«Algumas passagens do Relatório de Henrique Galvão - A população foge em massa»

Cota
0001.000.005
Tipologia
Relatório
Impressão
Impresso
Suporte
Papel fotográfico
Autor
Henrique Galvão
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
13
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento…».

Acesso
Público

Extractos da Carta-Relatório de Henrique Galvão 22 de Janeiro de 19471 [...] o sistema produziu o aumento da produção de algodão, mas falhou inteiramente como instrumento da política indígena que, certamente, também pretendia ser [...] [...] Vê-se que o indígena cultivador de algodão não corre mais riscos – bem ao contrário – do que o cultivador do milho ou de qualquer outro produto e se encontra em relação ao concessionário, em melhores condições do que o produtor, de trigo, por exemplo, em relação ao moageiro, ou ao produtor americano de algodão em relação ao industrial encarregado do descaroçamento e prensagem do algodão. É preciso realmente que o Terreiro do Paço se encontre a uma distância astronómica das colónias para que se refira tal conceito acerca das condições em que trabalha o cultivador indígena das zonas de influência e se compare este com o produtor de algodão americano. E, contudo, não se ignora certamente que este produtor indígena é violentamente compelido a plantar algodão – e tem sido compelido a plantá-lo, em condições económicas inconcebíveis, até em terrenos onde os cardos não vingariam. [...] [...] Da Intendência do Algodão (Cotonang) compraram-se aos indígenas quantidades de algodão no valor de 17.000 contos (números redondos). A importância dos impostos pagos pelos indígenas desta região andou por 7000 contos. Arrecadaram-se por consequência cerca de 10.000 contos. E com estes números se tecem louvores e se tocam trombetas de regozijo. Mas se sairmos dos números para as realidades, o que se apura é o seguinte: os indígenas da Baixa do Cassanje continuam a arrastar a mesma vida miserável que arrastavam; os seus bens não cresceram, andam andrajosos e doentes como andavam; alguns (a maioria), para cultivarem o algodão na Baixa são compelidos a deslocar-se do Planalto durante meses e a viverem aí em cubatas improvisadas, sem as suas mulheres, ainda em piores condições do que aqueles que são compelidos ao trabalho por conta alheia; para venderem o seu algodão têm de fazer marchas de 30, 40 e 50 km até ao mercado mais próximo, transportando à cabeça carga de 30 kg e fazendo naturalmente tantas viagens quantas vezes 30 quilos é a sua produção; alguns alugam outros para este serviço, reduzindo assim metade dos seus lucros; outros queimam o algodão só para não o transportarem; no mercado encontra o preto, ao lado do concessionário que lhe paga o algodão ao preço da tabela, a autoridade administrativa que aproveita a ocasião para cobrar o imposto e, alguns metros mais além, o comerciante que lhe fica com o resto do dinheiro, vendendo-lhe mercadorias e vinho medidos a quilos de oitocentas gramas, metros de oitenta centímetros etc. Os 10.000 contos de algodão passam assim imediatamente para as mãos do comerciante do mato, por sua vez escravo do comércio do litoral – e o preto serviu apenas de tubo condutor. Volta à sua terra e não leva consigo senão a lembrança dos meses duros que viveu e que imediatamente se renovam com a obrigação de arrancar o algodão e preparar as terras para as novas lavras. É esta a verdade – a verdade que os números não dizem e que não chega a V. Exa. [...] Há concessões algodoeiras onde os indígenas, ao cabo de um ano de trabalho, não conseguem realizar o bastante para pagar o imposto – quer dizer: os seus rendimentos são inferiores a importância do imposto. E como em geral, descuram nessas mesmas zonas o cultivo de mantimentos – e até porque as distâncias entre as leivas de algodão e as suas sanzalas são consideráveis – V. Exa avaliará o panorama […] Deve dizer-se de passagem, que os indígenas desta zona não se queixam do facto. O seu pavor de serem recrutados para os trabalhos da conta alheia (para o contrato, como eles dizem) é tal que preferem a miséria a que os reduz o trabalho no algodão nestas condições – mas que os isenta de serem contratados (!) – a serem ‘arrebanhados’ pela autoridade administrativa para trabalhos fora. Quer dizer: entre duas escravidões preferem a que lhes parece mais suave, por não os afastar das suas terras.