falhos de homogeneidade. O presente decreto aplica os princípios fundamentais, hoje consignados na Constituição Política e na Lei Orgânica, e desenvolve-os, na extensão compatível com a lei Orgânica, e desenvolve-os, na extensão compatível com a sua natureza, devendo seguir-se-lhe outros diplomas que especialmente se ocupem de certos aspectos que exigem regulamentação pormenorizada. Deseja-se acentuar ter havido agora a preocupação de, sem enfraquecer a protecção legal dispensada ao indígena, considerar situações especiais em que ele pode encontrar-se no caminho da civilização, para que o Estado tem o dever de o impelir. Nestes termos: usando da faculdade conferida pela 1ª parte do nº 2º do artigo 109º da Constituição, o Governo decreta e eu promulgo, para valer como lei, o seguinte: CAPÍTULO I Dos Indígenas portugueses e do seu estatuto Artigo 1º Gozam de estatuto especial, de harmonia com a Constituição Política, a Lei Orgânica do Ultramar e o presente diploma, os indígenas das províncias da Guiné, Angola e Moçambique. -uníco. O estatuto do indígena português é pessoal, devendo ser respeitado em qualquer parte do território português onde se ache o indivíduo que dele goze. Art.2º Consideram-se indígenas das referidas províncias os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente nelas, não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses. -único. Consideram-se igualmente indígenas os indivíduos nascidos de pai e mãe indígena em local estranho àquelas províncias, para onde os pais se tenham temporariamente deslocado. Art. 3º Salvo quando a lei dispuser doutra maneira, os indígenas regem-se pelos usos e costumes próprios das respectivas sociedades. - 1º. A contemporização com os usos e costumes indígenas é limitado pela moral, pelos ditames da humanidade e pelos interesses superiores do livre exercício da soberania portuguesa. - 2º Ao aplicarem os usos e costumes indígenas as autoridades procurarão, sempre que possível, harmonizá-los com os princípios fundamentais do direito público e privado português, buscando promover a evolução cautelosa das instituições nativas no sentido indicado por esses princípios. - 3º A medida de aplicação dos usos e costumes indígenas será regulada tendo em conta o grau de evolução, as qualidades morais, a aptidão profissional do indígena e o afastamento ou integração deste na sociedade tribal. Art. 4º O Estado promoverá por todos os meios o melhoramento das condições materiais e morais da vida dos indígenas, o desenvolvimento das suas aptidões e faculdades naturais e, de maneira geral, a sua educação pelo ensino e pelo trabalho para a transformação dos seus usos e costumes primitivos, valorização da sua actividade e integração activa na comunidade. Mediante acesso à cidadania. Art. 5º O Estado prestará a assistência necessária ao melhoramento da sanidade das populações e seu crescimento demográfico, e bem assim à introdução de novas técnicas de produção na economia das sociedades nativas. Art. 6º O ensino que for especialmente destinado aos indígenas deve visar aos fins gerais de educação moral, cívica, intelectual e fica, estabelecidos nas leis e também à aquisição de hábitos e aptidões de trabalho, de harmonia com os sexos, as condições sociais e as conveniências das economias regionais. - 1º O ensino a que este artigo se refere procurará sempre difundir a língua portuguesa, mas como instrumento, poderá ser autorizado o emprego de idiomas nativos. - 2º Aos indígenas habilitados com o ensino de adaptação ou que mostrem, pela forma que a lei previr, desnecessidade dele, é garantida a admissão ao ensino público, nos termos aplicáveis aos outros portugueses. CAPÍTULO II Da situação jurídica dos indígenas SECÇÃO I Da organização política Art. 7º As instituições de natureza política tradicionais dos indígenas são transitoriamente mantidas e conjugam-se com as instituições administrativas do Estado Português pela forma declarada na lei. Art. 8º Os agregados políticos tradicionais ao genericamente considerados regedorias indígenas, cónsentindo-se embora a designação estabelecida pelo uso regional (sábado, regulado, reino, etc.) - único. Quando a sua extensão o justifique as regedorias podem ser divididas em grupos de povoações e em povoações. Art. 9º A cada regedoria pertencem todos os indígenas que no seu território habitam permanentemente. Os