Carta de Alda E. Santo (ou de Palma Carlos?)

Cota
0002.000.004
Tipologia
Correspondência
Impressão
Dactilografado
Suporte
Papel comum
Remetente
Alda Espírito Santo (ou de Palma Carlos?)
Destinatário
«Caros amigos»
Data
Idioma
Conservação
Bom
Imagens
4
Observações

Foi publicado no 1º Vol. de «Um amplo Movimento...»

Acesso
Público

Carta de Alda Espírito Santo sobre os Massacres de São Tomé [dactilografada, sem data – de 1953] Caros Amigos: Há muito tempo já lhes devia ter escrito, pois desde Janeiro (9) me encontro em S. Tomé, a agradecer-vos as provas de boa e franca amizade que me demonstraram. Contudo nunca deixei de pensar em vos escrever, mas concerteza que pelos jornais tiveram conhecimento de uma falsa rebelião em S. Tomé, que não passou de uma provocação do Governo local para semear milhares de vítimas, dizimar toda uma população. Pois caros amigos, eu vivi aqui momentos como não espero tomar a viver em toda a minha vida. Para que façais ideia até onde pode chegar o sadismo selvático dos tiranos eu vou ver se vos exponho detalhadamente com toda a clareza o que se passou em S. Tomé, nesta pequena ilha. Confesso-vos que se eu não estivesse cá a viver, a ver e a sentir a exterminação total a que pretendiam reduzir os nativos, eu julgaria que em tudo isto houve uma boa parte de exagero. Eu desejo fazer uma exposição puramente baseada em dados concretos para que façais sentir aí todo o estendal de crimes que se passou aqui, porque é impossível que fique no silêncio toda esta tragédia que estamos vivendo e que em Portugal se continue a julgar que foi uma rebelião de nativos, quando tudo o que se passou não foi mais do que uma matança em série, uma loucura colectiva da parte da quase totalidade da população branca às ordens do governador e seus acólitos. Desde há muito tempo o povo de S. Tomé vem sendo oprimido pelo Governador, quer por meio de rusgas, prendendo pela noite, levando indivíduos para as obras do estado, para as brigadas de trabalho, sofrendo castigos corporais, com remuneração nula, ou mal remunerados, esbulhando-os das suas casas de habitação sob pretexto de construção de novas casas de habitação, perseguindo aqueles que se não curvavam ao seu despotismo; no entanto ainda não se tinha chegado ao ponto culminante. Vieram então as provocações mais acintosas. Primeiramente apareceu no semanário local um artigo da autoria do Curador-Inspector Franco Rodrigues sobre o contrato, fazendo entrever que a população nativa deveria passar a ser controlada pela Curadoria dos Indígenas, ficando a trabalhar sob o regime de dependentes das roças – um regime de escravidão mascarada. O referido artigo descontentou o povo. É necessário frisar que entre os elementos nativos sempre mais causticados pelos tiranos tem sido sempre a população da vila da Trindade. Apareceu nas paredes uma afixação (sei que apareceu também à porta dum estabelecimento comercial ‘Pereira Duarte’) que era uma ameaça do Governador dizendo que seria liquidado quem pensasse em contratá-los. Presume-se também que essa ameaça seria apenas já uma provocação da parte deles (tiranos). Começaram surgindo os editais mais pavorosos que imaginar se possa. Surgiu um dizendo que indivíduo mal intencionado propalava boatos falsos que não representavam a vontade do governo, atirando para a frente com o chavão ‘comunismo’. A certa altura novo edital promete cinco contos de gratificação a quem desmascarar o autor da famosa ameaça (enfim, aventuras do Far West). No entanto na região de Caxão Grande, uma povoação vizinha da Trindade, nas noites de 1 e 2 de Fevereiro realizam-se rusgas comandadas por ‘Zé Mulato’, um criminoso que devia estar no Forte Roçadas por morte de homem, mas que é pessoa de confiança do Governador para castigar os indivíduos nas brigadas e dirigir as operações de sua confiança. Um indivíduo da povoação consegue ferir um soldado indígena e desaparece. Na noite de 3 de Fevereiro, o referido ‘Zé Mulato’, o tenente Fernando Ferreira, policiais, um jeep guiado por um cabo de nome Casaca vão fazer provocações na vila da Trindade, matando um homem que atravessava a Vila, conhecido por Pontes. O indivíduo é apanhado de costas. A população limitou-se a fugir para o mato e os tiros prosseguem por parte dos provocantes. Se no dia 4 começam as prisões em massa, os tiroteios, as mortes de homens indefesos inventando que a população nativa queria marchar para a cidade com os machins (umas facas grandes com cabos compridos, instrumentos de trabalho no mato) e que pretendiam vir matar o Governador e todos os brancos, tomando para si as mulheres brancas, nomeando como governantes indivíduos desafectos ao Governador que ele sempre perseguira: Engenheiro Salustino Graça (preto), Virgílio Lima e Carlos Soares (europeus) e muito outros para vários cargos. Enfim, engendraram células comunistas e tudo quanto quiseram para pôr à solta os seus instintos canibalescos. Começou então a mobilização em série da população branca que desenfreadamente e sem procurar pensar na veracidade de tais acusações começou a cometer atrocidades. Na manhã do dia 4 o Alferes Jorge Amaral, destacado para essas perseguições aos nativos aventurou-se para o mato porque andava na fúria de chacinar os pretos. A certa altura falta-lhe uma bala na carabina; é apanhado de surpresa por um indivíduo com um machim que lhe tira a vida. A partir dessa altura redobraram as violências porque morreu na “refrega” um europeu e ainda um soldado indígena. Morto o alferes