«Os mortos não ressuscitam mas são acusações vivas»

Cota
0002.000.003
Tipologia
Texto de Análise
Impressão
Manuscrito
Suporte
Papel comum
Data
1953
Idioma
Conservação
Mau
Imagens
4
Acesso
Público

Os acontecimentos de S. Tomé
Os mortos não ressuscitam, mas são acusações vivas

    Passou no dia 9 de Fevereiro o 1º aniversário do massacre da população nativa de S. Tomé. Esse dia é um dia de luto para todos nós, pois nesse dia morreram centenas de pessoas inocentes vítimas da prática do colonialismo.
    Nesse dia S. Tomé viu-se entregue ao saque, à destruição e à morte. Pessoas honestas, trabalhadoras, homens, mulheres, rapazes e raparigas viram as suas casas invadidas e queimadas, os seus empregos perdidos, filhas e noivas violentadas e a morte semeada pelas metralhadoras e espingardas dos colonizadores.
    Neste 1º número de “Unides” queremos dar a público alguns aspectos dos acontecimentos de S. Tomé. Para sua melhor compreensão resolvemos incluir alguns elementos sobre a história e a estrutura económica da colónia.
    Desde o séc. XVI que S. Tomé é uma colónia de exploração agrícola. Era o braço do escravo negro que produzia o açúcar que enriquecia os colonizadores. Nos séculos XVII e XVIII S. Tomé passa a ser o armazém de escravos idos de Angola a Moçambique e que os colonizadores vendiam para os campos de trabalho nas Américas. Com a abolição da escravatura entra-se na exploração da terra com grande  investimento de capitais e mão de obra assalariada recrutada violentamente em Angola e também Moçambique. Desde o princípio do século passado que S. Tomé é uma colónia produtiva de café e cacau. Firmam-se algumas companhias, como por exemplo, a Companhia Agrícola Ultramarina, a Companhia Colonial Agrícola e outras que possuem mão de obra de Angola e de Moçambique e ultimamente de Cabo Verde, pelas autoridades administrativas coloniais, que sustentam pela força trabalhadores que vão ganhar salários baixíssimos - 60$00 mensais sendo metade em dinheiro e a outra metade em compras no armazém - e que não podem deixar as roças sem que o contrato que foram obrigados a aceitar termine.
    A par desta exploração agrícola das grandes companhias existe a pequena agricultura nativa. Essa pequena agricultura nativa tem vindo a sofrer desde há muito tempo ataques por parte das grandes companhias. Em 1882-83 esta pequena agricultura representava mais de metade da exportação do café e ⅗ do cacau. Entretanto a propriedade da terra tem vindo a passar através dos tempos das mãos dos nativos para as mãos dos actuais proprietários e quase sempre pela violência.
Devido a condições históricas especiais, os nativos de S. Tomé têm o direito de cidadania e alguns dos seus elementos têm ocupado cargos no funcionalismo nomeadamente na administração.
A pequena propriedade nativa e o direito de cidadania têm sido alvo do ódio e dos ataques dos colonizadores europeus que pretendem a todo o custo assenhorear-se das suas terras e reduzi-las à condição de contratados, isto é, à condição e regime da mão de obra importada pretendendo resolver assim pela violência o problema da falta de mão de obra.
Alguns teóricos da colonização portuguesa têm-se referido a esse problema e convêm citar algumas passagens desse documento sobre o processo de colonização a seguir em S. Tomé do Inspector Administrativo José de Franco Rodrigues, datado de 30 de Dezembro de 1952, um mês antes do massacre. Falando do massacre de S. Tomé e Príncipe diz:
    “Inicia-se da mesma maneira a ocupação militar. Extinta esta é substituída pela autoridade civil, não se estabelecem normas de trabalho, deixa-se a massa populacional navegar ao sabor dos seus caprichos. Apoderam-se de um direito que até hoje ainda lhes não foi concedido por diplomacia alguma - o de cidadania. Onde o foram eles buscar e como se admite tal presunção?"
Ao propor medidas concretas sobre a colonização de S. Tomé o Sr. Franco Rodrigues cita entre outras as seguintes:
-    “ Ampliação na demarcação das actuais vilas, expropriando os terrenos necessários, de forma a permitir-se a formação de grandes núcleos populacionais, tornando-os centros abastecedores de mão de obra.
-    A promulgação de normas de trabalho, incluindo a obrigatoriedade de prestação de serviços para conta de outrém, durante um período anual de 6 a 9 meses, seguido ai interpolados.”