que nele apenas residam transitoriamente, ainda que por efeito de contrato de trabalho, só para efeitos de polícia dependem das autoridades gentílicas locais. - único. A mudança de residência de um indígena de uma para outra regedoria, dentro da mesma circunscrição, depende da autorização da entidade administrativa local; a mudança para regedoria situada noutra circunscrição depende de autorização dos administradores interessados Art. 10º Em cada regedoria indígena exerce autoridade sobre as populações gentílicas um regedor indígena. Em cada grupo de povoações ou povoação será essa autoridade confiada a um chefe de grupo de povoações ou de povoação. - 1º O exercício das funções de autoridade gentílica é normalmente remunerado. - 2º Os regedores e chefes de grupo de povoações ou de povoação desempenham as funções atribuídas pelo uso local, como as limitações estabelecidas neste diploma. A obediência que as populações lhe devem é resultante da tradição e será mantida enquanto respeitar os princípios e interesses da administração, a contento do Governo. Art. 11º Os regedores são eleitos ou de sucessão directa ou colateral, conforme os usos e costumes locais. ● único. A investidura dos regedores que a eleição ou a sucessão designarem fica dependente de homologação pelo governador da província ou do distrito, que podem igualmente destituí-los quando não desempenhem convenientemente as funções do cargo. Art. 12º Os chefes de grupos de povoações e os chefes de povoação serão escolhidos, conforme os usos, pelos regedores, com aprovação das entidades administrativas locais. Art. 13º As mulheres podem ser investidas no cargo de chefe de povoação quando esta for formada por uma só família e se derem as hipóteses de ausência temporária do chefe ou da menoridade deste, seu tutor, ou quando essa for a tradição local. Art. 14º As populações não podem depor os chefes gentílicos investidos em exercício de funções por autoridade administrativa, nem reintegrar quem delas legitimamente tenha sido destituído. Art. 15º Os chefes gentílicos têm os privilégios que os usos e costumes indígenas lhes conferirem, podendo ser-lhes recusados aqueles cujo exercício se mostre inconveniente ou imoral. Art. 16º Junto de cada regedor poderá haver um conselho de sua escolha, formado pelos indígenas de maior respeitabilidade da regedoria ou povoação, tendo por dever auxiliar o chefe no exercício das suas funções. - 1º Os regedores deverão apresentar à autoridade administrativa os indígenas que fizerem parte do conselho referido no presente artigo e não substituí-los sem conhecimento dela. - 2º Os indígenas que façam parte do conselho terão a designação que, por uso antigo, lhes pertencer e os regedores poderão confiar-lhes a direcção de determinados negócios indígenas. Art. 17º É proibido aos chefes gentílicos, sob pena de prisão ou de trabalhos públicos de quinze dias a dez meses, aplicada nos termos da lei: 1º Cobrar impostos em seu proveito; 2º Aplicar multas; 3º Servir-se do nome da autoridade administrativa ou de seus delegados, sem seu prévio conhecimento, para consecução de qualquer fim; 4º Sair da área da sua circunscrição sem prévia licença da autoridade administrativa competente; 5º Opor resistência ao cumprimento das ordens das autoridades administrativas ou incitar a ela; 6º Proteger ou deixar de reprimir o fabrico ou a venda ilegal de bebidas alcoólicas ou tóxicas ou outros actos imorais e criminosos; 7º Manter encarcerado algum indígena, sem dar imediato conhecimento à autoridade administrativa. Art. 18º Os chefes de grupos de povoações onde povoação estão directamente subordinados às regedorias indígenas ; estes ficam na dependência do administrador da circunscrição. - único. As ordens e instruções serão transmitidas às autoridades gentílicas, quer directamente pelo administrador, quer pelos chefes dos postos administrativos em cuja área residem. Art. 19º As autoridades administrativas exercerão as suas atribuições legais relativamente aos indígenas que vivam em regime tribal com a coadjuvação dos chefes dos agregados políticos formados segundo os usos tradicionais. Art. 20º Os chefes gentílicos procurarão desempenhar-se das funções que lhes incubem, respeitando, quanto possível, os usos, costumes ou tradições permitidos pelo 3º e seus parágrafos deste diploma; à autoridade administrativa