[...] São factos correntes dos embaraços trazidos ao problema de mão de obra pela acção dos patrões, contra ou ao abrigo das disposições oficiais, iludindo a fiscalização umas vezes e subornando outras, aproveitando a brandura ou a falta de meios da autoridade protectora, pagando influência e poderes, entre outros, os seguintes: 1º – A resistência por todas as formas a uma política de salários justos, económica e socialmente justos; 2º – O mau tratamento dado aos trabalhadores – os castigos corporais e violências físicas são ainda correntes em Moçambique; as obrigações de vestuário, alimentação e assistência sanitária iludem se na generalidade dos casos; a ideia de que o preto é simples besta de carga perdura; a indiferença pela saúde física e moral do trabalhador, pela sua morte ou invalidez é manifesta. Uma classificação de patrões conforme o tratamento concedido aos seus serviçais conduz a uma percentagem pavorosa de maus patrões; 3º – Os desperdícios de mão de obra. Esta utiliza-se como se fosse abundantíssima. Tudo se faz a braço de negro – desde a tracção de vagonetas até ao enxugamento de pântanos; 4º – A qualidade e o carácter dos angariadores de mão de obra; 5º – Os deslocamentos de trabalhadores sem atenção as mudanças bruscas de clima – em especial os sacrifícios a que são submetidas as levas deslocadas do interior para o litoral; 6º – As extorsões praticadas pelos comerciantes sobre os indígenas; 7º – O desprezo pelas condições de habitação; 8º – As últimas sobrevivências do espírito de extermínio verificado no fim do século passado e princípios do século actual. Esta é, a traços muito breves, mas de cujos pormenores o Governo está informado, a situação actual da questão indígena de mão de obra. [...] [...] E a isto se chegou, Snr Ministro – a isto que não se via desde os tempos áureos da escravatura: É o Estado o recrutor, o corretor das actividades da colónia que reclamam de obra. E uma vez que o Estado aceitou essa missão de fornecer pretos aos particulares, contra requisição, como se fornece uma mercadoria, é agora muito difícil arrepiar caminho, sem que se tome a reforma de processos, como violência, insuportável, para o que pomposamente se chamam os interesses económicos da Colónia. [...] Mais factos alinhados à pressa: Os pretos destinados ao contrato são concentrados na circunscrição, para inspecção médica (feita a maior parte das vezes por um enfermeiro) e enquanto esperam o transporte que os conduz ao seu destino. Este tempo de concentração dura por vezes mais de um mês. Durante este mês são empregados em trabalhos na granja da circunscrição, sem salários, só pela alimentação. No regresso mais um mês de concentração e trabalho. Um contrato de nove meses dura assim, praticamente, onze. Quando chegam às terras não têm de comer, porque não as cultivaram nem colheram mantimentos – e o pouco que juntaram (36,00 Ags. por mês), foi para o imposto. A questão assumiu tal aspecto e tem sido, digamos, tão inconscientemente avaliada por quantos se habituaram a ela, como quem se habitua a um estupefaciente, que um missionário protestante americano que vive há 30 anos em Angola e ao qual se atribui a façanha de ter fornecido os elementos que serviram de base ao Relatório Ross, se atreveu a enviar uma circular às entidades administrativas, referindo a situação em termos desprestigiosos para a nossa administração: trata-se do missionário Turk. [...] É [...] que se tem escrito em diplomas oficiais que o problema é dificílimo. E não pode negar-se que seja. Hoje mais difícil do que ontem; amanhã mais difícil do que hoje. Mas é certo também de que isto se comete de há 10 anos e que não surgiu nestes 10 anos uma única providência de ataque frontal à questão. Na verdade não se tem tratado os assuntos senão por meio de fórmulas e providências muito limitadas, cujo espírito e visivelmente o de empatar a doença na esperança de que o acaso a cure. [...] Julga-se ter moralizado um pouco o sistema, concedendo a cada homem ‘contratado’ que regresse a sua terra o direito de ‘descansar’ pelo menos um ano – quer dizer, garantindo-lhe o direito de não ser recontratado, durante um ano. Mas a verdade e que nem essa regra se respeita pois eu próprio já tenho encontrado indígenas com 2 ou 3 ‘contratos’ seguidos. Nas sanzalas por onde passo e que outrora vi fortemente povoadas, só encontro hoje mulheres e crianças. Os homens, dizem-me estas, andam no contrato. E protestam porque, dizem, ‘não tem homem para ter filhos’ (sic). Todos os indígenas com quem falo, encaram o contrato como uma calamidade e falam dele com o mesmo pavor com que outrora se referiam a S. Tomé. [...] Em 1937, correram em Lisboa, boatos acerca dos sentimentos separatistas manifestados por gente de Angola – boatos que se V. Exa. bem se recorda, deram ao exílio de Paiva Couceiro. [...] Pois hoje [...] no Sul da colónia se não há sentimentos separatistas profundos, não falta quem às claras namore a hipótese de uma anexação à África do Sul. [...]

Fotocópia de «Algumas passagens do Relatório de Henrique Galvão - A população foge em massa»

A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.