Carta de Lúcio Lara a Hugo de Menezes

Cota
0006.000.032
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado (2ª via)
Suporte
Papel comum
Remetente
Lúcio Lara
Destinatário
Hugo de Menezes
local doc
Rep. Federal da Alemanha
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
2
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

Carta a Hugo de Menezes [dactilografada] Frankfurt, 3 junho 1959 Meu caro Hugo Presentes duas cartas tuas, uma de 28 e outra de 26 de Maio. Gostei bastante de te ler, pois pões problemas interessantes a que passarei a responder, na medida do possível. Em primeiro lugar deixa-me enviar-te um abraço pela decisão que tomaste de abandonar tudo o que poderias esperar da Medicina para te dedicares à luta do nosso povo. Deixa-me porém dizer-te que Medicina e Luta não são incompatíveis: a Luta pode assumir aspectos e seria bom que não tardasse a assumi-los, em que os médicos são imprescindíveis. Estás a perceber, meu caro o que quero dizer. É bom que encaremos a dura realidade: Portugal jamais cederá a bem os seus hipotéticos direitos sobre o nosso País. Se tens estado a par dos acontecimentos portugueses, terás notado a pressa e o alarme com que eles estão a reforçar o dispositivo militar em Angola. Agora há bem pouco tempo fizeram lá um «festival» de aeronáutica com lançamento de paraquedistas, para inaugurarem as actividades da aviação militar em Angola. Estão projectados novos quartéis, a Marinha de Guerra passou agora a fazer visitas periódicas às colónias, inauguraram-se carreiras de tiro em que o Governador Geral de Angola falou dos perigos iminentes que os ameaçavam e da necessidade de cada civil estar preparado pª pegar em armas, etc. etc. Tudo isto passa a ser claro: os nossos povos, se quiserem a sua independência, terão de lutar por ela com o maior dos espíritos de sacrifício. Chegamos ao ponto em que se verificou que temos absolutamente de deixar de contar com qualquer ajuda exterior, enquanto não provarmos que a nossa Luta é uma REALIDADE. É certo que temos o apoio moral dos povos de Bandung e da Conferência de Accra; mas todos esses povos estão também embrenhados na difícil solução dos seus próprios problemas. Olha para o valente povo argelino. Quem lhe acode? Se não fora o decidido espírito do povo de alcançar a independência ninguém lhes daria nem venderia nada. Hoje não lhes faltam armas, mas no princípio da Luta, até mostrarem que estavam absolutamente decididos a dar a sua vida pela liberdade do seu País, tudo lhes faltou. Os dados do problema estão pois, julgo eu, postos em evidência. Uma pergunta surge: QUE FAZER? Os teus projectos têm o seu sentido. É de facto necessária uma Organização extra-fronteiras. Essa organização existe. Chama-se MOVIMENTO ANTI-COLONIALISTA (MAC). Precisa de adquirir cada vez mais força, e precisava sobretudo que muita malta estivesse resolvida a abandonar Portugal para vir cá para fora trabalhar. Somos poucos e a tarefa é de GIGANTES. Tantos problemas a resolver e nós sem dinheiro e sem gente que trate de tudo. Mas tenho a certeza que a coisa melhorará. O MAC tem exactamente a finalidade de agitar à escala internacional os problemas das nossas terras, ligando-se sempre que possível aos interesses dos Movimentos que lá existam, porque como deves saber lá luta-se já. Em Lisboa li bastantes panfletos que circulavam em Angola, com o nome de MANIFESTO AFRICANO. Deves ter também ouvido falar na UNIÃO DAS POPULAÇÕES DE ANGOLA que se fez representar em Accra por um Delegado.1 A comunicação desse delegado mando-ta por correio normal (o original era inglês e a tradução que fizemos aqui muito à pressa não está grande coisa, mas é só pª veres). Se tiveres qualquer possibilidade de fazer chegar isso a Portugal manda. Ora estas organizações têm certos aspectos da Luta limitados e nós podemos precisamente encarar a sua resolução, mas estamos dispostos a fazê-lo sempre com o espírito de que a Luta deve ser dirigida pelos nossos irmãos que estão em Angola. O MAC não diz só respeito a Angola. É um movimento interessado em todas as Colónias Portuguesas de África. Portanto, em suma, quanto ao teu desejo de constituir uma Organização, ela existe e receber-te-á de braços abertos. Tal Organização tenta (como tu também referes) o impossível pª trabalhar em íntima ligação com as existentes nas nossas terras. Quanto ao APOIO ECONÓMICO de outras organizações creio ser mais difícil. Não é no entanto impossível. Devemos porém ressalvar a nossa posição. Todos os países, mesmo os de África sob dominação francesa