cumpre dirigi-los por forma a, com reconhecimento público, integrar a sua acção na obra civilizadora. Art. 21º As autoridades administrativas exercerão por si sós jurisdição e polícia sobre os indígenas que deixarem de estar integrados nas organizações políticas tradicionais. Art. 22º Quando se tenham formado aglomerados populacionais constituídos exclusivamente por indígenas nas condições do artigo anterior poderão as autoridades administrativas nomear, de entre os habitantes, regedores administrativos a cabos de ordens, aos quais serão atribuídas funções policiais e de auxiliares da administração civil. - único. A competência destes auxiliares e as demais regras necessárias à administração dos referidos aglomerados populacionais serão estabelecidas em diploma especial. Art. 23º Não são concedidos aos indígenas direitos políticos em relação a instituições não indígenas. - único. Os indígenas terão representantes, escolhidos pela forma legal, nos conselhos legislativos ou de Governo de cada província. Art. 24º Os indígenas têm os direitos de petição e de reclamação, que podem ser exercidos em todos os graus de hierarquia administrativa e, em especial, perante os curadores dos indígenas e os inspectores administrativos. - único. Constitui infracção disciplinar dos funcionários ultramarinos a tentativa de obstáculo ou de represália relativamente ao exercício pelos indígenas do direito conferido no corpo do artigo. SECÇÃO II Dos crimes e das penas Art. 25º Na falta de leis especialmente destinadas aos indígenas serão aplicáveis as leis penais comuns. - único. O juiz apreciará sempre as condutas e cominará as penas considerando a influência que sobre o delinquente e os actos deste exercem as circunstâncias da vida social dos indígenas. Art. 26º As penas de prisão podem ser substituídas por trabalho obrigatório. - único (transitório). Enquanto não for publicado o novo sistema penitenciário ultramarino, continuam em vigor os parágrafos do artigo 13º do Decreto nº 16 473, de 6 de Fevereiro de 1929. SECÇÃO III Das relações de natureza privada SUBSECÇÃO I Da opção pela lei comum e dos factos que importam a aplicação desta Art. 27º É permitido aos indígenas optar pela lei comum em matéria de relações de família, sucessões, comércio e propriedade imobiliária. - único. A opção pode ser requerida pelo interessado ou aceite pelo juiz com limitação a algumas das espécies de relações indicadas no corpo do artigo. Art. 28º A opção será feita perante o juiz municipal da residência do interessado, e só deve ser aceite depois de o juiz se ter certificado, pela abonação de dois cidadãos idóneos e outras diligências que julgue necessárias, de que o requerente adoptou, com carácter definitivo, a conduta pressuposta para a aplicação dessas leis. - único. Da aceitação da opção será lavrado termo, de que serão passadas as cópias autênticas pedidas. Art. 29º Poderá ser determinado por diploma legislativo que nos aglomerados referidos no artigo 22º deste diploma as relações comerciais entre os seus habitantes ou entre estes e não-indígenas sejam exclusivamente reguladas pela lei comum e pelos usos correntes do comércio. Art. 30º Os indígenas baptizados podem celebrar o casamento nos termos das leis canónicas perante os ministros da Igreja Católica, desde que reúnam as condições exigidas pela lei civil. 1º A mulher indígena é livre na escolha do marido, não sendo reconhecidos quaisquer costumes que se oponham a essa liberdade ou segundos quais a mulher ou os filhos devam considerar-se pertença de parentes do marido ou pai quando este falecer. 2º O casamento celebrado entre indígenas nos termos das leis canónicas produzirá na ordem civil todos os efeitos de natureza pessoal respeitantes quer ao cônjuge, quer aos filhos, mas só esses, pelo mero facto de na delegacia do registo civil ser lavrado o respectivo assento, que substituirá a transcrição. 