começa o êxodo. Onde não encontraram homens queimaram casas. A população foge desatinadamente e eles prosseguem na caça aos macacos. A ambulância e camionetas não cessam de passar para a Cidade com mortos, feridos e principalmente presos. Quarenta e sete indivíduos são metidos numa sala cuja cubagem não permite a respiração normal desses homens, tendo apenas uma janelita insuficiente para se poder respirar eficientemente. Os homens gritam, pedem água, imploram, mas perto de 30 indivíduos morrem asfixiados. Os sobreviventes são unânimes em se referirem ao facto e nomes deles surgem. Os homens da Vila da Trindade morrem então nessa câmara de asfixia e são enterrados em vala comum, não constando suas mortes nos registos de óbitos. Isto passou-se na tarde de quinta feira, dia 5 até a noite e madrugada de 6 (sexta-feira). As casas são queimadas em série, povoações como Folha Fedi, Cangá, enfim todos os arredores da Trindade são pura e simplesmente destruídos. A febre continua. Os homens morrem. Corre sangue à toa. Fazem-se prisões em massa. A grande maioria dos funcionários públicos negros são presos, vão para a Brigada de Fernão Dias onde são acorrentados com correntes de duas voltas ao pescoço, à cintura e nas pernas. Sustentam ainda grandes tinas na cabeça, são metidos no mar até ao pescoço, enchem as tinas e vão esvaziá-las nas estradas: o descanso desses homens é apanhar pancada pelo Zé Mulato e seus acólitos. Todos estes padecimentos têm por mira levá-Ios a fazer declarações falsas, engendradas já e planeadas pelos inquiridores. Os que se não submetem morrem; José Ribeiro, 2º Oficial da Fazenda; Venâncio Vera Cruz, comerciante; Francisco Aragão, proprietário, de 65 anos de idade; Tiny, funcionário da Câmara, e muitos outros foram vítimas dessas torturas em Fernão Dias. Homens mortos são aí lançados ao mar ou feitos desaparecer de forma inexplicável. Em Santo Amaro, uma povoação cujos estabelecimentos foram encerrados, o grosso da população veio à cidade numa camioneta com bandeiras brancas a implorar a paz, a conselho do Regedor. Os homens são todos presos e enviados para Fernão Dias. Três deles morrem em presença dos seus companheiros: Júlio Boriças, «Inglês», «Haja Vida», são vítimas desse furor. E os outros são espancados e trabalham todos sem remuneração qualquer que não sejam os castigos. Dormem no chão à chuva, passam fome, a alimentação é incapaz. Dá-se ordem a que os Administradores das roças açulem os serviçais para que saqueiem as casas, as roubem, queimem; mulheres e raparigas são violentadas, e os Administradores das Roças Hilagusa e Java-"Pirito" ordenam os roubos em série. A 12 de Fevereiro há uma manifestação aos heróis. São condecorados o assassino José Mulato, fardado de militar, e o seu lugar-tenente Mortel e todos os que se salientaram nessas chacinas. A 10 de Fevereiro é presa a minha Mãe e lá se encontra ainda. Os indivíduos que eles entendiam ser os cabecilhas são enviados para a Ilha do Príncipe. Chovem as acusações. Os jeeps acorrem à cidade desenfreadamente de ponta a ponta, divertindo-se em organizar listas, acicatados por questões pessoais e prendem-se os indivíduos, espancam-se, espalha-se o terror. Os nativos não podem andar na rua a partir das 21 horas. Toda a gente passa a esperar a hora da prisão. Minha Irmã esteve presa 20 dias, uma moça que connosco vive, igualmente (Sofia Cármen). Eu escapei porque chegou alguém destemido, que mostrou aos tiranos que as atrocidades se não podiam fazer à toa, que acima disso tudo estavam AS LEIS; e o aspecto de S. Tomé começou a modificar-se. As acusações começam a mudar de carácter, as mulheres atemorizadas ganham confiança, as prisões cessam e caminha-se até ao ponto em que os três principais responsáveis pelos crimes que aqui se cometeram foram chamados pelo Governo Central. No entanto, indivíduos da pandilha governamental pedem o regresso do Governador, conseguindo assinaturas de adesão com ameaças e falsidades de toda a ordem. E agora estamos no ponto culminante. O Tirano não pode voltar e é justo que se reconheça a inocência do povo, que haja uma reparação por todos os males que se fizeram. 120 indivíduos são enviados para o Príncipe quando se vêem aflitos com processos disparatados, arranjando então uma série de processos administrativos, e aqui na cadeia do Corpo de Polícia estão mais de 80 indivíduos aguardando julgamento. Fizeram-se as mais idiotas acusações. Usaram um processo de Cadeia Eléctrica para fazer falar os indivíduos; para que fizessem as declarações que exigiam, só não fizeram o que a imaginação desses tiranos não pôde conceber. Não se podia comunicar com ninguém. Tudo eram impedimentos. Idas a bordo, transmissões telegráficas canceladas, cartas violadas, tudo se fez, tudo foi permitido. E o que descrevi foi uma súmula geral. Não desci a particularidades ainda de interesse, mas o que digo já julgo suficiente para se verificar no que consistiu a tal rebelião que os jornais e emissoras de rádio anunciaram. Já vêem portanto como nada vos poderia dizer nem dar notícias. Não tenho tempo para escrever mais. Só me escrevam quando houver portador de confiança. Pelo correio só a falar no tempo, na saúde e mais nada. Eu estou convencida que procedereis no sentido de fazer ver aí o que se passou por cá. Para vós toda a amizade da

Cópia dactilografada de uma carta de Alda Espírito Santo a «Caros Amigos» sobre a «falsa rebelião» que houve em São Tomé

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