ou inglesa, estão habituados a encarar-nos como os «irmãos pobres», não acreditando mesmo nas nossas possibilidades. Precisamos de demonstrar a todos eles que somos tão capazes duma luta, quanto o soube ser o nosso povo até 1920, data em que a Ocupação portuguesa se tornou efectiva, o que desmente a tal posse de 500 anos. Por outro lado os nossos países são economicamente ricos; Angola é mesmo das mais ricas parcelas de África, e isso deve estar sempre bem presente no nosso espírito. Aquela terra é nossa e quando chegar o momento de negociarmos auxílios, devemos fazê-lo com a cabeça levantada, na certeza de que poderemos depois pagar as nossas dívidas. Isto não é quimérico, o que é preciso é que nos convençamos do nosso real valor e tenhamos fé nas possibilidades do nosso povo. Claro que quanto a apoio político todo ele é de desejar, e para isso temos de aproveitar em primeiro lugar os povos de Bandung e os povos de Accra que TOMARAM O COMPROMISSO SOLENE DE AJUDAR TODOS OS POVOS QUE LUTEM CONTRA O COLONIALISMO. E essa ajuda é dada no próprio interesse dos países já independentes, pois eles próprios só poderão sentir-se seguros na medida em que os baluartes do Colonialismo tenham abandonado África. O presidente Nkrumah ainda há bem pouco tempo o referiu, e também o Comité executivo da Conferência de Accra reunido extraordinariamente há pouco. Também te envio pelo correio a tradução destas últimas resoluções. Quanto ao apoio dos trabalhistas britânicos ou de quaisquer outras agremiações sindicais ou políticas, será sempre bem-vindo e tudo o que puderes conseguir que se diga no Parlamento de S. Majestade ou em jornais daí ajuda a enterrar cada vez mais os colonialistas portugueses, já tão aflitos, com tão pequena maré. Agora vamos a outro aspecto: o das relações com a Oposição portuguesa no Brasil e em Portugal. A chamada Oposição Portuguesa é como tu sabes tão colonialista quanto o fascista Salazar. Apenas o Partido Comunista Português, bem recentemente (1957 fins) num comunicado saído do V Congresso se pronunciou pelo direito que as colónias tinham à ascensão imediata à independência. Portanto, apoio verdadeiro em Portugal, só do Partido Comunista, mas como deves saber, a ilegalidade em que o Partido Comunista vive em Portugal torna esse apoio pouco efectivo e bastante deficiente, tanto mais que o próprio problema nacional português deve ocupar a maior parte dos interesses imediatos da sua luta. Quanto à outra Oposição, não tenhamos grandes ilusões; pelo contrário necessitamos da maior cautela. Se eles hoje colaboram connosco, é apenas com o fim de deitar o Salazar abaixo. Uma vez que isso aconteça, eles procurarão tratar-nos da saúde. Olha para a França e os seus Progressistas... É evidente que nós devemos procurar servir-nos deles sem nos comprometermos nem aos nossos movimentos. Quanto a mim tenho contactos com Oposicionistas Portugueses, jovens, que me têm prestado grande ajuda. Nada lhes revelei porém dos nossos movimentos. Sabem apenas que saí de Portugal por estar iminente o risco de eu ser preso... Não sei se me expliquei bem quanto a este ponto: colaboração sem compromisso ou sem comprometimentos. Com os Brasileiros, desde que eles sejam anti-colonialistas, há toda a vantagem numa colaboração íntima e na divulgação na sua imprensa dos nossos problemas. Se estiveres em condições de o fazer, não hesites. Cautela, apenas. Não recebi o recorte do Manchester Guardian. Sobre que era? Quanto à tua vinda pª aqui, acho que é pior ainda. Aqui só os colonialistas se interessam pelos problemas de África, e de que maneira... As chances de emprego também não são grande coisa. Eu pª o conseguir vou pedi-lo à Alemanha de Leste, pois aí tenho a certeza que consigo qualquer coisa, enquanto não for pª África. Claro que isso não tem nada que ver com política. O nosso princípio orientador é de que entre africanos as ideologias só têm razão de ser quando formos livres. Agora somos todos AFRICANOS e temos tanto interesse num País do Ocidente que nos apoie, como num País de Leste. Pª nós não há blocos: há colonialistas e não colonialistas. E fico por aqui hoje. Escreve logo que possas. Não percebi as tuas dúvidas quanto ao Pan-Africanismo. Explica isso melhor. Adeus, meu caro. Um grande abraço. Vai dizendo o que pensas e o que fazes. [Acrescentado à mão:] Seguiu: Message Anexo II sobre ONU Decl. do Comité Ex. de Accra U.P.A. Fundamentos jurídicos da guerra argelina

Carta de Lúcio Lara (Frankfurt/Main) a Hugo de Menezes

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