3º A celebração do matrimónio segundo o rito católico e de acordo com as leis canónicas, mesmo com dispensa do impedimento da religião, mista ou de disparidade de culto, importará a renúncia por parte de ambos os nubentes à poligamia e aos usos e costumes contrários ao casamento canónico. Art. 31º O direito de propriedade sobre coisas móveis é reconhecido e protegido, nos termos gerais de direito. SUBSECÇÃO II Do trabalho dos indígenas Art. 32º O estado procurará fazer reconhecer pelo indígena que o trabalho constitui elemento indispensável de progresso, mas as autoridades só podem impor o trabalho nos casos especificamente previstos na lei. Art. 33º Os indígenas podem livremente escolher o trabalho que desejam efectuar, quer de conta própria, quer de conta alheia, ou nas suas terras ou nas que para esse efeito lhes forem destinadas. Art. 34º A prestação de trabalho não-indígenas assenta na liberdade contratual e no direito a justo salário e assistência, devendo ser fiscalizada pelo Estado, através dos órgãos apropriados. SUBSECÇÃO III Dos direitos sobre coisas imobiliárias Art. 35º Aos indígenas que vivam em organizações tribais são garantidos, em conjunto, o uso e a fruição, na forma consuetudinária, das terras necessárias ao estabelecimento das suas povoações e das suas culturas e ao pascigo do seu gado. - único. A ocupação realizada de harmonia com o corpo do artigo não confere direitos de propriedade individual e será regulada entre os indígenas pelos respectivos usos e costumes. Art. 36º Não serão efectuadas concessões de terrenos a não-indígenas estabelecidos nesses terrenos. Art. 37º O Estado reconhece e favorece direitos individuais de indígenas sobre prédios rústicos e urbanos. Os indígenas que tenham optado pela lei comum em matéria de propriedade imobiliária podem adquirir direito de propriedade ou de outros direitos reais sobre bens imóveis por herança, legado, doação ou compra. Na falta de opção, os indígenas podem adquirir direitos sobre bens imóveis, com as limitações constantes dos artigos seguintes. - único. Os contratos de compra de bens imóveis em que o comprador seja indígena e os actos de disposição, a título oneroso ou gratuito, de bens dessa natureza pertencentes a indígenas, quando feitos a favor de não-indígenas, só serão válidos depois de autorizados pelo juiz municipal, que se certificará da capacidade daquelas e de que os seus interesses não sofrem lesão. Art. 38º São apropriáveis individualmente os terrenos vagos ou abandonados, aqueles em cuja apropriação consintam os seus proprietários e os que forem objecto da providência especial referida no -1º deste artigo. -1º. A requerimento dos regedores, com o voto concordante dos seus conselheiros, pode o governador do distrito autorizar que sejam tornados individualmente apropriáveis terrenos anteriormente destinados à fruição conjunta, onde estejam instaladas, com carácter estável, povoações e culturas indígenas. -2º. Nos terrenos referidos no parágrafo anterior, só os indígenas da respectiva regedoria são legítimos para adquirir bens imóveis. -3º. Não são reconhecidos direitos sobre prédios rústicos de extensão inferior a 1 ha ou sobre construções que não possam ser consideradas definitivas. Art. 39º São apenas os seguintes os títulos de aquisição destes direitos: a) Concessão do governo da província; b) Concessão ou subconcessão feita por particulares, devidamente autorizada, nos termos legais; c) Transmissão de harmonia com o artigo 46º deste diploma; d) Posse de boa fé, contínua, pacífica e pública durante dez anos, pelo menos, de terrenos anteriormente vagos ou abandonados, onde se prove tratamento de árvores ou cultura permanente realizados pelo possuidor. - único. O direito concedido poderá consistir apenas no domínio útil, com a taxa de foro que for especialmente estabelecida por lei. Art. 40º O indígena que pretender demonstrar a aquisição da propriedade nos termos da alínea d) do artigo anterior justificá-la-á perante o juiz municipal, nos termos seguintes: 1º O pedido verbal do interessado será reduzido a auto, no qual se consignará a descrição, quanto possível exacta, da área possuída os demais factos alegados pelo justificante; 2º O juiz municipal procederá, por si ou por funcionário em quem delegar, a vistoria do prédio, para verificar os factos alegados pelo justificante e no caso de este ser favorável despachará para que se façam o registo provisório da propriedade e a passagem do título provisório; 3º Os autos serão seguidamente enviados aos serviços cadastrais, que procederão a identificação, demarcação e passagem do título definitivo. Art. 41º O proprietário indígena é obrigado a manter o prédio rústico limpo, a colher os frutos produzidos e a transformar progressivamente a cultura por formas primitivas em cultura ordenada, ficando nesse caso