É convicção do Sr. Franco Rodrigues “que a adopção de todas estas medidas seria um passo em frente na senda do progresso e civilização.”
Um mês depois destas declarações a população nativa de S. Tomé era vítima de mais um ataque sangrento dos colonizadores brancos, mas este excedia os outros. Tomava as proporções de um autêntico massacre; e, 1000 nativos perdiam a vida.
No dia 1 de Fevereiro as autoridades governamentais procedem a uma “rusga”, qual a tantas outras anteriores como as que ficaram conhecidas por… e que somaram para arranjar gente para o trabalho nas obras do Estado, para as brigadas de trabalho, sofrendo castigos corporais, como remuneração nula, ou mal remunerados. As rusgas prosseguem nas noites de 2 e 3 chefiadas por “Zé Mulato” conhecido autor dum assassínio. Na noite de 3 o referido “Zé Mulato”, o Tenente Fernando Ferreira, polícias, um Jeep guiado por um cabo de nome Casaca entram na Vila do Trindade, matam pelas costas um homem de nome Pontes que atravessava a vila. A população foge para o mato espavorida. No dia seguinte, 4 de Fevereiro, começam as prisões em massa, desencadeia-se a chacina organizada, faz-se a mobilização da população branca fornecendo-se-lhe armas e munições. Tudo isto tendo como pretexto uma inexistente sublevação da população nativa. Nesta sublevação os nativos tirariam a vida a todos os brancos em geral, tomariam para si as mulheres brancas e nomeariam governantes indivíduos desafectos do governador como Sarg. Salustino Graça (negro), Virgílio Lima e Carlos Soares (europeus) e muitos outros para vários cargos. Na caça aos nativos que fugiram para os matos distinguia-se o alferes Jorge Amaral. Embrenhando-se no mato numa fúria de matar negros, nessa manhã de 4 o alferes Amaral é morto por um negro que surpreende quando lhe falta uma bala na carabina. Com o alferes morre um auxiliar negro.
Então a violência aumenta. Há centenas de mortos, os arredores da Vila Trindade arrazados, casas queimadas em série povoações como Folha Fedi, Cangá destruídas. Da Vila Trindade chegam à cidade continuamente carros com feridos, mortos e principalmente presos. Quarenta e sete detidos são encerrados num compartimento com uma janelita insuficiente para se poder respirar e aí morrem asfixiadas 30 pessoas que são depois enterradas em vala comum, não constando as suas mortes nos registos de óbitos. 
     Os funcionários negros são presos. Exigem-se-lhes confissões e depoimentos já de antemão preparados pela polícia que os coloca como agitadores e membros activos dum movimento de sublevação da população da ilha. Perante a recusa de prestarem tais declarações a polícia procura arrancar confissões por métodos os mais variados. Um dos processos empregados é o das palmatoadas e o da cadeira eléctrica. Quando mesmo assim nada consegue envia-os sob prisão para a Praça Fernão Dias, entregues ao carrasco “Zé Mulato” para os trabalhos forçados. Aí os guardas são criminosos de delito comum. A presos são tirados os sapatos, ligados dois a dois por formas de correntes de ferro atadas aos pés e obrigados a acarretar água do mar em tinas à cabeça para uma entrada em construção. Este trabalho é feito sob o chicote de borracha de pneus com que os carrascos fustigam o corpo dos presos obrigando-os a correrias dum lado para o outro. Outros presos são distinguidos com “cuidados especiais”, pois lhes põem ao pescoço uma corrente que fecha com um elo, que vai depois dar a volta à cintura fechando com um elo e termina no tornozelo também fechado por um elo. Esta corrente pesa aproximadamente 50 Kg. Estes presos são obrigados aos mesmos serviços que os outros. Quando qualquer preso manifesta cansaço e se recusa a trabalhar é espancado e metido no mar com água pelo pescoço até que ao “rebelde” volte a vontade de trabalhar.
    Submetidos a todas estas torturas da praia Fernão Dias muitos presos morreram à vista dos seus companheiros e os seus corpos eram atirados ao mar ou os faziam desaparecer por quaisquer outros processos.
    Depois da mortandade, depois das torturas horrorosas desde as mais subtis às mais grosseiras, ainda para cima de cem indivíduos são enviados para a ilha de Príncipe com processos formados pela polícia. Enquanto os carrascos e os assassinos são festejados e louvados, prepara-se o julgamento de 4 inocentes: José Capolo, Agostinho, Mé Novo e Angelino como implicados na morte do alferes Jorge Amaral. Os dois primeiros são condenados a 28 anos de degredo e os dois últimos a dois anos de prisão correccional. 
    Contudo, o governo central reconhecendo intimamente que o Governador de S. Tomé e Príncipe Tenente-Coronel Carlos Gorgulho se havia excedido na “rusga” e na acção repressiva e punitiva da suposta sublevação faz com que ele peça a demissão do seu cargo, sem que, entretanto o Governo o considere publicamente responsável pelos acontecimentos, antes o louvando e premiando.
    Em face disto, jovens coloniais devemo-nos unir todos para exigir:
-    O castigo dos verdadeiros responsáveis
-    A reparação das vítimas.
-    A libertação e absolvição dos 4 nativos condenados.
-    Participação mais larga dos nativos na administração dos seus territórios.

«Os acontecimentos de S. Tomé: Os mortos não ressuscitam mas são acusações vivas»

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