dispensado de obrigações públicas que envolvam afastamento das suas terras por mais de três meses, salvo as resultantes do serviço militar ou de sentença judicial. Art. 42º A propriedade concedida é resolúvel durante o período que a lei fixar, desde que o concessionário não aproveite a terra, a abandone, a deixe de cultivar sem motivo de força maior ou seja expulso justificadamente do agregado social em razão do qual houvesse recebido a concessão. Art. 43º Salvo nos casos previstos na lei para a caducidade das concessões, o proprietário indígena não pode ser privado da propriedade constituída de harmonia com os artigos anteriores, a não ser em virtude de expropriação por utilidade pública, mediante compensação com outros terrenos disponíveis ou indemnização nos termos legais. Art. 44º Os direitos referidos nos artigos 38º e seguintes deste diploma são transmissíveis apenas entre indígenas, de harmonia com o que estiver disposto na lei ou no acto da constituição desses direitos ou segundo o prescrito pelos usos e costumes. - único. Os prédios situados fora das áreas destinadas a frunção conjunta dos indígenas organizados em tribos podem ser transmitidos por sucessão legítima a indivíduos não-indígenas chamados à herança nos termos da lei comum. Art. 45º No juízo municipal ou nas conservatórias do registo predial existirão registos especialmente destinados à inscrição dos direitos de indígenas. - 1º A inscrição dos direitos titulados de harmonia com as alíneas a) e d) do artigo 39º Far-se-á oficiosamente; nos casos das alíneas b) e c) do mesmo artigo depende de requerimento de qualquer dos interessados. - 2º Os direitos fundados em transmissão só depois de registrados são protegidos pelo Estado. Art. 46º Os prédios rústicos e urbanos dos indígenas são impenetráveis e insusceptíveis de servir de garantia a obrigações, salvo quando estas forem assumidas perante organismos de crédito ou de assistência económica estabelecidos por lei a favor dos indígenas. - único. No caso de os organismos a que este artigo se refere virem a adquirir os prédios dados em garantia dos seus créditos, só poderão aliená-los de novo a indígenas. SUBSECÇÃO IV Das relações civis e comerciais entre indígenas e não-indígenas Art. 47º As relações de natureza civil ou comercial entre indígenas e pessoas que se regem pela lei comum serão reguladas por esta última, quando não houver outra especialmente aplicável. Art. 48º Ao aplicar a lei, nos termos do artigo anterior, o juiz decidirá sempre de modo a não impor ao indígena o cumprimento de deveres que ele não pudesse razoavelmente ter previsto ou querido aceitar. Art. 49º A venda a não-indígenas de géneros da produção agrícola dos indígenas pode ser condicionada, limitada ou proibida pelas autoridades administrativas nos casos seguintes: 1º Sempre que da alienação de géneros alimentares possa resultar a escassez dos alimentos na região; 2º Quando o produto oferecido se apresente extraordinariamente depreciado em relação aos tipos correntes negociáveis por motivo de colheita antecipada, preparação deficiente, mau estado de conservação ou outra causa de deterioração; 3º Quando seja necessário para cumprimento da lei que imponha regime especial de compra em benefício direto ou do cultivador, para melhoramento da produção ou no interesse da economia geral. - único. Onde as circunstâncias o aconselharem, poderá a venda dos produtos indígenas a não-indígenas ser autorizada unicamente em feiras periódicas ou em mercados, sob a vigilância das autoridades e em condições de preço por elas reguladas para acautelar os interesses dos produtores. Art. 50º Os produtos vendidos pelos indígenas a não-indígenas ser-lhes-ão sempre pagos exclusivamente a dinheiro e a pronto pagamento, sendo proibida a permuta com outros produtos ou artigos. SECÇÃO IV Dos tribunais e dos processos Art. 51º Aos juízes municipais competem a instrução e o julgamento dos seguintes processos, quando por lei não forem especialmente atribuídos a outros tribunais: a) Processos cíveis e comerciais, quando o autor e réu sejam indígenas; b) Processos relativos a crimes contra a propriedade cometidos por indígenas, a que corresponda pena correccional, e relativos aos restantes crimes, quando réus e ofendidos sejam indígenas. Art. 52º O juiz municipal, para o julgamento dos processos a que se refere o artigo, será assistido por dois assessores indígenas, que o informarão sobre os usos e costumes locais. - único. Os assessores serão escolhidos pelo administrador da respectiva circunscrição ou concelho, de entre os chefes ou outros indígenas de reconhecido prestígio que conheçam as tradições jurídicas locais. Art. 53º Das sentenças do juiz municipal proferidas nestes processos cabe sempre recurso para o juiz de direito, de cujas decisões se recorrerá para o Tribunal da Relação proferidos nestes processos não há recurso. - único. As sentenças dos juízes municipais que cominem pena maior só se tornam executoras depois de confirmadas pelo juiz de direito ou pelo Tribunal de Relação, conforme não existisse ou existisse recurso obrigatório. Art. 54º Diploma especial regulará os termos do processo perante os juízes municipais. - único. O processo será sumário e adequado às circunstâncias, devendo, porém, ser acautelados os meios de prova que permitam o exame das instâncias de recurso nos casos em que este seja admitido. Art. 55º Compete aos juízes de direito conhecer das acções cíveis, comerciais ou criminais em que sejam interessados indígenas, desde que uma das partes ou co-réus ou dos ofendidos não seja indígena. - único. Aos juízes municipais poderá ser incumbida a instrução do processo, no todo ou em parte, e a presidência da tentativa de conciliação quando a ela haja lugar, na qual se terá sempre em conta a situação dos indígenas, devendo ser-lhes dispensada a protecção que for necessária e justa. CAPÍTULO III Da extinção da condição de indígena e da aquisição da cidadania Art. 56º Pode perder a condição de indígena e adquirir a cidadania o indivíduo que prove satisfazer cumulativamente aos requisitos seguintes: a) Ter mais de 18 anos; b) Falar correctamente a língua portuguesa; c) Exercer profissão, arte ou ofício de que aufira rendimento necessário para o sustento próprio e das pessoas de família a seu cargo, ou possuir suficientes para o mesmo fim; d) Ter bom comportamento e ter adquirido a ilustração e os hábitos pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses; e) Não ter sido notado como refractários ao serviço militar nem dado como desertor. 1º A prova dos factores referidos no corpo deste artigo far-se-á pelas formas previstas nas leis, mas os requisitos das alíneas b), c) e d) podem também provar-se por certificados dos administradores dos concelhos ou circunscrições onde o indivíduo tenha residido nos últimos três anos. Para prova do bom comportamento, além deste atestado, é indispensável certidão do registo criminal demonstrativa de que o indivíduo não sofreu condenação em pena maior, nem mais de duas condenações em prisão correccional. 2º. Da recusa da passagem de certificados pelos administradores cabe recurso para as entidades referidas no artigo 58º deste diploma, as quais decidirão em última instância, depois de terem mandado proceder às diligências que julguem convenientes. 3º Para efeitos de concessão da cidadania considera-se anulada a nota de refractário, uma vez cumprido o serviço militar. Art. 57º A mulher indígena casada com o indivíduo que adquira a cidadania nos termos do artigo anterior e os filhos legítimos ou ilegítimos perfilhados, menores de 18 anos, que vivam sob a direcção do pai à data daquela aquisição podem também adquiri-la, no caso de satisfazerem aos requisitos das alíneas b) e d) do artigo 56º. Art. 58º O requerimento para a aquisição da cidadania deve ser dirigido ao governador do distrito da residência do interessado, ou, na Guiné, ao governador da província, e será entregue, na sede do concelho, circunscrição ou posto administrativo, convenientemente instruído com os documentos tornados necessários pelo presente diploma e pelos reguladores do bilhete de identidade. - único. Os administradores do concelho ou circunscrição devem enviar os requerimentos para despacho, com o seu parecer concreto e fundamentado, nos quinze dias seguintes à recepção deles. Art. 59º Do despacho de indeferimento cabe recurso, a interpor no prazo de quinze dias, para o Tribunal da Relação. O despacho de deferimento será comunicado oficiosamente à entidade competente para a passagem de bilhete de identidade. - único. O bilhete de identidade será entregue ao interessado, depois de satisfeitas as condições regulamentares que não sejam contrárias a este diploma. Art. 60º O bilhete de identidade será passado sem dependência das formalidades previstas neste diploma a quem apresente documento comprovativo de alguma das seguintes circunstâncias: a) Exercer ou ter exercido cargo público, por nomeação ou contrato; b) Fazer ou ter feito parte de corpos administrativos; c) Possuir o 1º ciclo dos liceus ou habilitação literária equivalente; d) Ser comerciante matriculado, sócio de sociedade comercial, exceptuadas as anónimas e em comandita por acções ou proprietário de estabelecimento industrial que funcione legalmente. - único. Não é considerado para o efeito da alínea a) o exercício de cargo público que tenha terminado opor demissão ou rescisão do contrato por motivo disciplinar. Art. 61º Os governadores de província poderão conceder a cidadania com dispensa da prova dos requisitos exigidos no artigo 56º aos indivíduos que notoriamente os possuam ou que tenham prestado serviços considerados distintos ou relevantes à Pátria Portuguesa. Art. 62º O bilhete de identidade faz prova plena da cidadania e, no caso de ser extraviado, pode a sua concessão provar-se pelos meios admitidos em direito. - único. Os alvarás de assimilação e outros documentos actualmente destinados a provar a qualidade de não-indígena podem, em qualquer tempo, ser substituídos pelo bilhete de identidade, mediante simples pedido dos interessados à entidade competente para a passagem dos bilhetes, mas, enquanto não o forem, produzem, quanto à cidadania, o efeito do bilhete. Art. 63º O processo de aquisição da cidadania é gratuito, excepto quanto às taxas normais do bilhete de identidade. Art. 64º A cidadania concedida ou reconhecida nos termos dos artigos 58º e 60º poderá ser revogada por decisão do juiz de direito da respectiva comarca, mediante justificação promovida pela competente autoridade administrativa, com intervenção do Ministério Público. - 1º A decisão será notificada aos interessados, que dela podem recorrer, no prazo de trinta dias, para a Relação. - 2º Julgado definitivamente o recurso, será apreendido o bilhete de identidade e o interessado voltará a ser considerado indígena, excepto para o cumprimento das obrigações que haja assumido para com terceiros. - 3º O processo de recurso é isento de custas e selos. CAPÍTULO IV Da execução do estatuto Art. 65º Compete aos governadores das províncias ultramarinas superintender em tudo quanto respeite à protecção, bem-estar e progresso das populações indígenas e fazer observar as disposições do presente estatuto em todos os ramos e graus de administração pública. Art. 66º A Inspecção Superior dos Negócios Indígenas averiguará regularmente o modo como é aplicado o presente estatuto e em especial como são garantidos aos indígenas os direitos que por ele lhes são reconhecidos. Art. 67º Os Governadores da Guiné, Angola e Moçambique remeterão, até 30 de Abril de cada ano, à Inspecção Superior dos Negócios Indígenas relatório da aplicação do presente estatuto do ano anterior e nomeadamente sobre a situação das populações indígenas em matéria de educação, justiça, saúde, bem-estar e regime de terras. A inspecção enviará esses relatórios, acompanhados de outros elementos que tenha por convenientes, ao Conselho Ultramarino, que sobre eles elaborará parecer, em sessão plena. - único. Para elaboração do parecer referido no corpo do artigo, o Conselho Ultramarino poderá solicitar a quaisquer autoridades e serviços as informações de que necessite. Publique-se e cumpra-se como nele se contém. Paços do Governo da república, 20 de Maio de 1954. - FRANCISCO HIGINO CRAVEIRO LOPES - António de Oliveira Salazar - João Pinto da Costa Trigo de Negreiros - Manuel Gonçalves Cavaleiro de Ferreira - Artur Águeda de Oliveira - Américo Deus Rodrigues Thomaz - Paulo Arsénio Veríssimo Cunha - Eduardo de Arantes e Oliveira - Manuel Maria Sarmento Rodrigues - Fernando Andrade Pires de Lima - Ulisses Cruz de Aguiar Cortês - Manuel Gomes de Araújo - José Soares da Fonseca. Para ser publicado no Boletim Oficial de todas as províncias ultramarinas. - M. M. Sarmento Rodrigues.

Diário do Governo, I Série nº 110 com Decretos-Lei nºs 39659 a 39671; Decretos-Lei nºs 14891 a 14894. Declaração que rectifica a Portaria 14870. O Decreto-Lei nº 39666 promulga o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique

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